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4. EFEITOS DE SENTIDOS

4.2. Primeiros gestos de análise

4.2.2. Aproximação entre ficção científica e ensino de ciências

Para Bachelard, o primado da imagem pode constituir-se como um obstáculo epistemológico (um percalço à aprendizagem e ao desenvolvimento do espírito científico). Dito de outro modo, o espírito científico deve sempre desconfiar das experiências primeiras, das evidências empíricas, sensoriais, das “verdades de primeira aproximação” (BACHELARD, 1978).

Contudo, no ensino de ciências há um grande apelo à imagética dos objetos de estudo. A seguir, apresento dois recortes discursivos que, de acordo com os dizeres dos graduandos, reforçam tanto a “fidelidade do visível” na apreensão dos sentidos da ciência quanto o caráter de “atividade motivadora” atribuído à ficção científica na sala de aula. Além disso, é recorrente o emprego do critério de verossimilhança por esses sujeitos quando se referem às distinções entre Ciência e FC.

4.2.2.1. Interesse – Simplificação – Facilidade

Entre os licenciandos é predominante a concepção da relação entre ficção científica e ensino de ciências como um meio de despertar o interesse e simplificar/facilitar o aprendizado dos estudantes. Essa concepção de ensino e de aprendizagem pode estar apoiada no idealizado continuísmo da cultura científica e na eficácia persuasiva do discurso científico. Assim, a FC seria mais um acessório/recurso nesse processo pretensamente estabilizado que visa a mostrar a “verdade” da ciência. Os seguintes dizeres reforçam essa hipótese.

A aproximação da ficção científica com a sala de aula pode

despertar maior interesse dos alunos pela oportunidade de ver mais de perto, com mais fidelidade à realidade, coisas que não

são de fácil visualização e compreensão apenas com o texto escrito (Sarah).

Ficção científica, seja por textos ou vídeos, desperta no aluno,

curiosidades e até mesmo mostra para ele a própria ciência e gera interesse, já que a ciência está sendo apresentada de

uma forma diferente. Sendo assim, esta interface tende a

facilitar a aprendizagem de conceitos científicos, pois a ciência

é mostrada de uma forma interessante e no caso dos vídeos,

há a riqueza de recursos visuais [...] (Luke).

A aproximação da ficção científica ao ensino de ciências pode ajudar a explicar ou desmistificar alguns temas, além de ajudar

a despertar o interesse dos alunos (Ellie).

A aproximação entre FC e ensino pode ser um meio de chamar a atenção dos estudantes para os conteúdos científicos escolares. Isso é pressuposto. Entretanto, o potencial dessa relação como uma forma de contextualização e problematização do conhecimento científico pode representar outras possibilidades, já que o ensino e a aprendizagem das ciências cobram processos dialéticos de mediação didática: “constituição de uma realidade a partir de mediações contraditórias, de relações complexas, não imediatas. Um profundo sentido de dialogia” (LOPES, 1999, p. 209). Discursivamente, essa mediação poderia se dar com a instauração de um discurso pedagógico polêmico.

Recorrendo novamente à significação do não-dito, alerto para um discurso preocupante sobre as aulas de ciências — “desinteressantes”, “tediosas”, “difíceis” — conforme os seguintes dizeres sugerem:

O uso da ficção científica pode ser um meio de prender a atenção do aluno. Juntamente a filmes e livros, por exemplo, pode-se apresentar conceitos técnicos, desta forma torna-se

um meio didático não tedioso (Vincent).

Esse discurso também ressoa em uma resposta à primeira questão, sobre a interface entre ensino de ciências e múltiplas linguagens:

Normalmente, o ensino de ciências é visto como algo difícil e

A FC na escola constitui-se na tensão entre a “obrigatoriedade” (conteúdos a serem ensinados/aprendidos) e o “entretenimento” (fruição e imaginação). O problema do ensino e da aprendizagem — sobretudo no campo das ciências naturais — não reside isoladamente no fato das aulas serem “difíceis”. Elas o são (ROBILOTTA; BABICHAK, 1997). Nesse viés, afirma Lopes (1999, p. 217):

O conhecimento científico é difícil, justamente, porque rompe com as concepções do conhecimento cotidiano. Mas sua dificuldade não é intransponível, uma vez que é essencialmente uma produção humana. Um dos objetivos do trabalho de pesquisa em ensino de ciências deve ser o de elaborar estratégias e metodologias de ensino que tenham em vista entender por que o aluno não compreende, visando suplantar estes obstáculos pedagógicos.

Em sintonia com Lopes (1999), afirmo que o aprendizado científico requer processos de mediação didática, um trabalho de exploração das relações contraditórias e das rupturas que constituem o conhecimento científico escolar e que projeta o discurso pedagógico ao polêmico.

4.2.2.2. Ficção Científica versus Realidade

Como “todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro” (ORLANDI, 2005, p. 62), as respostas agrupadas nas linhas que seguem fazem ressoar o discurso da “simplificação/facilitação” do aprendizado científico, predominante no recorte anterior. Carregada de polissemia, a ficção científica na sala de aula representa uma ameaça à pretensa univocidade do discurso científico ao tensionar seus processos parafrásticos e efeitos de evidência empírica e estabilidade lógica. A título de exemplo desses efeitos de sentidos, destaco as seguintes respostas:

A ficção científica quando tratada de maneira correta, com

nomenclatura correta e embasamento adequado, tende a ser

um grande aliado ao ensino de ciências. Essa ficção científica deve ter um propósito ao ser passada e aproximada dos alunos, onde ela quer chegar é um ponto importante nessa nova interface, pois muitas dessas tratam a ciência com um

sentido errôneo onde não é possível que aconteça. Levando

em conta que nosso público são crianças e adolescentes, cuja imaginação é muito fértil, deve-se tomar esse cuidado para não

deixarmos eles confusos e nem achando que vão/podem virar

“seres de outro mundo” (Molly).

Geralmente há muito interesse pela ficção científica, então considero interessante usá-la no ensino de ciências. A grande

chave é saber diferenciar o que é ficção do que é ciência, para que não haja confusão, mas fora isso, o uso desse recurso

pode despertar a curiosidade e incentivar o estudo mais aprofundado na própria ciência (Susan).

[...] Se a informação apresentada na ficção científica for errada, ela pode confundir e dificultar o aprendizado do aluno, mas se a informação for correta, ela só contribuirá para a compreensão e memorização do assunto (Ellie).

Penso que essa aproximação é favorável para a aprendizagem do aluno, mas não pode se limitar a apenas isso. O aluno

precisa entender a diferença da ficção científica e da realidade

[...] (Olivia).

A utilização de vídeos e textos de ficção científica pode e deve ser usada, pois atrai a atenção dos estudantes. É claro que a ficção científica pode acrescentar a uma aula de ciências, porém a utilização desta deve ser feita com certo cuidado.

Deve-se ocorrer uma discussão sobre o que neste texto ou vídeo pode ser real e o que é fora da realidade, isto deve ser esclarecido (Maureen).

[...] É claro que muitos assuntos são abordados no cinema de forma exagerada, assim é importante informar aos alunos

como ocorre na realidade, para que eles não sejam prejudicados na aprendizagem (Trinity).

Para Isaac Asimov, escritor de ficção científica do século XX, mesmo as narrativas que “negligenciam” o conhecimento científico são importantes para o ensino de ciências. Sobre elas versa o autor:

Em muitas estórias de ficção científica um princípio científico é deliberadamente distorcido, com a finalidade de tornar possível um determinado enredo. É uma realização que pode ser conseguida com perícia por um autor versado em ciência ou de modo canhestro por um outro menos versado na matéria. Em ambos os casos, mesmo no último, a estória pode ser útil. Uma lei da natureza que é ignorada ou distorcida, pode suscitar mais interesse, algumas vezes, do que uma lei da natureza que é explicada. São possíveis os eventos apresentados na estória? Se não o são, porque não? E ao tentar responder a tal pergunta o estudante pode algumas vezes aprender mais a respeito de ciência, do que com uma série de demonstrações corretas feitas em sala de estudo (ASIMOV, 1979, p. 7).

É pela opacidade da linguagem, pelo “apagamento” do enunciador e dos efeitos da ideologia, que o discurso científico se aproxima do real, do verossímil. Com respeito à ação da linguagem no universo físico-humano (seres vivos, pessoas, acontecimentos, processos etc.), Pêcheux (2012) afirma “haver real” enquanto “pontos de impossível” que determinam “aquilo que não pode não ser assim”. No limite, o real se define como o impossível que seja diferente. O discurso científico “persegue” o sentido unívoco e impossível, enunciando “aquilo que não pode não ser assim”, enquanto o discurso ficcional, longe desse objetivo, aborda realidades (im)possíveis, tematizando “aquilo que pode não ser assim”.

Nos dizeres dos sujeitos, a distinção entre ciência e ficção está condicionada pelo critério de verossimilhança, independentemente das possibilidades de complementação entre esses dois campos, inclusive nas aulas de ciências. Vale destacar que a polarização entre ciência e ficção se constitui sob os efeitos de sentidos próprios de cada uma dessas discursividades. Bachelard, metaforicamente, concebe a ciência e a literatura (gênese da FC) como “o dia e a noite”, respectivamente:

[...] o diurno da descoberta científica, do pensamento essencialmente racional [...] e o noturno da vertente onírica, pensamento guiado pelo devaneio e rico em imagens. [...] as imagens e os conceitos formam os dois polos opostos da atividade intelectual, representados pela imaginação e pela razão (BACHELARD, 1996, apud ZANETIC, 2006, p. 14).

Os domínios diurno e noturno aos quais Bachelard se refere compreendem efetivamente o universo físico-humano, isto é, possibilitam uma ampla produção — confluência entre constituição e formulação — de sentidos. De acordo com Paiva (2005, p. 126), “à condição humana assiste o direito de habitar tanto o universo da noite, fecundo em devaneios, como aqueles perpassados pela luz apolínea do dia. O homem é ser dual, diurno-noturno”. Para a autora, “a imaginação é, antes de tudo, mobilidade espiritual infinitamente fecunda” (PAIVA, 2005, p. 143), portanto imaginar, explorar, relacionar, comparar, questionar, deslocar e produzir sentidos é, nesse viés, imprescindível ao estudante no aprendizado científico. Uma compreensão efetiva sobre a ação da ciência no mundo considera a necessidade de

retificação de erros primeiros e requer o entendimento das rupturas e do incessante devir do conhecimento científico — trabalho decisivo da linguagem sobre/sob a realidade. Nas palavras de Pêcheux (2012, p. 29): “não descobrimos, pois, o real: a gente se depara com ele, dá de encontro com ele, o encontra”.

Nos recortes discursivos adotados, os efeitos de sentidos predominantes nas respostas para as duas questões reforçaram uma imagem idealizada e institucional do professor: “aquele que possui o saber e está na escola para ensinar” (ORLANDI, 2011, p. 31). Por outro lado, o aluno figurou como um sujeito passivo, fixado na posição de ouvinte: “enquanto ele for aluno ‘alguém’ resolve por ele, ele ainda não sabe o que verdadeiramente lhe interessa” (ORLANDI, 2011, p. 31). Houve pouco reconhecimento do papel do professor como mediador de um processo experienciado pelo estudante. As mediações, nesse caso, foram predominantemente concebidas como “fins em si mesmas” (ORLANDI, 2011, p. 31).

Cumpre sublinhar que na ocasião desses primeiros gestos de análise o projeto se encontrava em fase inicial. Posteriormente, os graduandos puderam reconstruir algumas dessas concepções, ou seja, a imersão desses sujeitos em um conjunto de atividades formativas (teorias e práticas na sala de aula) possibilitou-lhes uma compreensão mais ampla da função docente e autoral na utilização de múltiplas linguagens, inclusive a FC, nas aulas de ciências e biologia. Essas observações serão retomadas na sequência do texto.