• Nenhum resultado encontrado

Nascimento das escolas de samba/A venda de sambas/O samba e o Rio de

PARTE 2 ANÁLISE DE CARTOLA, MÚSICA PARA OS OLHOS

2.3. Segmento 1: A juventude de Cartola e o nascimento do samba

2.3.5. Nascimento das escolas de samba/A venda de sambas/O samba e o Rio de

Os três blocos seguintes inserem o personagem Cartola em uma narrativa maior, que é a da adoção do samba como matriz da cultura popular urbana brasileira, capaz de representar a nação como um todo. O primeiro deles nos contará como foi o processo de adoção do título de escolas de samba pelas agremiações e reviverá, num misto de depoimento e reconstrução encenada (as atualidades reconstituídas a que Lírio Ferreira faz alusão), como eram os ensaios para o lançamento de um samba novo nos anos 30 e 40. A voz de Cartola e um trecho de Escola de Samba, de Tourinho, dão conta da fundação da primeira escola, Deixa Falar, e da Mangueira.

A narrativa recorre mais uma vez, então, a Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos. Agora para uma representação mais direta: o trecho do filme em que, durante um ensaio da escola Unidos do Cabuçu, da qual fazem parte os protagonistas da história, um homem anuncia a chegada de visitantes ilustres: “Atenção, acabam de chegar os nossos amigos da gloriosa escola de samba Portela”. A imagem se desloca direto para o casal porta-bandeiras/mestre salas, com a câmera fazendo uma lenta grua que, em metade do movimento, mostra as bandeirolas que enfeitam as ruas, marcando uma rima visual com aquelas mostradas por ocasião do trecho em que a narrativa fala do abandono de Cartola na

118 Mangueira e de seu acolhimento pela comunidade. O áudio da cena de Rio 40 Graus se divide com a narração (depoimento de Hermano Vianna), que diz que, dali em diante, aqueles lugares não poderiam mais ser classificados como violentos, que haviam se tornado altamente civilizados.

Segue-se uma evocação do samba de quadra – um samba lento, calmo, segundo a voz de Cartola. Primeiro sob as imagens do sambista e pintor primitivo Heitor dos Prazeres (e do documentário de curta-metragem homônimo de Antônio Carlos Fontoura, de 1965), depois com a reconstituição dos ensaios desses sambas, revividas em imagem e pelo passo a passo descritivo na voz de Élton Medeiros. Por fim, a letra da música da reconstituição apresentada, aliada ao depoimento de Xangô da Mangueira nos dão a chave para interpretar os sambas daquele período como os verdadeiros formadores de uma tradição, a argamassa que forja um espírito comum222. Vale do São Francisco, enredo da Mangueira de 1948, assinado por Cartola e Carlos Cachaça, louvava as terras nacionais, com a montagem enfatizando os versos “Foi Deus, foi o mestre/Quem fez meu Brasil!/Meu Brasil! Meu Brasil!” Logo a seguir, Xangô fala da longevidade do samba daquela época, em comparação com os de hoje: “Agora, você faz um samba hoje, canta hoje, e amanhã já se esqueceu. E naquela época, não. Cantava ontem e cantava toda a vida”.

Essa fala pode ser considerada como uma chave para a visão que o filme traz sobre o lugar do samba e sobre o marco fundador de sua tradição. Estamos diante do eterno, que confronta o evanescente (o samba daquele determinado momento histórico, em cotejo com o samba e as outras músicas de hoje). Alia-se, pela narrativa, uma noção de samba e cultura genuínos, nascidos no morro, reforçados pela imagem das comunidades (sob as bandeirolas) e da arte primitiva de Heitor dos Prazeres.

O antagonista dessa tradição inventada nos morros cariocas é o mundo do asfalto e seus representantes compradores de samba, tema do bloco seguinte. Alguns dos personagens colhidos em filmes nacionais e presentes em Cartola são mais antagonistas do que outros. Exemplo disso são os personagens de Maurício (Jece Valadão), de Rio Zona Norte (1958, Nelson Pereira dos Santos), ou os representantes dos estúdios de Quem

222

Sem dúvida, a música é um elemento fundador, na sociedade urbana contemporânea, das comunidades imaginadas, tal qual descritas em ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas, 2005

119 roubou meu samba (1959, de José Carlos Burle). Outros compradores cumprem menos a função de antagonistas que a de mediadores, como o Mario Reis, de Mandarim (1995, Júlio Bressane), que sobe o morro para prospectar as canções que lançará no rádio. Cartola é parte ativa nesse período da história, pois foi um dos primeiros compositores a vender sambas. Intercalada a cenas do filme, sua história ganha a ilustração mais direta do primeiro segmento: os três filmes conseguem oferecer uma boa ilustração ao relato feito por Cartola a um programa de TV.

E, no caso de Rio Zona Norte, há um reforço à ideia de que de um lado estavam os verdadeiros formadores de uma genuína cultura brasileira e do outro aqueles que os exploravam, interpretação subjacente ao filme. Isso está presente em Cartola, na utilização da cena em que o compositor Espírito (Grande Othelo), canta um trecho da música que querem lhe tomar (“Samba meu/que é do Brasil também), olhando o horizonte, na porta de um trem em movimento do qual cairá. Esse desenlace (a queda) não aparece em Cartola, mas a cena faz pano de fundo para depoimento do próprio compositor, que diz que vendia os sambas, mas queria que seu nome entrasse junto com o do comprador, significando que ele resistiu à usurpação da qual o personagem de Grande Othelo foi vítima.

Ressalte-se ainda no segmento o uso de um plano de Mandarim em que a imagem invertida nos faz ver discos quem sobem do mar às mãos do personagem de Mario Reis, como algo que sai da potência emocional/criativa simbolizada pelo mar e vem dar nas mãos de alguém. Essa imagem, usada tal como está no original, talvez tenha também sido motivadora para as inversões que veremos mais adiante nas cenas de rua das ações do exército nos tempos de regime militar.

Após esse contraponto da venda dos sambas, um novo bloco vem fechar a questão do discurso da nação e novamente retomar o contexto de época. É o trecho que começa com imagens aéreas do arquivo de Pedro Lima e a música Infeliz Sorte, de Francisco Alves e Cartola, na voz do primeiro. A música introduz o tema das derrocadas de Cartola e do Brasil que será abordada no bloco seguinte. Logo após esse início, as imagens de Memória do Carnaval (1975), de Adhemar Gonzaga, são acompanhadas da voz over de Hermano Vianna (e depois on) e de Nelson Nóbrega, que farão o discurso sobre o

120 delineamento da questão nacional e da originalidade do Brasil, ocorrido no governo Vargas, e com ocupação do espaço de representação do país pelas escolas de samba.

Neste trecho – em especial nas poéticas imagens com a sombra do bonde e dos arcos da Lapa sob o casario do bairro, com o som da música Vai Saudade (1964), de Heitor dos Prazeres (entremeadas com imagens do próprio no curta-metragem de Antônio Carlos Fontoura), o filme parece colocar esse Brasil construído pelo samba em um passado que já não pode ser reconstituído, objeto de nostalgia e tristeza evocadas pela composição som/imagem e acentuadas pelo uso dos depoimentos sobre a Lapa boêmia que entram logo a seguir. Durante quase um minuto são encadeados depoimentos de Moreira da Silva, Madame Satã e Aracy de Almeida sobre a vida boêmia daqueles tempos. Aqui, existe uma forte valorização do caráter documental das imagens, todas elas retiradas do programa televisivo Histórias da Lapa, do arquivo da TV Cultura. Os trechos utilizados, apesar de bastante recortados (seguindo o estilo de montagem de Cartola), casam fielmente som e imagem do material copiado, que estava em mau estado, com as fitas magnéticas registrando dropouts223. Aqui – como em outros trechos – a má qualidade do material de arquivo é suplantada por seu valor documental.

Aproveitando a menção ao nome de Noel Rosa por Madame Satã, a narrativa continua com uma fração de uma música dele em parceria com Cartola (Qual foi o mal que eu te fiz), que faz a transição para o relato de um fato histórico: a passagem, durante a 2ª Guerra, do maestro Stokowski pelo Brasil, a quem o compositor da Mangueira foi apresentado por Villa-Lobos. Cartola não perdeu a oportunidade de gravar com ele. O trecho ganha ilustrações de Retrato de Villa-Lobos (1964), de Miguel Schneider, e de Aviso aos Navegantes, que tem imagens do navio Uruguay, o mesmo que trouxe ao Brasil o maestro britânico de origem polonesa. Nos dois casos, as imagens entram em cena para dar sustentação ilustrativa ao texto narrado.

Entre as imagens dos dois filmes, mais uma vez há espaço para exibir a obra de Cartola: após ele falar que “mandou seu recado” na gravação com o maestro, entra

223

Material com perda de informações visuais ou sonoras, em razão de a fita magnética estar amassada. Segundo Hilton Lacerda, no depoimento já mencionado, as imagens copiadas para o filme eram provenientes de uma cópia em U-Matic, armazenada pela TV Cultura. O original teria sido rodado em 16mm ou em 1 polegada, com direção de Fernando Faro, mesmo diretor de Ensaio e MPB Especial.

121 Quem me vê sorrindo (dele e de Carlos Cachaça), acompanhada por imagens do Carnaval extraídas de Folia (1974), curta documental de Rodolfo Neder, que traz imagens feitas pela Cinédia do carnaval no início dos anos 40. A imagem do navio Uruguay e a menção à vinda de Stokowski são ganchos para relembrar a Política da Boa Vizinhança americana e a guerra, ilustrados por Copacabana (1947, Alfred Green), com cena de Carmen Miranda cantando Tico-tico no Fubá, e o documentário O Brasil na Guerra: a FEB contra o nazifascismo (1970, de Jorge Ileli, produção do INC). Logo a seguir, cenas de It´s all True (dança no salão e em um barco, Orson olhando por um telescópio), dão a entender que por aqui a festa reinava.