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O VÍNCULO BIOLÓGICO E OS MEIOS CIENTÍFICOS DE CONHECIMENTO DA FILIAÇÃO

O DETERMINISMO BIOLÓGICO

3.1 O VÍNCULO BIOLÓGICO E OS MEIOS CIENTÍFICOS DE CONHECIMENTO DA FILIAÇÃO

Desde os tempos mais remotos, o ser humano imprimiu a sua marca através da prole, mediante a procriação. Embora a identificação genética através de complexos e sofisticados exames laboratoriais, que possibilitam o reconhecimento de linhagens genéticas entre as pessoas, seja um fato recente, o dado biológico sempre existiu. É certo que nem sempre importou a comprovação biológica de parentesco para se estabelecer vinculação jurídica entre os seres, haja vista as saídas estratégicas realizadas ao longo da história, como as adoções que datam desde a Antigüidade – já no tempo de Gaio (Roma antiga) esse recurso era adotado pelas famílias que não podiam ter seus próprios filhos naturais (COULANGES, 2006, p. 59) – ou as inúmeras presunções de paternidade estabelecidas pelas legislações ao longo da modernidade presente, sobretudo, nas codificações ocidentais.

Vale lembrar que o conceito de parentesco no direito romano nem sempre correspondeu a critérios biológicos, como informa Fustel de Coulanges:

Segundo Platão, parentesco seria ter em comum os mesmos deuses domésticos. Dois irmãos, acrescenta Plutarco, são aqueles que têm o dever de fazer os mesmos sacrifícios, de ter os mesmos deuses penates e de partilhar do mesmo túmulo (2006, p. 61).

Se de um lado o homem sempre necessitou estabelecer relações de família, por outro, várias foram as fórmulas para se estabelecer os critérios de parentesco, sendo certo que no direito antigo era a religião doméstica que definia a formação familiar. Nesse contexto, importava o menos possível a ligação genética, embora não fosse desprezada a consangüinidade, uma vez que a adoção, por exemplo, só era utilizada em última instância, após a certeza da impossibilidade de procriação pelos pais. Com o passar do tempo, essa família que agregava pessoas mediante a religião doméstica, passou a se concentrar em núcleos cada vez menores, até atingir a sua formação moderna estabelecida sobre pai, mãe e filhos – naturais e, excepcionalmente, adotivos. Contudo, a evolução da família moderna não se restringe apenas a esse aspecto, como bem já ressaltava Jean Arnaud:

No século XIX, com a desagregação da família extensa e o desaparecimento consecutivo da solidariedade, que constituía um de seus interesses, a família nuclear já se torna alvo de críticas... quando, no final do século XIX, os solidaristas colocam sua teoria do quase contrato social contra a dos juristas socialistas desejosos de fundir o direito privado no direito público, eles tampouco pensaram na família. Ora, no mesmo tempo, muda o espaço familiar, o fundamento da família perde seu caráter institucional, os papéis se transformam. O que resta da família é percebido como lugar de tirania... esse tema será retomado pelas feministas às quais se deve um certo número de melhorias ulteriores da situação da mulher casada no seio da célula familiar. Mais tarde, esse mesmo discurso será adotado pelo conjunto de defensores dos direitos da criança, com grande sucesso. Outras transformações foram provocadas pela evidente inadequação do direito de família à variação das condições sociais, políticas e econômicas no decurso desse século e do nosso (ARNAUD, 1999, p. 86- 87).

O parentesco hoje é o vínculo jurídico que pode ser estabelecido pela consangüinidade ou por outra origem (adoção, inseminação artificial heteróloga), daí decorrendo o parentesco consangüíneo ou civil, sendo o primeiro “quando duas ou mais pessoas se originam de um ancestral comum” e o segundo “quando o vínculo é estabelecido não já por laços de

consangüinidade, mas por ato jurídico voluntário, denominado adoção, ou por reprodução humana assistida heteróloga” (TEPEDINO, 2004, p. 444).

Com a nova configuração de família, principalmente mediante a restrição do núcleo familiar em razão de aspectos econômicos preconizados pelo capitalismo, em grande medida, tornou-se imperiosa a comprovação da legitimidade de filiação. É curioso observar que, ao mesmo tempo em que se privilegiava a legitimidade de filiação, ainda assim não se falava propriamente de origem genética, dada a escolha pela supremacia da paz social, que presumia filhos nascidos na constância do casamento mesmo de origem biológica diversa do marido da mãe. O Código Civil brasileiro de 1916 pautava a família legítima pela constituição mediante o casamento, com exclusividade, afastando a filiação ocorrida fora do casamento e impossibilitando, inclusive, o reconhecimento do filho pelo pai ou pela mãe, nessas hipóteses. Em 1988, com a Constituição Federal, foram afastadas definitivamente as designações de ilegitimidade na filiação, em qualquer de suas formas.

Assim, com os avanços da tecnologia da ciência, especialmente no ramo da biologia, possibilitando o reconhecimento de vínculos genéticos entre pessoas, surgiu um fenômeno curioso que segue na contramão da história da humanidade, como visto há pouco: a supremacia da consangüinidade parental. Esse dado, por sua vez, abre duas linhas de discussão que se entrelaçam ao final: o parentesco estabelecido sobre critérios exclusivamente biológicos e a questão da afetividade, ou, como diria Cláudia Lima Marques, um retorno à “emocionalidade”, na esteira do que já definira Erik Jayme como “retorno dos sentimentos”, citado pela mesma autora (apud MARQUES in: LEITE, 2002, p. 28).

Nesse sentido, há de se ter em conta dois aspectos da origem genética: o direito ao conhecimento dessa origem e a possibilidade de se estabelecer uma relação de parentesco. Paulo Lobo já advertira de que na primeira hipótese trata-se efetivamente de um direito fundamental e como tal o exame de DNA seria primordial para a decisão final (LOBO, 2003, p. 151-154). A questão mais delicada está mesmo quanto a essa possibilidade de se estabelecer vinculação jurídica com base exclusivamente em critérios biológicos. Antes de mais nada, mister se faz conhecer um pouco mais sobre o DNA e os testes que possibilitam o seu conhecimento, suas peculiaridades e técnicas adotadas, sobretudo no âmbito forense, para a inclusão ou exclusão de paternidade.