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As narrativas de ficção científica e as concepções dos estudantes

6. APONTAMENTOS DA PESQUISA PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

6.1.3. As narrativas de ficção científica e as concepções dos estudantes

Na vida cotidiana, os sujeitos estão em contato com os mais variados discursos, os quais sustentam determinadas ideias e imagens que se materializam de múltiplas formas. Para os objetivos desta pesquisa interessam os modos como as narrativas (textos escritos, imagens e vídeos) da ficção científica afetam as concepções dos estudantes sobre as ciências, já que é inegável essa influência, conforme apontam Reis e Galvão (2004, 2006, 2007), Reis, Rodrigues e Santos (2006) entre outros trabalhos na contemporaneidade.

39 A palavra-chave “erro” foi grafada com aspas por Nyota. Há aí uma ressignificação da

palavra, já que a ficção científica enquanto manifestação artística não acerta ou erra, não visa apreender o sentido unívoco do referente, ao contrário do discurso científico. A ficção científica é uma forma de construção da realidade por meio da extrapolação do conhecimento científico e é exatamente por essa característica que esses campos mantêm entre si uma íntima relação, pois não há processo de extrapolação se não houver uma base de racionalidade científica na qual a ficção possa realizar suas conjecturas sobre o mundo. Epistemologicamente, Bachelard sublinha a centralidade do erro para o desenvolvimento da ciência ao reconhecer que o discurso científico está aberto ao equívoco, à falha e à retificação de erros ao longo da história. Se, por um lado, o conhecimento científico se constitui com efeitos de evidência empírica e estabilidade lógica, por outro, são as contradições, rupturas e reformulações que garantem o seu desenvolvimento (BACHELARD, 1990).

Mais do que isso, investigo as concepções dos licenciandos sobre essas determinações no domínio didático, ou seja, procuro compreender como os sujeitos concebem a utilização dessa linguagem nas aulas de ciências. Analiso os pontos favoráveis e desfavoráveis que os licenciandos atribuem à relação entre ficção científica e ensino de ciências, no que diz respeito aos efeitos no aprendizado científico de seus alunos. Como ponto de partida para a análise sobre a influência das narrativas da ficção científica na formação de concepções sobre o universo científico, destaco as seguintes respostas:

Sim, criando estereótipos da figura dos cientistas e coloca os mesmos como sendo uma classe elitista, que vive num mundo à parte (Deanna).

Sim, bastante, pois são criadas ideias estereotipadas sobre os

cientistas, dando sempre uma visão de elitismo, parecendo que

a ciência não é alcançável pelos comuns mortais (Kira).

Sim, basta ver a imagem que os alunos ainda têm do cientista, como se fosse alguém inacessível, que passa os dias no seu laboratório, um cientista “maluco” (Delenn).

Sim. O cientista pode ser retratado como um louco excêntrico

de bata branca ou podem explorar as suas vivências e mostrá- lo como uma pessoa como todas as outras, com defeitos e virtudes (Cora).

Sim, sem dúvida. Na maioria das vezes esse é o único

contacto que os jovens têm com os bastidores da ciência

(Alex).

Todos os sujeitos da pesquisa concordam que as narrativas da ficção científica influenciam as concepções dos alunos sobre as figuras do cientista e do fazer científico na sociedade. Esse é, a meu ver, um ponto muito importante, visto que as concepções distorcidas sobre o empreendimento científico representam enormes obstáculos ao aprendizado das ciências. Mais do que isso, ideias estereotipadas sobre o universo científico podem desencorajar os estudantes a seguirem uma carreira profissional nesse campo.

É comum a associação da imagem do cientista a uma posição diferenciada na sociedade, uma seleta elite intelectual inatingível, excêntrica. O imaginário sobre a figura do cientista pode encontrar sua origem nas caricaturas frequentemente empregadas no discurso ficcional, legítimo recurso

narrativo tanto na literatura quanto nas obras cinematográficas. No entanto, essa “caricaturização” da ciência e do cientista merece atenção especial, sobretudo na inserção das obras de ficção no âmbito didático. As apropriações pedagógicas do gênero ficcional devem ser permeadas pelo questionamento desses estereótipos e também de outras questões como, por exemplo, o protagonismo predominantemente masculino no universo da ficção científica (tanto de personagens quanto de escritores).

Importa destacar que essa distorção das imagens de ciência e de cientista não se dá somente na FC. O discurso de divulgação científica, por exemplo, muitas vezes negligencia o referente científico e desdobra-se como uma forma de espetacularização da ciência. A “distorção” da ciência não é uma exclusividade do discurso ficcional, podendo ser propagada por inúmeras discursividades, inclusive pelo próprio efeito de “didatização” dos conceitos científicos, as analogias, simplificações, adaptações e outros obstáculos epistemológicos (BACHELARD, 1996). Reitero que os obstáculos epistemológicos representam o preenchimento da ruptura entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, o que restabelece a continuidade ameaçada pelo desenvolvimento do conhecimento científico, essencialmente descontínuo. É obstáculo epistemológico tudo o que se cristaliza no conhecimento não questionado, todos os pontos de bloqueio, regressão ou inércia do progresso científico (BACHELARD, 1996).

As narrativas de ficção científica podem influenciar as concepções dos estudantes tal como qualquer outro tipo de ficção que interesse os estudantes (Marty).

Marty reconhece a influência de outros gêneros de ficção nas concepções dos estudantes, o que inclui não somente o discurso de divulgação científica enviesado, propagandístico e atrelado a outros interesses, mas também os efeitos de didatização do discurso pedagógico, uma releitura do discurso científico. Em todos os casos, caberá ao professor a tarefa de mediação diante das rupturas entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, ação possível através do emprego de múltiplas linguagens, sobretudo a ficção científica e o seu universo de conjecturas, extrapolações e de recusa à inércia própria do que se mostra como evidente.

Em minha passagem pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa durante o estágio de doutorado sanduíche pude notar uma sintonia entre os dizeres dos sujeitos portugueses e brasileiros. Os professores em formação indicam uma série de demandas na educação em ciências, domínio no qual a exploração de múltiplas linguagens, notadamente a ficção científica, representa um universo de possibilidades didáticas, desde o despertar do interesse dos estudantes pelas temáticas científicas, a ludicidade e o entretenimento, até as apropriações mais elaboradas, os estudos críticos sobre as questões sociopolíticas e socioculturais da ciência, além de seu aspecto conteudístico.

Essas reverberações discursivas reforçam, a meu ver, a relevância deste trabalho no que se refere ao seu caráter propositivo. Os entremeios que perpassam a ficção científica e o ensino de ciências revelam amplas possibilidades no domínio da formação docente, no deslocamento e na produção de sentidos para o conhecimento científico por professores e estudantes, sujeitos que protagonizam o processo de mediação didática. Discursivamente, a mediação didática implica em práxis: sujeitos ensinantes e aprendentes ocupam posições ativas no discurso pedagógico, são autores no processo de ressignificação do ensino e da aprendizagem científica, são os principais agentes de sustentação das formas polêmicas do discurso pedagógico.

Respeitadas as especificidades dos âmbitos formativos que investiguei no Brasil e em Portugal, há uma convergência nos dizeres dos sujeitos para os referentes já explicitados. Como todos os sujeitos da pesquisa ocuparam simultaneamente as posições “professor” e “estudante” (licenciandos pibidianos no Brasil e professores em formação no ciclo de pós-graduação em Portugal), puderam apontar diversas questões dos entremeios ficção científica – ensino de ciências a partir de ambas as posições: anseios e dificuldades no aprendizado científico, concepções de ensino e de aprendizagem das ciências, concepções sobre a própria noção de ciência, os riscos do “erro” na referida aproximação segundo os critérios de vericondicionalidade e dos obstáculos epistemológicos, a importância da imaginação e das diversas perspectivas do conhecimento científico na educação. Muitos foram os pontos em comum

nesses discursos transatlânticos, isto é, nos dois contextos investigados, salvas poucas exceções, ressoaram os mesmos dizeres no que tange à relação entre ficção científica e ensino de ciências, suas perspectivas e desafios. Mais do que isso, dos dois lados do Atlântico os sujeitos indicaram importantes questões no campo da educação em ciências, especialmente a necessidade de reflexão e mobilização de práticas que fortaleçam os processos de produção de sentidos para o conhecimento científico escolar, assim como a formação científico-cultural dos sujeitos. O ensino das ciências na escola tem representado algum sentido para os estudantes? Acrescento: a ficção científica e outras linguagens não pertencentes à tradição escolar podem contribuir na produção de sentidos para o conhecimento científico?