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A gravação do primeiro disco e a consagração

PARTE 2 ANÁLISE DE CARTOLA, MÚSICA PARA OS OLHOS

2.4. Segmento 2: Redenção, reconhecimento e morte

2.4.5. A gravação do primeiro disco e a consagração

A articulação deste bloco temático, o penúltimo do filme, traz dois elementos essenciais da construção narrativa. Um deles está no depoimento do produtor Pelão, responsável pela gravação do primeiro disco de Cartola, em 1974, quando o compositor já estava com 66 anos. Trata-se, pelos detalhes relatados no depoimento, de exemplo acabado de história anedótica e do efeito de verdade decorrente. O outro também advém de um depoimento – de Arley Pereira, quando ele resume a trajetória de Cartola. E mostra o tipo de leitura da vida do personagem e a construção dela derivada, com raízes, em termos de estrutura, na tragédia grega e no cinema clássico hollywoodiano, como veremos a seguir.

No caso de Pelão, que relembra desde o dia em que, bêbado, falou com o dono de gravadora sobre a premência de gravar Cartola até o detalhe da cuíca confundida com um miado de gato por Marcus Pereira (também sócio da gravadora), estamos diante do excesso de informações da história biográfica e anedótica. São as âncoras de uma história fraca, que necessitaria ser transportada para uma história forte para ganhar inteligibilidade, como diz Levi Strauss240. É a crença na ilusão biográfica, no simbolismo do detalhe como elemento definidor da história241, no seu poder de restituir o real, em especial se rememorados pelo testemunho de quem esteve diante dos fatos242.

Aqui, o jogo do contexto com o específico foi esquecido em prol da redenção da personagem. Como lembra Beatriz Sarlo ao falar sobre o modo realista-

240

STRAUSS APUD VEYNE, Paul. Como se escreve a história, 2008, p. 26 241

LEVILLAIN, Phillipe. Os protagonistas: da biografia. IN: Por uma história política, p. 153-154

242 Diz SARLO, Beatriz em obra já citada, p. 51: “Num testemunho, jamais os detalhes devem parecer falsos,

137 romântico produzido pelo testemunho, “nenhuma soma de detalhes consegue evitar que uma história fique restrita às interrogações que lhe deram origem”243

. Do ponto de vista do conhecimento histórico – que, reconheça-se, não é o objetivo primeiro do filme – situar a gravação do disco dentro de uma possível busca maior de registros, feitos naquele momento, dos mais variados compositores que fizeram as origens do samba permitiria saber até onde se situava a singularidade de Cartola. O filme não nos diz se esse era um movimento desencadeado apenas por Pelão, ou se era uma tônica entre as produtoras voltadas para a música popular urbana naquela época.

Mas, ao contrário, sua fala valoriza o detalhe. Quando relembra a confusão sonora de Marcus Pereira (que confundiu o som da cuíca com um miado de gato, incomodando-se), a imagem de Pelão apontando para a caixa de som que reproduz a música é frisada, para acentuar o efeito da anedota. Nem mesmo o recurso do contraste de depoimentos, utilizado em outros trechos do filme, entra como contraponto à fala. Em defesa da escolha dos diretores de Cartola talvez se possa argumentar que a ênfase deriva da importância do selo Marcus Pereira no resgate da cultura popular, como a sinalizar que um dos promotores desse processo ganhou fama por tê-lo levado a cabo, mas não estava tão familiarizado assim com esse universo.

O depoimento de Arley Pereira vem logo após a música (Alegria) que simboliza o momento vivido por Cartola após, finalmente, gravar seu primeiro disco. A música entra depois da fala de Pelão e é introduzida com uma imagem de Cartola abrindo uma janela, com o áudio (retirado do próprio disco) de alguém que diz “Manda aquele teu samba, Alegria”. Em paralelo ao áudio da música, Cartola aparece dando uma entrevista que começa nova coleção de imagens, agora quase sempre oriundas de registros televisivos, ressaltando a recente notoriedade do compositor. São muitas entrevistas, shows, notícias de jornal, a capa do segundo disco, até que Arley diz, sem que sua imagem apareça na tela: “Ele teve uma vida de cinema. Sofreu a vida inteira, mas no fim ele venceu”.

Por vida de cinema, entendamos uma trajetória de narrativa clássica americana, com o herói que passa pelos mais diversos infortúnios até merecer a vitória que conquista na vida, prêmio pelo aprendizado e pelo esforço. É a repetição, com a

138 troca do veio trágico do teatro grego para o final feliz hollywoodiano, da Harmatia, a falha trágica. No “Sistema trágico e coercitivo de Aristóteles”244

, como Augusto Boal batiza a poética aristotélica, a Harmatia é a impureza desviante do comportamento do herói, algo a ser purificado. No caso da tragédia, isso ocorre com a morte ou a desgraça da personagem. O sistema seria coercitivo por gerar, de início, uma empatia entre personagem e espectador e, ao selar um destino ruim ao primeiro, funcionaria como alerta preventivo para que o segundo não adotasse o comportamento moral e socialmente desviante que levou o herói ao fracasso.

Como esquematiza Boal, a Harmatia está presente num primeiro momento de sucesso do personagem (que é quando se dá o processo de empatia deste com o público), mas se revelará o caminho de sua desgraça. E, no caso da reversão hollywoodiana, vencê-la é o caminho para a aceitação social e o final que preza o sucesso moral, ao invés da tragédia coercitiva.

No caso de Cartola, o filme nos leva a ver que as virtudes – o talento de compositor, a amizade – se misturam se não a falhas, pelo menos a situações de infortúnio que o levam a fracassar. Primeiro, no período do sumiço, quando viveu desventuras amorosas e foi relegado a segundo plano como compositor na Mangueira.; depois, na falência do ZiCartola, quando é obrigado a voltar, já velho, à casa do pai. Se é verdade que o filme não propõe em momento algum leituras moralistas dessas passagens que envolviam álcool, paixões e descompromisso com o dinheiro, por outro lado acentua o sofrimento do compositor. A Harmatia, aqui, talvez esteja mais no entorno do que no personagem. Mas fica clara a linearidade da trajetória, seguindo o movimento de ascensão, derrocada (por duas vezes) para uma ascensão definitiva deflagrada pelo disco e pelo reconhecimento imediatamente posterior, preparando o terreno para uma morte digna e plena de consagração.