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Dos caracteres originais da tragédia grega o principal é evidente, num primeiro

olhar: o gênero funde numa única obra dois elementos de natureza distinta, que são o

coro e as personagens, o elemento coral e o dramático. O primeiro expressava-se em

vários metros líricos, arranjados em estrofes e antístrofes, às vezes com a adição de

épodos,90 sendo estes últimos entoados, principalmente, em trímetros iâmbicos. O coro dispunha-se em forma retangular (diferente do coro circular do ditirambo) e seus

movimentos decorriam desse arranjo; suas evoluções eram acompanhadas pela

música da flauta. A dança principal do coro, conhecida como emmêleia, tinha um

caráter majestoso.

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WILAMOWITZ. Apud LESKI, A. A tragédia grega. Trad. J. Guinsburg e outros. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 36.

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Parte estrutural da ode (oidê, canto) que significa “cantar depois”. Para maior compreensão ver MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 372.

Na tragédia grega, essa partilha do diálogo de uma personagem com o coro,

própria dos procedimentos do ditirambo, permanece essencial. Aparece marcada na

estrutura literária das obras, nos metros usados, correspondendo a uma divisão

espacial, pois uma tragédia representava-se em dois locais ao mesmo tempo. Os

espectadores ocupavam degraus/bancadas que formavam um vasto hemiciclo.

Em frente destes degraus encontrava-se uma parede de fundo dominando uma

cena. Essa cena era o local reservado às personagens. Era dominada por uma

espécie de balcão, onde podiam aparecer deuses. Normalmente, considerava-se que

a ação se desenrolava do lado de fora, à porta de um palácio; em caso de

necessidade, uma máquina de teatro (ou ekkukléma) podia fazer com que aparecesse

na cena um quadro ou um curto episódio revelador de uma ação realizada no interior.

Além desta cena, o teatro antigo comportava aquilo a que se chamava orquestra (ou

orkhêstra).

A orquestra era uma enorme explanada de forma circular, cujo centro era

ocupado por um altar redondo dedicado a Dioniso, reservada às evoluções do coro.

Os dois locais eram bastante distintos; os atores, sobre a cena, não se misturavam

com os coreutas da orquestra e os coreutas nunca subiam para a cena.

As funções eram definidas com precisão, podia a orquestra ir do canto a

danças. Podia, suceder que um chefe do coro (ou corifeu) tivesse com uma

personagem um diálogo, mas o coro no seu conjunto só se exprimia cantando ou, pelo

menos, salmodiando.91 E isto se traduz no metro. Enquanto os atores se exprimem em

trímetros jâmbicos, o coro exprime-se em metros adequados ao lirismo; os versos

acompanhadas de evoluções coreográficas. O resultado é que a tragédia grega se

desenrola sempre em dois planos e que a sua estrutura é comandada pelo princípio

desta alternância.

Representada sem cortina uma tragédia grega não tem atos; em compensação,

a ação se divide em um certo número de partes, denominados episódios, separados

pelos trechos líricos executados pelo coro na orquestra.

Além disso, como é preciso um certo tempo para que este coro entre na

orquestra e se distribua por ela, a estrutura habitual da tragédia comporta,

normalmente, um prólogo (prôlogos), (parte que precede a entrada do coro, em

monólogo ou diálogo, apresentando o assunto do drama e a situação no momento de

seu início), em seguida a entrada do coro, ou párodo (párodos), (primeira intervenção

completa do coro grego, canto que acompanha a entrada do coro, escrita

freqüentemente num ritmo de marcha), depois os episódios (epeisôdia), (cenas de

que participam um ou mais atores com o coro).

Os episódios podem conter passagens líricas, lamentações, cantos incidentais

pelo coro e são divididos por stásima (partes cantadas), que são cantos do coro

executados num lugar fixo, ou seja, na orkhêstra, ao contrário do párodo que se realiza

quando o coro está entrando. Os stásima eram originalmente reflexões ou

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expressões de emoção evocadas pelo episódio precedente. Entretanto essa conexão

desfez-se gradualmente, até que Agaton92 introduziu em seu lugar os embôlima,

(meros interlúdios musicais entre os episódios).

Após o último stásimon vinha o êxodos ou cena final. Quando atores e coreutas

empenhavam-se numa mesma emoção e faziam uma espécie de canto dialogado (ou

kommos), canto lamentoso, da orquestra e da cena ao mesmo tempo.

Tudo isto apresenta um esquema muito claro que se encontra no conjunto das

tragédias gregas e as distingue de qualquer outra obra teatral. Porém, a tragédia

grega não deixou de inovar, de inventar conforme os interesses se modificavam. De

472 a. C a 405 a. C., sofreu o efeito de múltiplos impulsos, que se combinaram numa

evolução quase contínua.

Em particular, a importância relativa dos dois elementos constitutivos da

tragédia - ação dramática e coros líricos - foi se modificando pouco a pouco, a ponto

de se encontrar invertida. Modificação que acabou por se traduzir numa completa

renovação; das peças arcaicas do início chegou-se assim, no espaço de menos de um

século, a um teatro já muito próximo do teatro moderno.

Conforme M. Berthold,93 o coro, era na origem o elemento mais importante da

tragédia. Por ocasião do concurso trágico eram primeiro designados os coregos

(khoregoi), cidadãos ricos que recrutavam e mantinham os quinze membros do coro,

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Agaton foi um Poeta trágico ateniense; o mais importante entre os sucessores dos três grandes tragediógrafos. Sua primeira vitória foi conquistada em 416 a. C. A festa realizada em sua casa para celebrar essa vitória constitui o cenário do Banquete de Platão. Agaton foi um inovador; pela primeira vez ele construiu a tragédia em torno de um tema imaginário com personagens também imaginários, e fez dos cantos do coro simples interlúdios sem conexão com o assunto da peça, preparando assim o caminho para a divisão da tragédia em atos. (Cf. HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica –

grega e latina. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 18). 93

ou coreutas. O coro, considerado o ponto de partida da representação, ligava-se a

pessoas intimamente interessadas na ação em curso.

O número de pessoas no coro parece ter sido de doze na maioria das peças de

Ésquilo (é incerto se nas Suplicantes, data provável de 463 a. C., o coro compunha-se

de todas as cinqüenta filhas de Dânaos); Sófocles teria elevado esse número para

quinze. Os coros continuaram a ser parte integrante da tragédia ao longo de todo o

século V e ao menos parte do século IV a. C.

Os cantos do coro ocupavam um número considerável de versos, o que mostra

ligação importante entre o coro e a ação, sendo através dele que a ação pode tocar os

espectadores, fazendo intervenções, súplicas, esperando que suas emoções marquem

o compasso, de um extremo ao outro, das diversas etapas da ação.

Na evolução dos interesses o coro vai perdendo esse grau de maior

importância e passando a observar a construção das personagens, assiste-se a um

enriquecimento progressivo. Desde o seu início até ao seu fim, a tragédia nunca

deixou de evoluir no mesmo sentido, desenvolvendo sempre a parte reservada à ação.

Inicialmente, a ação apresentava características solenes e hieráticas, tornando-se

gradualmente mais realística.

Quanto às personagens, Ésquilo faz a inovação. Aristóteles assevera que

“Ésquilo foi o primeiro que elevou de um a dois o número de atores, diminuindo a

cenografia”.94 Doravante, as personagens assumem grande importância, passando

inclusive a nomear as peças. Essa evolução está ligada, naturalmente, ao próprio

desenvolvimento da ação. A nova importância dada às personagens traduz-se pelo

enriquecimento da análise psicológica. As personagens já não se contentam em agir:

explicam-se.

A multiplicação do número de personagens permite opor os protagonistas a um

maior número de contrastes. No teatro de Sófocles, os contrastes e provas servem

sobretudo para mostrar as diferenças entre dois ideais de vida ou, ainda, para ilustrar

a força de espírito das personagens. Em Eurípides, cada personagem defende seus

sentimentos ou as suas idéias, fazendo uso do debate organizado, pois é sabido que a

arte da discussão retórica estava então em pleno desenvolvimento.95 Era aquilo a que

se chamava agôn, espécie de confronto organizado, em que se opõem duas longas

tiradas, geralmente seguidas de trocas verso a verso, permitindo que os contrastes se

tornem mais cerrados e mais tensos, quase todas as tragédias de Eurípides

apresentam cenas de agôn.

Tanto em Eurípides como em Sófocles existe uma arte deliberada de gerir o

interesse e de o fazer ressaltar. Recursos como as notícias fragmentadas, alternâncias

de alegria e desânimo e outras reviravoltas são aquilo a que Aristóteles chamava de

peripécias. Em Eurípides estes procedimentos tornam-se a lei do gênero, sendo,

Eurípides considerado o criador da intriga, devido ao seu teatro estar repleto de

artifícios, de surpresas, de confusões, de reconhecimentos. Ele também multiplicou os

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ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho, 1984, p. 242.

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MARSHALL, F. Édipo tirano: a tragédia do saber. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2000, p. 23.

episódios e as personagens a fim de diversificar a intriga e torná-la mais comovente,

da mesma forma que os acontecimentos refletem-se em sofrimentos pessoais e

impotentes, próprios para suscitar a piedade, revelando personagens patéticos e

ações patéticas como uma das tendências essenciais da tragédia.

Enfim, as diversas situações foram tornadas ainda mais patéticas pelo emprego

de dois processos que mais tarde deveriam ser considerados elementos constitutivos

da tragédia grega. O primeiro consiste em levar uma situação ameaçadora até ao seu

limite extremo e até o momento em que o desastre tem que se realizar, o segundo

consiste em tornar esta situação particularmente horrível, supondo na sua origem um

erro da pessoa. No primeiro caso, a situação termina com um “golpe de teatro”, no

segundo, termina com um reconhecimento, podendo o reconhecimento por vezes, mas

nem sempre, se apresentar como um golpe de teatro.

Contudo, a evolução é contínua. O impulso anterior que renova a tragédia grega,

multiplicando os seus meios e deslocando-lhe os centros de interesse, a leva em

quase um século, do mais austero arcaísmo a uma modernidade quase excessiva.

Fato que se observa sobre a rigorosa estrutura e temas da tragédia política de Ésquilo

e a ruptura com a tradição realizada por Eurípides.

Talvez esta mesma modernidade marque, num certo sentido, o fim da tragédia

grega. Porque a evolução foi tal que um dos dois elementos importantes, ao entrar na

sua composição, acabou por perder uma função essencial. Em certas tragédias de

Eurípides, o coro desempenha apenas um papel secundário.

O impasse a que chega a tragédia grega, no tempo em que um dos seus

elementos constitutivos perde o essencial da sua função, coincide com o impasse a

a irreligião sobre a piedade, e em que o futuro do homem parece, no fim de contas, ser

para repensar.96

A história da tragédia vai perdendo em substância mítica de Ésquilo a Sófocles

e deste a Eurípides à proporção que passa da comunidade arcaica à polis dos

sofistas.

Para Vernant, a tragédia é a expressão de uma crise que se evidencia

particularmente no plano institucional do direito público. O homem trágico é um tipo

problemático por se situar entre dois universos “absolutamente contraditórios”; por um

lado é fortemente tributário de valores heróicos, por outro, começa a corresponder a

indagações surgidas nas assembléias e nos tribunais da pólis, fortalecida de maneira

decisiva a partir do séc. V a. C. A crise de identidade que a tragédia manifesta só será

de certo modo contornada pela articulação do discurso filosófico.

O triunfo do individualismo sobre o civismo confirma o que faz a originalidade da

tragédia grega e o seu poder profundo. Mas, o impasse a que chega a tragédia grega

convida a observar um pouco o que os trágicos podem ter dito sobre o homem, visto

que esta evolução no pensamento e na inspiração pode, em definitivo, dar conta não

só das transformações literárias que aqui foram salientadas, mas também do que

ficará em seguida para definir, a saber, o sentido que convém atribuir à própria noção

de trágico.