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O DETERMINISMO BIOLÓGICO

3.3 A HERANÇA GENÉTICA COMO VINCULAÇÃO PATERNO-FILIAL

O DNA é uma molécula que contém, de forma codificada, a informação genética de cada indivíduo, estando presente nas células do corpo humano e se encontra organizada em forma de escada em espiral, cujos “degraus” compõem quatro bases repetitivas conhecidas como adenina, guanina, citosina e timina (AGCT), as quais se combinam de duas em duas, formando uns pares básicos, seja A-T ou C-G, como degraus (LUGO apud BARACHO in: LEITE, 2002, p. 148). Mediante técnicas específicas, é possível isolar e identificar esses códigos, de modo a fornecer um mapeamento que torna única cada pessoa, isso porque, embora a matéria genética esteja codificada por essas quatro bases repetitivas que formam os pares básicos, a maior parte da ordem dos três bilhões de pares básicos do DNA, está presente em todos os indivíduos, fazendo com que todos tenham orelhas, nariz, olhos, órgãos internos, braços, pernas, etc.; o resto, da ordem de três milhões de pares básicos aproximadamente, é significativamente distinto de um indivíduo a outro. Estes últimos pares são conhecidos como polimórficos e constituem uma décima parte de um por cento dos pares que compõem o DNA (LUGO apud BARACHO in: LEITE, 2002, p. 148).

O DNA de cada pessoa é, então, único e específico (exceto o dos gêmeos idênticos), constituindo esses fragmentos polimórficos particulares de cada pessoa um vestígio pessoal

em cada núcleo celular e ajudando a estabelecer padrões discriminatórios, que possibilitam o estabelecimento de vínculos genéticos. São nesses fragmentos, também ditos locus polimórficos onde são encontradas localidades específicas, chamadas loci, que representam determinadas heranças genéticas herdadas, denominadas alelos e que permitem a individualização de uma pessoa, a partir de um fragmento aportado pela mãe e outro aportado pelo pai, que são comumente distintos entre si (LUGO apud BARACHO in: LEITE, 2002, p. 148).

Uma investigação de paternidade tem por base a análise dos códigos genéticos, através das informações contidas na mãe, no filho e no suposto genitor, cujo grau de confiabilidade é de 99,9999% na inclusão do vínculo genético. Na exclusão um alelo encontrado no filho que não está presente na mãe, também está ausente no pai, permitindo a conclusão de que o investigado não é o pai biológico do filho em questão. Na confirmação da paternidade fica evidente que o mesmo alelo presente no DNA do filho também existe no DNA do suposto pai. Esta análise é repetida para vários locos gênicos, permitindo conclusões seguras. Quando em vários locos genéticos os alelos do filho (que não foram os herdados da mãe) estão ausentes no suposto pai, há a indicação de que o pai biológico deve ser outro e não o investigado, caracterizando-se assim uma exclusão de paternidade. Quando em todos os locos estudados os alelos presentes no filho, que não foram herdados da mãe, estão presentes no investigado, a conclusão é de que este é o pai biológico do filho em questão, caracterizando-se a inclusão da paternidade.

Todavia, é interessante observar que biologismo e afetividade não se relacionam necessariamente. Assim, uma ação de investigação de paternidade que se fundamenta num

dado meramente biológico valoriza apenas um aspecto da questão, numa perspectiva francamente exclusivista e restritiva.

Além de tudo, um outro motivo de preocupação dessa preferência biologista na determinação de paternidade se refere ao quantitativo de testes de DNA realizados no Brasil. Segundo artigo de José Geraldo de Freitas Drumond, médico e Professor de Medicina Legal da Universidade Estadual de Montes Claros/Minas Gerais, estima-se que são realizados em torno de 10 (dez) mil exames de DNA por ano, no Brasil, através de, pelo menos, 50 (cinqüenta) laboratórios especializados, cuja divulgação pode ser encontrada na mídia (DRUMOND, 2006, p. 1).

A procura pelos exames de DNA se deve, em grande parte, à publicidade constante acerca da certeza do resultado, bem como à cultura da consangüinidade das relações de parentesco, reforçada nos últimos tempos pelo declínio do custo final a ser pago pelo consumidor. Até a década de noventa, o valor médio do exame de DNA era de R$ 1.200,00, hoje esse valor pode chegar até a metade ou menos, girando em torno dos R$ 500,00 por teste (DRUMOND, 2006, p. 1).

Diante dos números apontados, não se pode continuar à margem de estudos específicos desse fenômeno assustador, sobretudo quanto ao aspecto principal do exame, que é a atribuição de paternidade. A determinação de paternidade não é somente indicar um nome no registro de nascimento, pois pode implicar também no exercício do poder familiar, com todos os seus direitos e deveres correlatos. Percebe-se de logo que a carência dessas

estatísticas precisas e confiáveis em todo o território nacional traz importantes desdobramentos de cunho econômico e social.

De fato, não obstante à idéia inicial de infalibilidade do exame de DNA, sobretudo veiculada pela mídia, especialmente em jornais, programas de televisão e novelas (DIAS, 2003, p. 1), é preciso que se tenha cautela diante do que se pode esperar de um teste sangüíneo realizado em laboratório, pois, embora seja de grande valia a sua utilização na identificação de uma pessoa (não se pode olvidar a grande ferramenta que representa um teste de DNA para o esclarecimento da identidade de seres humanos em grandes catástrofes, como acidentes aéreos, terremotos, explosões ou guerras). A utilização do DNA como meio de atribuição de paternidade foi severamente criticada pelo Prof. Ivo Antônio Vieira, que declarou:

O Brasil é um dos poucos países que utiliza um exame tão complexo, e de forma tão irresponsável, para investigação de vínculo genético. Nos países mais desenvolvidos, em que o DNA tem importância capital no conhecimento humano, raramente se utiliza nos tribunais com esta finalidade. Aqui o maior incremento deve-se, muito provavelmente, por interesses econômicos de quem pede e de quem realiza o exame (apud DIAS, 2003, p. 2).

Em que pesem esses dados biológicos determinantes da vinculação entre o pai – gerador – e o filho, a relação paterna não se instala automaticamente com o nascimento da criança. Uma relação entre dois indivíduos distintos se inicia em dado momento e se desenvolve ao longo do tempo, assim o nascimento do filho, muitas vezes, é o momento inicial da relação paterno-filial, mas não se esgota aí; muito pelo contrário, pai e filho terão a vida inteira em comum para cultivar os laços afetivos que surgem da convivência e que

podem permanecer ou podem ser interrompidos pelos acasos da vida. Como dito, o nascimento da criança origina, quando muito, o termo inicial da relação paterno-filial, mas não é meio e fim dessa relação.

As histórias de vida de muitas pessoas comprovam o que já foi dito por muitos psicólogos: a relação entre as pessoas é construída, não nasce pronta. E, embora o dado biológico seja o elo inicial da relação entre pai e filho, não se esgota nele.

O fato é que a paternidade não se restringe à vinculação biológica. Esta é perfeitamente verificável pelas diversas técnicas acima mencionadas e isso tem lá sua relevância, sobretudo para as questões médicas (doenças geneticamente transmissíveis, impedimentos para relações sexuais de pessoas oriundas do mesmo descendente, que possam vir a prejudicar eventual prole, e até mesmo para permitir o conhecimento da origem genética de alguém46). Contudo, a paternidade plena é mais do que isso; apresenta-se sob variadas funções e apenas no exercício delas é que se encontra a verdadeira paternidade.

Ao se atribuir paternidade com base em dados exclusivamente biológicos, permite-se consolidar um perigoso determinismo científico que amputa a relação paterno-filial plena, pois esta se verifica na conciliação dos dados genéticos e afetivos, desenvolvidos entre pai e filho. Quando se prescinde da vinculação biológica, ainda assim a afetividade permite a paternidade ideal, mas o contrário é impossível, pois a vinculação meramente biológica não é capaz, por si só, de estabelecer uma relação paterno-filial. Ainda assim, é possível encontrar,

46

Sobre o tema, conferir o alerta que é dado pelos Profs. Ivo Vieira e Rodrigo Pinheiro Vieira acerca da importância na identificação da técnica utilizada no teste de DNA (VIEIRA; VIEIRA, 2006, p. 6).

no direito brasileiro, instrumentos jurídicos que confirmam a aplicação da tese biologista, como é o caso da Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça, analisada em seguida.

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