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5. CONTOS E VÍDEOS DE FICÇÃO CIENTÍFICA EM PRODUÇÃO: A FORMAÇÃO

5.1. Os contos

5.1.1. A história da contracepção (Trinity)

No ano de 2313, em um cenário pós-guerra mundial que dizimou mais de dois terços da população do globo terrestre, o Governo Mundial, instituído como representante das nações remanescentes, aboliu o uso de anticoncepcionais com a finalidade de restabelecer a população humana no planeta. A situação ficou caótica, pois a população cresceu de maneira exorbitante, o que desencadeou um consumo desenfreado de recursos naturais e gerou fome, miséria e epidemias. O Governo Mundial passou a investir em pesquisas sobre a eficiência dos métodos contraceptivos esquecidos no passado. Coube ao Dr. Alexandre Andrade a missão de pesquisar sobre

a contracepção e entregar um relatório final ao Governo Mundial para que medidas fossem tomadas.31

Como já dito anteriormente, os contos foram produzidos com a finalidade de utilização em sala de aula. Não foram estipuladas regras ou normas para essa produção escrita, desde que seu conteúdo se relacionasse aos conceitos científicos dos temas propostos. A história da contracepção, escrito por Trinity, foi abordado no segundo ano do Ensino Médio, nas aulas de biologia que tematizavam os métodos contraceptivos (apresentação, classificação, funcionamento e história dos métodos contraceptivos).

O conto é distópico e apresenta uma sociedade que anseia por mudanças (esforço humano/científico-tecnológico). Na perspectiva dos polos temáticos para a FC (PIASSI; PIETROCOLA, 2007a), Trinity realiza uma adesão à ciência no polo material-econômico, ou seja, a ciência é associada ao conforto e bem-estar, à superação de dificuldades e ao domínio da natureza.

Na passagem da superfície linguística para o objeto discursivo, distinguem-se, a meu ver, dois recortes discursivos com seus respectivos núcleos de significação: Efeitos de Ficção (discurso ficcional) e Efeitos de Evidência (discurso científico). No recorte ficcional, o par locutor-enunciador é facilmente localizado e há linguagem informal, conteúdo adversativo, distopia, caos, cientificismo etc. A seguir, apresento alguns trechos ilustrativos dessas marcas textuais e enunciativas:

Estamos no ano de 2313, nosso planeta está muito diferente

do que um dia já foi. Passamos pela 3ª Guerra Mundial [...] A

paz não reinou totalmente, mas os países já não brigam tanto

[...] Todas as pílulas e camisinhas do mundo foram incineradas, e o povo, incentivado a ter filhos. Entretanto, o tiro saiu pela

culatra, a população aumentou de forma exorbitante, o que

gerou grandes problemas [...]32

A partir desse material empírico, procurei observar uma discursividade e desnaturalizar a relação palavra-coisa: “de que outras formas isso poderia ser dito?”; “como se relacionam as formações discursivas e as formações ideológicas que sustentam essa discursividade?”; “por que foi usada a

31 Resumo. O conto na íntegra se encontra nos anexos (ANEXO 5). 32 Grifos meus formatados em itálico nos trechos dos contos citados.

expressão ‘o tiro saiu pela culatra’ ao invés de ‘o plano falhou’, por exemplo?”. Questões como essas povoam essa instância da análise. A produção discursiva nesse corpus pode ser compreendida se compararmos os dois núcleos de significação delimitados anteriormente. O próximo trecho é exemplar do funcionamento do discurso científico no conto:

[...] — Então, Dr. Alexandre. — Disse o Governador Mundial. — O senhor teve uma semana para estudar os métodos contraceptivos. Qual é a sua conclusão? Será possível desenvolver uma maneira realmente eficaz de diminuir a natalidade humana?

— Com certeza, senhor Governador. — Respondeu Alexandre. — Através da minha pesquisa eu descobri que existem diversos métodos contraceptivos, sendo que vários podem ser muito eficazes. Os métodos se dividem em reversíveis e

irreversíveis. Sendo que os irreversíveis são intervenções cirúrgicas no sistema reprodutor feminino e masculino, chamadas laqueaduras tubárias e vasectomia. A laqueadura tubária consiste no isolamento das tubas uterinas, por meio de um pequeno corte, a fim de impossibilitar que os espermatozoides encontrem os óvulos. A primeira operação foi realizada em 1823, na cidade de Londres. Já a vasectomia é um procedimento que visa isolar os canais deferentes do homem, para que os espermatozoides não sejam eliminados.

Ela também foi realizada pela primeira vez em 1823, porém em um cachorro. Só depois a cirurgia ficou popular [...]

Na sequência da narrativa, o personagem Dr. Alexandre também apresenta e descreve os métodos contraceptivos reversíveis. Como a linguagem não é transparente, os dois núcleos de significação funcionam distintamente, no que diz respeito à tensão entre paráfrase e polissemia, à reversibilidade e aos deslocamentos de efeitos de sentidos.

O recorte Efeitos de Evidência também é marcado por características extradiscursivas (as orações assertivas, a incessante classificação e descrição dos elementos, o uso de metalinguagem científica, o eixo histórico etc.). Há um efeito de apagamento, ao menos parcial, do par locutor-enunciador e essa já é uma característica do modo de funcionamento do discurso científico, inclusive no que diz respeito aos saberes milenares sobre a contracepção apresentados no conto. Pela ação da ideologia e sob determinadas condições de produção (elaboração e implementação do conto no contexto didático), Trinity se apropria dos saberes de sua forma-sujeito sócio-histórica e “cede a voz” ao sujeito universal da ciência (PÊCHEUX, 2009). Em sintonia com Coracini (2007), vejo

esse apagamento do enunciador como uma tentativa de criar no enunciatário (leitor) a ilusão de evidência empírica, de objetividade e imparcialidade. Nesse contexto, o discurso científico não permite que “o tiro saia pela culatra”.

Nessa aproximação entre o discurso científico e o discurso ficcional, Trinity ocupa a posição professor-autor e desloca sentidos à medida que produz uma narrativa híbrida, com funcionamentos discursivos diferentes. A ilusão de unidade da obra, própria do princípio de autoria, camufla diferentes formas de tensão entre paráfrase e polissemia. No contexto da tipologia discursiva (ORLANDI, 2011), é predominante a variação do discurso polêmico: ora tende ao lúdico (efeitos de ficção), ora tende ao autoritário (efeitos de evidência). Essas e outras características, discursivas e extradiscursivas, são importantes no funcionamento do discurso pedagógico regido pela voz professoral. Desse modo, o professor-autor tem a possibilidade de romper com os pré-construídos de algumas práticas institucionalizadas e cristalizadas no campo da educação em ciências.