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Sobre o conceito de Máquina em Agamben

4 O PARADIGMA DO ESTADO SECURITÁRIO NA POLÍTICA DO OCIDENTE

4.1 A máquina providencial do governo

4.1.1 Sobre o conceito de Máquina em Agamben

O conceito de máquina já é explicitado nos escritos primeiros de Agamben. A máquina diz respeito à efetivação de dispositivos. Desse modo, Agamben já assinalava, em suas obras anteriores, uma máquina da infância, do jogo e do rito, da linguagem, máquina da teologia e da economia, uma máquina biopolítica, a máquina soteriológica, a máquina providencial, a máquina antropológica e também a máquina governamental.41 Nesta dimensão, para Agamben, o que está em evidência em torno desse conceito de máquina é a sua característica de dispositivo. Para se pensar o conceito de máquina, faz-se importante a explicitação da problemática do dispositivo enquanto fundamento de construção subjetividades, a partir da captura da vida dos indivíduos em sociedade. Dessa forma, busca- se evidenciar o significado do dispositivo, através de sua influência indelével na sociedade hodierna enquanto mecanismo controlador e, por sua vez, de constituição de comportamento um corpo social, estabelecido pela interferência do poder, enquanto dispositivo, levando os indivíduos a agirem de forma que assimilem padrões de conduta, tenham suas existências homogeneizadas sob a condição de práticas de controles e dominação. Com isso, o entendimento que Agamben traz acerca do dispositivo é, na verdade:

[...] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder e em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - porque não - a linguagem mesma, que e talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar. (AGAMBEN, 2009, p. 40)

Nesta circunstância, a característica do dispositivo é assegurar uma construção de subjetividade no meio social. A construção de visões de mundo, de condutas e gestos faz parte

da essência do dispositivo, enquanto forma de estabelecer regras aos indivíduos subjugados por esse poder. A ideia de dispositivo não se restringe, assim, às cadeias, ou locais encerrados, como na sociedade disciplinar. O dispositivo pode, e também atua nos locais abertos, no caso da sociedade do controle, nos gestos mais simplórios e menos suspeitos do meio social, como a própria cultura. É possível perceber, outrossim, os dispositivos, na maneira como as pessoas se vestem e portam diante de todos.

As concepções filosóficas, e até o aparelho celular podem ser considerados dispositivos, pois estas realidades asseguram uma criação de interpretação do mundo, e acima de tudo, a possibilidade do controle. Outra manifestação desse conceito de dispositivo, para Agamben, é a própria linguagem, porque nela há elementos que capturam, da mesma forma, que outros dispositivos o fazem.

Na mesma linha, Agamben (2009) ressalta que o dispositivo é, na realidade, uma máquina que tem o propósito de produzir subjetivações, e só por isso trata-se de uma máquina de governo. A ideia aqui apresentada por Agamben, a rigor, revela que o dispositivo cria uma subjetividade dos indivíduos. A captura através dos dispositivos se dá a fim de se fazer construir sujeitos alheios a si mesmos. Ora, com o advento da sociedade de controle42, os

dispositivos se tornaram, outrossim, mais eficientes, pois quebraram todas as barreiras de sua atuação. Os indivíduos são submetidos a um assujeitamento, a partir do qual, se afirmam diante de uma nova subjetividade distante de si mesmos. Agamben comenta, nesse sentido, que:

Todo dispositivo implica um processo de subjetivação, sem o qual o dispositivo não pode funcionar como dispositivo de governo, mas se reduz a um mero exercício de violência. Foucault assim mostrou como numa sociedade disciplinar, os dispositivos visam, através de uma série de práticas e de discursos, de saberes e de exercícios, à criação de corpos dóceis, mas livres, que assumem a sua identidade e a sua

“liberdade” de sujeitos no próprio processo de assujeitamento. (AGAMBEN, 2009,

p. 46)

Nesta condição, a subjetivação é uma finalidade do dispositivo, no sentido de funcionar como uma ferramenta de governo. Não se trata de uma efetivação da violência, mas

42 Para Deleuze, pode-se entender a sociedade de controle como uma realidade distinta da sociedade disciplinar

pensada por Foucault, embora ambas possam existir simultaneamente. No entanto, Deleuze afirma que a sociedade de controle é capaz de ir além dos espaços de encerramento, como cadeias, manicômios, hospitais, escolas; enfim, está em todos os lugares com seus dispositivos vários afim de capturar os indivíduos para o seu controle. Pode-se dizer que são câmeras filmadoras nas ruas, com o discurso forte da segurança, os cartões de crédito para as compras, a possibilidade de um indivíduo se transformar numa necessidade de sempre se “auto-

reciclar” diante do mercado econômico. Assim, para Deleuze, a sociedade de controle é comparada a uma

serpente, pois seus anéis são bem mais complexos que um buraco de uma toupeira. Cf. DELEUZE, Giles. Post-

scriptum: Sobre as Sociedades de Controle. in L´Autre Journal, nº 1, maio de 1990, e publicado em

de uma sutil aplicabilidade desses dispositivos, seja através da linguagem, dos saberes, da criação dos corpos dóceis, mas, acima de tudo, livres. Nesse processo, a liberdade tende a se firmar na intenção de garantir uma identidade do sujeito no próprio assujeitamento.

De acordo com Deleuze43, os dispositivos têm suas complexidades, operam de distintas formas, ora independentes, ora entrelaçando-se com outros. Esta interpenetração desses dispositivos garante a finalidade do processo de subjetivação. A articulação do dispositivo engloba diferentes linhas de atuação, seja do ponto de vista da perceptibilidade, da aplicação de forças, ou mesmo do processo de subjetivação.

O que se compreende, é que toda essa dimensão está relacionada uma com as outras, isto é, os dispositivos se cruzam, se encontram e se reforçam em suas variações na aplicabilidade. E como afirma Agamben (2009, p. 38): “[...] o termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito.” Neste passo, a máquina, enquanto forma de articulação do dispositivo, mostra-se sempre de forma dualista, colocando-se no centro de um vazio. Este espaço vazio é o que se denomina de zona de indiscernibilidade da máquina governamental.

O sujeito seria, diante do dispositivo, para Agamben, senão um resultado da relação entre dispositivo e sujeito, na forma de uma adesão, apenas. Isto significa que, o que ele chama de sujeito é “[...] aquilo que é resultado do corpo a corpo” – aqui o corpo a corpo não constitui uma forma de luta, mas sim a adesão de um contato – “entre os seres vivos e os dispositivos” (AGAMBEN, 2009, p. 41) No mesmo sentido, Agamben afirma percebe que “[...] um mesmo indivíduo pode ser o lugar dos múltiplos processos de subjetivação: o usuário de telefone celular, o escritor de contos, o apaixonado por tango, navegador na internet o não- global.” E com o crescente desenvolvimento das formas de dispositivos, caracterizado por vários processos de subjetivações, tornou-se evidente a efetividade de todo esse processo de subjetivação. Sobre este aspecto, é possível evidenciar o propósito da máquina

43 “Os dispositivos têm, portanto, como componentes linhas de visibilidade, de enunciação, linhas de força,

linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura, e todas se entrecruzam e se misturam, de modo que umas repõem as outras ou suscitam outras, através de variações ou mesmo de mutações de agenciamento. [...] E cada dispositivo é uma multiplicidade na qual esses processos operam em devir, distintos dos que operam

noutro dispositivo.” Cf. DELEUZE, Gilles. Qu'est-ce qu'un disposif? IN Michel Foucault philosophe. Rencontre

internationale. Paris 9, 10, 11 janvier 1988. Paris, Seuil. 1989. Tradução de Ruy de Souza Dias (com agradecimentos a Fernando Cazarini) e Helio Rebello (revisão técnica), finalizada em março de 2001.

governamental, como uma intenção crassa de tornar a vida um objeto a ser manobrável, e reduzido a um produto, resultado da atuação do próprio dispositivo. Assim, Karmy afirma:

[...] que a operação fundamental de toda a "máquina governamental" não consistirá em nada além de produzir vida desnuda. Esta última é o que permanece na forma de uma exclusão e, por conseguinte, revela-se como um efeito da máquina e não um pressuposto "natural" como conceberia uma filosofia contratualista. (KARMY, 2017, p.39)

A máquina governamental se configura na possibilidade de construção de uma vida nua, como acontece na biopolítica. A única realidade a ser alcançada pela máquina governamental é a vida. Dessa maneira, ela opera na forma da exclusão, tal qual se faz o paradoxo da soberania, o qual exclui e inclui ao mesmo tempos os indivíduos diante da lei. Assim, a máquina assume a competência de um dispositivo capaz de engendrar novas regras de saber, de conduta.

A vida se tornou capturável pela máquina, pelos dispositivos. Segundo Agamben (2004, p.130): “O estado de exceção é o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nómos, entre vida e direito.” Esta situação gera, como informa Agamben, uma zona sobre a qual se assenta o paradigma da máquina governamental, o qual entende que a vida deve ser capturada pelos seus vários dispositivos.

O que fica evidente, a partir desse conceito de máquina, em Giorgio Agamben, é que, além de estabelecer uma relação com a vida, enquanto forma de governá-la, ele a reduz a uma vida nua. Diante disso, a máquina se ocupa em capturar a vida para que esta possa ser apenas o resultado dessa relação o sujeito de se dispôs a ser assujeitado. Veremos, nesse sentido, nas próximas linhas, o conceito da máquina providencial, elencando seus elementos principais, alguns fundamentos essenciais, e levantando hipóteses, através da visão de Agamben. Abordaremos a estreita relação entre a teologia e o governo, como sendo a chave primordial para o fundamento da máquina providencial.