3.2 A tragédia Antígona
3.2.1 A heroína e as relações opositivas
Em todas as peças conservadas de Sófocles apresenta-se com grande
intensidade e força, um problema de ordem ética encarnado nas personagens.
Antígona,130 em particular, merece ser considerada em primeiro lugar, de tal modo a peça é representativa da forma como Sófocles deu à lenda o seu alcance trágico.
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Para a análise aqui realizada, selecionou-se entre as várias traduções de Antígona, a 9a. edição traduzida do grego por Mário da Gama Kury, cf. bibliografia.
O dado inicial da peça é o fato de a heroína Antígona, contra a ordem
promulgada em Tebas, ter sepultado seu irmão Polinices, que fora morto em luta
fraticida que o opunha a Etéocles, devendo pagar com a vida esta iniciativa. Na ação
dramática, Antígona age sozinha, sem a ajuda da irmã, passando a ser perseguida por
Creonte, o novo rei. Tem-se, portanto, de um lado um ato solitário, do outro uma
repressão baseada na autoridade. Daí nasce uma série de oposições que comandam
a peça.
Essas oposições correspondem às quatro grandes cenas da peça. Observa-se
que cada cena opõe duas personagens em contraste. Assim, desde a primeira cena
têm-se as oposições entre Antígona e sua irmã Ismene, evoluindo para a oposição
entre Creonte e Antígona, em seguida, Creonte e o filho Hémon e também o adivinho
Tirésias.
Há, portanto, um conflito central que comanda a peça e, para cada uma das
duas personagens principais, um ou mais conflitos com as outras, que ajudam a
precisar os princípios da sua ação.
O fato de Sófocles ter iniciado a peça com um diálogo entre as duas irmãs, de
ter mesmo imaginado estas duas irmãs tão diferentes, uma devotada ao morto,
corajosa, desafiando tudo, a outra receosa e preocupada em não realizar nada que
fosse impossível, constitui recurso importante para pôr em relevo o heroísmo de
Antígona. Antígona faz aquilo que Ismene não tem coragem de fazer.
Ismene, contudo, não está em desacordo com Antígona, a não ser na
possibilidade de agir como esta quer:
Ismene – pobre de mim! Pensa primeiro em nosso pai,
Peço indulgência aos nossos mortos enterrados Mas obedeço, constrangida, aos governantes; (74-75) Não fujo a ela (a lei dos deuses); sou assim por natureza; não quero opor-me a todos os concidadãos. (86-87)
Ismene, agindo assim, mostra, por contraste, a coragem de Antígona, sem que
haja entre elas algum conflito de princípios; esse conflito está reservado à cena com
Creonte, em que se instala o contraste entre duas regras de vida, duas formas de
ideal, duas espécies de deveres.
Os princípios de Creonte são conhecidos desde o início da ação dramática,
porque as personagens de Sófocles apresentam uma característica básica, uma
necessidade de explicitar quais são as suas regras de conduta:
Creonte - Não é possível conhecer perfeitamente
um homem e o que vai no fundo de sua alma, seus sentimentos e seus pensamentos mesmo, antes de o vermos no exercício do poder; senhor das leis. (... )
Pois eu – e seja testemunha o grande Zeus onividente – não me calaria vendo
em vez da segurança a ruína dominar o povo, e nunca trataria os inimigos
de minha terra como se fossem amigos. (200- 215)
Os princípios de Creonte giram em torno da cidade e da função pública por ele
ocupada, sendo por isso que proibiu que se sepultasse Polinices, que tinha atacado a
cidade. Quanto aos princípios que animam Antígona, são completamente outros. As
únicas leis que ela conhece são os grandes princípios morais que têm os deuses,
reconhecendo que a ordem de Creonte opõe-se à ordem de Zeus:
Antígona - Mas Zeus não foi o arauto delas (as leis do Estado) para
nem essas leis são ditadas entre os homens
pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem,
é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram, e não seria por temer homem algum,
nem o mais arrogante, que me arriscaria
a ser punida pelos deuses por violá-las. (511-522)
Todos estes pares de deveres: família e Estado, humanidade ou autoridade,
religião ou respeito pelas leis, formam os conflitos que Sófocles apresenta na maioria
das cenas da peça.
Na outras cenas da peça, Creonte se vê submetido aos argumentos de seu filho
Hémon e depois aos argumentos do adivinho Tirésias, que jogam a favor da heroína.
Hémon como Antígona, mas de uma forma mais intermediária, representa a
humanidade e, em parte, o sentido político, na medida em que busca apoio na opinião
dos habitantes de Tebas, pedindo ao pai que não se torne duro a ponto de não ouvir
nenhum conselho:
Hémon - É meu dever notar por ti, naturalmente,
tudo que os outros dizem, fazem ou censuram, pois o teu cenho inspirador de medo impede os homens simples de pronunciar palavras que fizeram teus ouvidos. Eu, porém, na sombra, ouço o murmúrio, escuto as queixas da cidade (...) Não tenhas, pois, um sentimento só, nem penses que só tua palavra e mais nenhuma outra
é ponderado e sem rival no pensamento
e nas palavras, em seu íntimo é um fútil. (780-805)
Somando-se ao argumento a favor de Antígona, Tirésias representa a religião e
fala sobre a cólera dos deuses com os habitantes de Tebas:
Tirésias - ...é por tua causa,
por tuas decisões, que está enferma Tebas. Nossos altares todos e o fogo sagrado estão poluídos por carniça do cadáver do desditoso filho de Édipo, espalhada pelas aves e pelos cães; por isso os deuses já não escutam nossas preces nem aceitam os nossos sacrifícios. (1125-11320)
No entanto, o rei revela-se tirânico e ímpio, cedendo tarde demais, quando
Antígona e Hémon morrem sem saber que ele vinha libertá-los.
Em cada uma dessas quatro cenas, as personagens opõem-se aos pares, por
vezes em diálogos firmes e vibrantes em que colocam toda a sua fé, depois, muito
freqüentemente, em breves trocas, cada verso respondendo ao precedente, embora o
rigor das antíteses contribua para esclarecer as posições e dê às diversas escolhas
contornos claramente definidos.
Toda a peça se desenrola nestes contrastes, que funcionam como um teste a
um ideal moral. As exigências morais vêm contrariar as da disciplina. Sófocles, em seu
teatro, aprecia opor aos pares as normas éticas. Observam-se, então, contrastes de
temperamento, que são também contrastes de valores e de ideal.
Em contrapartida, o coro limita-se a seguir inquieto essa discussão que o
ultrapassa. No início, canta a recente vitória. Quando sabe que Polinices foi sepultado,
empregado. Canta o desastre, quando Antígona é condenada, o amor, depois da cena
com Hémon, noivo de Antígona, os grandes reveses mitológicos, quando Antígona é
levada. E dirige uma prece a Dioniso, quando tudo parece arranjar-se. Como já se
disse, a tragédia inteira parece residir no confronto entre as personagens.
Desse ponto de vista, Sófocles parece trazer para assunto de suas tragédias a
evolução moral que, em Atenas, acompanhava a evolução social. A velha moral
aristocrática devia ser repensada à luz da razão. Entre a honra individual e o dever de
proteger aos seus, entre a honra reconhecida por todos e os sentimentos individuais,
entre os direitos dos deuses e os do Estado, produziam-se clivagens, surgiam
conflitos, operavam-se tomadas de consciência, aspectos importantes dos quais
Sófocles foi testemunha.
Talvez seja por isso que as personagens da epopéia se tornam, em Sófocles,
os porta-vozes de um mundo novo, vivem problemas que a lenda ignorava, encarnam
um ideal que, sem cessar, exigia mais do homem e o fazia cada vez mais o único juiz
do seu dever. Para além destes contrastes, encaminha-se um problema primordial em
Sófocles, o problema do heroísmo.
Albin Lesky131 lembra que em Dioniso encontram-se, provavelmente, uma das
forças vivas que impulsionaram o desenvolvimento do drama trágico como obra de
arte, mas, quanto ao conteúdo, a tragédia foi configurada por outro campo da cultura
grega, pelo mito dos heróis. A tragédia dionisíaca se fundiu com o tesouro de mitos
heróicos do povo helênico e nele encontrou seu verdadeiro conteúdo.
Por meio do mito do herói a tragédia adquiriu a seriedade e dignidade de sua
da existência humana em geral, não uma cosmovisão derivada dos seres vivos, mas
uma visão do cosmo de uma imediatidade e riqueza que não tem igual.
Há no homem trágico uma ambigüidade profunda, desvendada pelo caráter das
personagens. Verifica-se em Sófocles duas espécies de personagens que se
recusam a ceder: umas são obstinadas e procedem mal, como Creonte, as outras são
heróis ou heroínas destinadas à admiração, precisamente porque nada as quebra,
como Antígona. Só as distinguem o fato de que, aquelas têm torça e querem fazê-la
respeitar, enquanto estas não têm nada, estão esmagadas, abandonadas, mas
conservam um ideal que justifica o seu sacrifico.
O fato da solidão, de serem rejeitados pelos outros homens e enganados pelos
deuses não lhes ofusca a grandeza, pelo contrário, esta circunstância confere-lhes um
caráter trágico. A atitude do herói, o seu apaixonado desejo de honra, a sua recusa de
qualquer compromisso toca o homem tão fortemente, porque esta atitude condiz com a
solidão e com a aceitação da morte.