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PARTE 2 ANÁLISE DE CARTOLA, MÚSICA PARA OS OLHOS

2.4. Segmento 2: Redenção, reconhecimento e morte

2.4.3. ZiCartola

Narrando desde a aproximação dos músicos da bossa nova aos compositores do samba até o golpe militar de 1964, este bloco traz um momento central do filme e da vida de Cartola: o período (um ou dois anos, a menção no filme é imprecisa) em que o compositor e sua mulher estiverem à frente de uma casa de shows no Rio de Janeiro. Apesar de o filme estar numa zona intermediária, em diálogo com o cinema de invenção e o documentário, assume-se também como uma narrativa histórica, na medida em que tenta restituir-nos não só a história do compositor, como do samba e da cultura popular urbana.

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A esse respeito ver LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho. Televisão, cinema e vídeo, 2004, p. 21

132 Mesmo oferecendo pouca instrumentação analítica para saber o quanto a estrutura social é definidora do indivíduo ou o quanto este influencia modificações nos modos de organização desta235, como no alerta que Norbert Elias faz sobre o papel de Mozart nas relações entre artistas e a corte no século XVIII236, é possível fazer algumas inferências acerca da posição de Cartola àquela altura.

Fundador de uma das principais escolas cariocas, compositor reconhecido desde a instauração do samba nos padrões do Estácio, Cartola havia atingido nos planos artístico e pessoal uma condição de pessoa de referência não só no meio musical, mas também nas esferas circundantes. Havia sido gravado pelos precursores do rádio (e a eles vendeu parcerias), havia transitado entre maestros, enfim, acumulara experiências suficientes para, estando no centro de um lugar como o Bar ZiCartola, desempenhar o papel de mediador cultural que Hermano Vianna classifica como fundamental para desvendar o “mistério do samba”237

. E, em plenos anos 60, essa mediação era mais ampla: dava-se não só no âmbito do samba, mas também junto às novas vertentes da música popular brasileira238. A extensa e variada freqüência do bar conduzido por Cartola e sua mulher e o tipo de relações que lá se deram permitem vê-lo como uma individualidade singular, nos termos descritos por Gilberto Velho e citados por Vianna. Ou seja, são indivíduos que, expostos a diferentes matrizes culturais, podem facilitar e intensificar as trocas entre os agentes destas.

Nesse sentido, sua função é de maior relevância que aquela que desempenhou nos anos 20/30, na fundação da Mangueira. É verdade que foi um nome fundamental naqueles tempos, mas a centralidade de sua presença foi maior nos anos 60, quando muita gente orbitava em torno a sua figura, e não em paralelo, como antes.

Esta ponte entre diferentes universos é feita, por meio das imagens de Tom Jobim cantando Chega de Saudade em O Tempo e o Som (1970, Bruno Barreto e Walter Lima Jr.), e outras de Zé Keti, Nelson Motta e Nara Leão, simbolizando os mundos da

235 Carência esta plenamente justificada, dado que não se trata de objetivo enunciado pelo filme 236

ELIAS, Norbert. Op. citada, p.18-19 237

VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. 1995, p. 41-42 238

A esse respeito, ver NAPOLITANO, Marcos. A síncope da ideias. A questão da tradição na música

133 bossa nova e do samba e desaguando no ZiCartola. No resto do bloco temático, o arquivo terá diferentes usos.

Logo após as primeiras imagens do ZiCartola (vemos o lugar onde foi o bar, filmado no tempo da enunciação, porém em p&b, o que dá uma sensação de registro antigo, com sobreposição de ilustrações do cardápio), vêm depoimentos de Zica e Cartola e uma montagem de fotos de época. Nas fotos, registradas com movimentos incertos e variados (aproximações, deslocamentos laterais, ora abertos, ora fechados), enfatizam-se as pessoas que fizeram a história do lugar. Muitos sambistas – como Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Élton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Aracy de Almeida entre tantos outros – e jornalistas como Sérgio Cabral. Na banda sonora, Cartola canta Peito Vazio, evocando a saudade afogada no álcool.

Aqui, como nas tomadas do cemitério no começo do filme, a ênfase está em personagens populares, ligados ao mundo do samba. O que faz supor que, tanto em um caso como no outro, houve uma seleção, uma mediação seletiva (nas filmagens ou na escolha do material registrado) que elegeu determinado tipo de personagem para compor ambas as cenas. O MPB Especial com Zica e Cartola é um indício deste processo: no programa, Zica comenta que o bar foi financiado por amigos – engenheiros, advogados que entraram como capitalistas. E também que o local era freqüentado pelas elites. O ex- presidente Juscelino é citado nominalmente. Da mesma forma, podemos supor que tenham comparecido ao enterro de Cartola autoridades não contempladas nas cenas iniciais do filme (ou pelas filmagens de origem). Afinal, Cartola era então já uma entidade cultural do Rio de Janeiro e do Brasil, o que faz crer que haveria ali políticos e personalidades sempre dispostas a aparecer nessas ocasiões. Ou seja, o filme dá sinais de ter feito um construção do popular menos imbricada com outros segmentos sociais do que os indícios fazem supor que ela realmente foi.

Já quando trabalham com as imagens selecionadas por Silvio Tendler para a realização de Jango, que criam o elo entre o ZiCartola e seu tempo, os autores reincorporam o espírito experimental de Júlio Bressane. Em meio ao registro de uma gravação de Acontece com Cartola e Paulinho da Viola (mais uma passagem de bastão no espectro da cultura brasileira), as imagens dos militares ocupando as ruas do Rio de Janeiro estão em sentido

134 invertido, de trás para frente, como o plano do disco de Mandarim, um claro signo de retrocesso da tomada de poder pelos grupos que levaram a cabo o golpe de 1964.

Por fim, vale ressaltar o contraste que as imagens televisivas de Paulinho e Cartola, de um especial da TV Globo, fazem com aquelas de Partido Alto (1976), curta- metragem de Leon Hirszman, feito em colaboração com o próprio Paulinho da Viola. Se o programa televisivo enfatiza o encontro de gerações em tom laudatório, o filme busca esquadrinhar, como um registro antropológico, uma manifestação cultural em vias de se perder justamente pela pasteurização levada a cabo pela excessiva industrialização da cultura.

O final do bloco marca a importância do ZiCartola no momento de resistência político-cultural em que o país se encontrava, com falas que remetem a manifestações que ocorriam lá ou que ali foram gestadas, como os shows Opinião (calçado com imagens de O Desafio, 1965, de Paulo César Saraceni) e Rosas de Ouro. Mostra o fim do bar e a ida de Cartola para a casa do pai que o rejeitara na infância. Curiosamente, o pai pede a ele (em especial da TV Globo) que cante a música que fez para alertar a enteada sobre os perigos da vida, quando esta deixou o lar (O Mundo é um Moinho). Justo ele, que, como pai, fez o papel inverso, abandonando o filho.