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A história universal e a questão da sua utilidade

PARTE I CONTEXTUALIZANDO E PROBLEMATIZANDO

1. O projeto de uma história universal

1.2 A história universal e a questão da sua utilidade

Para apresentar as supostas utilidades da filosofia da história faz- se uso como fio condutor dessa seção de um importante comentário escrito por Kaulbach (1975), o qual serviu de orientação para muitas das interpretações posteriores. Segundo ele haveria três intenções distintas conduzindo o projeto de Kant: i. uma orientação teórico-científica; ii. uma orientação para a práxis política; e iii. como fundamento para a esperança.

34IaG, AA 08: 29. 07-08. Negrito adicionado. 35

IaG, AA 08: 29. 10. Também sobre isso: MAM, AA 08: 109.

36Cf. ZeF, AA 08: 343. 02-06. 37

MAM,AA 08: 109. 24.

38SF,AA 07: 79. 06-10.

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i. Como orientação teórico-científica

Essa interpretação é sustentada essencialmente com base na introdução da IaG, a qual inicia com a seguinte sentença: “seja qual for o conceito que, também com uma intenção metafísica [metaphysischer Absicht], se possa fazer da liberdade da vontade, as suas manifestações, as ações humanas, são determinadas, bem como todos os outros eventos naturais, segundo as leis gerais da natureza.”40 Nesse caso, a situação epistêmica da história, enquanto parte da natureza, permitiria esperar no seu conjunto um curso regular de forma que os homens singulares e até povos inteiros perseguissem o propósito da natureza, ainda que cada um perseguisse seus próprios fins, os quais estariam em mútua oposição apenas de forma aparente.

Segundo Kaulbach, a dificuldade se encontra no fato dos seres humanos possuírem liberdade, a qual não permite determinar em casos singulares o que os indivíduos farão.41 Dessa forma, Kant optaria por uma alternativa que ainda se mantém próxima ao seu paradigma das Ciências naturais e exatas, isto é, ele modificaria seu conceito de “lei universal” para um conceito mais lato de legalidade, uma legalidade da probabilidade (Wahrscheinlichkeit). Assim, no primeiro parágrafo haveria uma transição de um conceito de natureza em que imperam as leis universais do entendimento para um conceito mais lato de natureza em que opera o princípio da probabilidade e onde o que está em questão não é mais o indivíduo, mas o todo da espécie. Essa mudança no conceito de natureza traria consigo a mudança do paradigma das ciências naturais para o paradigma da estatística, o que fica indicado a partir dos exemplos sobre os casamentos e nascimentos na introdução da IaG.

Essa mudança de perspectiva seria feita com base no procedimento crítico-dialético que já fica indicado pela palavra inicial do título, Ideia. Dado que a ideia é um conceito que pertence não ao entendimento, mas à faculdade da razão e, por isso, não se refere diretamente à determinação dos objetos, mas à sistematização dos objetos do entendimento numa perspectiva mais abrangente, a sua função seria a fundamentação da investigação científica. Nesse caso,

para que a história possa se estabelecer como ciência, ela precisa ser posta sob as leis universais da natureza, para o que ao invés da causalidade é

40IaG, AA 08: 17. 01-04. 41

25 posto em validade o cálculo da probabilidade. O pensamento teórico-probabilístico coloca a escrita da história empírica (Geschichtsschreibung) na posição de descobrir uma determinada regularidade na coletividade. O cálculo da probabilidade atua aqui como uma lei que funda as condições de possibilidade da experiência histórica. (...) Para isso a natureza precisa possuir um caráter teleológico, o qual serve como fio condutor do todo e para o todo. A ideia desta natureza e de suas intenções, sua atribuição de sentido, suas metas e fins não podem ser realizados a partir da própria escrita da história empírica: o historiador precisa pedir emprestado isso do filósofo. Este oferece àquele a forma pela qual pode ser compreendido o fio condutor da correlação do todo, a ‘Ideia de uma história universal’, e a perspectiva em que a ordem estatística empiricamente considerada pode ser julgada como conduzida intencionalmente no sentido de um todo teleológico. O filósofo da história se revela como teórico dos fundamentos da historiografia (Historie).42

Essa leitura também encontra suporte quando Kant sugere que em algum momento surgirá um Newton da história.43 Nesse horizonte Kaulbach também compreende a figura do signo histórico, tal como é apresentada em SF, a saber, que se trata de uma tentativa de apresentar uma dedução dessa ideia de natureza na medida em que se oferece um “indício” (Anzeichnen) do progresso.

Essa interpretação do projeto kantiano como abrindo um espaço teórico no sistema transcendental para se pensar uma história empírica que não seja apenas um acumular de narrativas, mas que possa tornar-se também uma ciência, encontrou respaldo em maior ou menor grau em vários outros intérpretes, tais como Fackenheim,44 Yovel,45Williams,46 Kleingeld,47Wood48e Rauscher.49{Cf. 4.1}

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KAULBACH, 1975, 69. Tradução própria.

43Cf. IaG, AA 08: 18.

44Cf. FACKENHEIM, 1956, 393s.

45Cf. “A astúcia da natureza transforma-se assim em um princípio a priori para

a explicação da história, fundada na reflexão pura sobre a história empírica e em sua relação com a razão. Pressupondo a astúcia da natureza, devemos retornar a experiência para descobrir as leis empíricas nas quais esse modelo é realizado.

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ii. Como orientação para o agir moral

Segundo Kaulbach, estaria presente na filosofia da história a dialética entre natureza e liberdade, a qual havia sido resolvida na KrV a partir da teoria kantiana da consideração dos objetos segundo um duplo ponto de vista. Mas ao invés de haver uma antinomia entre a natureza determinante e a liberdade, parece existir agora uma antinomia entre uma natureza livre que conduz os homens segundo um plano próprio e o homem como um agente histórico livre. Essa aparente antinomia seria resolvida quando a posição de uma natureza livre é relativizada de forma a não comprometer o reconhecimento dos deveres e da responsabilidade por parte do indivíduo. Isso seria alcançado na medida em que a natureza fosse apenas a representação de uma instância que orientasse o indivíduo sobre o caminho e sobre a meta do seu próprio agir.50

Uma situação análoga à função desempenhada pelo conceito de “natureza” na filosofia da história seria desempenhada pelo conceito de “natureza inteligível” na filosofia moral. Ali o conceito de natureza inteligível serviria para pensar um mundo no qual minhas máximas possam ser universalizadas. Caso a máxima seja universalizada, mas se destrua em seus efeitos, então se trataria de uma máxima imoral, como no caso da mentira ou do empréstimo sem intenção de devolução. Assim, essa natureza representada sob a legislação do imperativo categórico funcionaria como um ideal prático que possibilita ao sujeito adquirir uma perspectiva de mundo que seja correspondente com o ponto de vista moral.

Nesse sentido, para Kaulbach,

(...) Equipados com essas leis podemos entender a história como um sistema global, como história universal, ordenando o material dos eventos passados de acordo com princípiose até mesmo guiando nossa antecipação do futuro. Entre outras coisas, teremos regras para selecionar tópicos relevantes para a pesquisa histórica, para peneirar particulares contingentes e acidentais e não menos importante, para descobrir fatores causais adicionais pelos quais se pode suprir as relações ausentes da cadeia” (YOVEL, 1980, 168, tradução própria).

46Cf. WILLIAMS, 1983, 20s. 47Cf. KLEINGELD, 1995, 13-31. 48Cf. WOOD, 2008. 49Cf. RAUSCHER, 2001. 50 Cf. KAULBACH, 1975, 72ss.

27 atribui-se também à natureza descrita no projeto histórico-filosófico uma função análoga ao agir político, o qual quer e deve trabalhar conjuntamente para criação de uma constituição cosmopolita. A posição, a qual assume essa ideia de uma natureza na consciência prática do agir, não é uma perspectiva de um nexo real, cognoscível e objetivo, mas uma perspectiva orientadora. A partir disso fica claro que o uso crítico da perspectiva de natureza livre não coloca em perigo a liberdade do agir humano, mas que justamente a pressupõe.51

Essa perspectiva defendida pela filosofia da história seria tal como a de um sujeito livre que usa da ideia de uma natureza como um mapa para se orientar, reconhecendo o caminho e sua meta. Para isso, o sujeito precisa se representar no mapa como um ponto junto a outros pontos, ou seja, o indivíduo livre precisa se representar simbolicamente como um ponto, o qual inevitavelmente precisa ser determinado segundo coordenadas espaciais, mas que, no caso da filosofia da história, seriam coordenadas espaço-temporais. Essa leitura prática seria corroborada pela nona proposição da IaG, a qual assevera que “um ensaio filosófico que procure elaborar toda a história mundial segundo um plano da Natureza, em vista da perfeita associação civil no gênero humano, deve considerar-se não só como possível, mas também como fomentando esse propósito da natureza”.52

Outros autores também compartilharam leituras semelhantes, tal como Landgrebe,53 Yovel e Riedel. Segundo Riedel, a filosofia da

história pode ser considerada como a parte empírica da filosofia prática, pois ela procura mostrar como a experiência pode se conformar com os

51KAUBLACH, 1975, 76. Tradução própria. 52IaG, AA 08: 29.

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Cf. “(...) O fio condutor da história não pode ser alcançado de forma alguma com base numa perspectiva empírica, segundo o que ele pudesse ser reconhecido sob certas circunstâncias, mas que a sua confirmação empírica é possível apenas segundo pressuposições que já foram alcançadas segundo princípios a priori e que servem na verdade não como fio condutor para o conhecimento teórico da história e suas leis, mas como fio condutor que deve oferecer um ‘motivo’ para a ação (...). Isso significa que ele é tudo menos que uma utopia, tal como um impotente desejo, senão que ela tem a sua importância apenas quando ela se torna atuante no âmbito prático, como móbil da ação.” (LANDGREBE, 1954, 541. Tradução própria.)

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princípios da filosofia prática, ou seja, ela procura responder ao problema da realização da moralidade na empiria. Concretizar essa unidade sistemática seria a função sistemática da filosofia da história.54

Mas, além disso, a filosofia da história tem outra função prática, a de servir como crítica da historiografia. Diferentemente da formulação da seção anterior, a relação entre Geschichte e Historie não se dá agora como uma relação teórica de fundamentação de uma ciência, isto é, interferindo no funcionamento metodológico da história empírica, mas como um instrumento para uma crítica prático-política. Nesse caso, a história universal teria ela própria um caráter educativo, pois ao invés de narrar histórias de personalidades, histórias de Estados e de guerras, passaria a tematizar as mudanças e revoluções que conduziram a humanidade a uma gradual realização histórica de seus fins prático- racionais, as normas do direito natural.55 Essa tese também encontraria sustentação nas últimas linhas da IaG e em algumas reflexões.56 {Cf. 4.2}

iii. Como sustentáculo da esperança

A terceira “utilidade” da filosofia kantiana da história seria responder a uma questão que surge da orientação prática tal como exposta na seção anterior, a saber, na medida em que se age segundo os fins de uma natureza racional, então o que é permitido esperar? Apenas quando se tiver respondido a essa pergunta e satisfeito a nossa esperança, pode-se dizer que existiria um sentido para nossa ação.

Contudo, segundo Kaulbach, diferentemente da esperança que pode ser fundada no campo da ética, no caso da filosofia da história o progresso não possui a forma de postulados da razão, assim como é asseverado na KpV sobre o sumo bem.57 A diferença reside no fato de que a história não pode ser concebida como um “reino de Deus”, mas sim como o “reino dos homens”, isto é, o sumo bem precisa ser realizado na história através da ação do próprio ser humano. Segundo o comentador, para Kant responder a essa questão da esperança, a qual seria o mote essencial apenas em SF, ele precisa apresentar um indício que sirva como prognóstico do futuro. Isso seria possível se a filosofia da história tivesse logrado êxito na sua justificação enquanto uma

54Cf. RIEDEL, 1974,10. 55Cf. RIEDEL, 1974, 17ss.

56Cf. IaG, AA 08: 30f. Refl. AA 15: 1436; 1400; 1438. 57

29 ciência {Cf. 1.2.i}. Nesse caso, esse indício tomaria a forma de signo histórico, o qual não projetaria o progresso apenas para o momento presente, mas também para o passado e futuro, por isso, seria chamado também de signum rememorativum, demonstrativum e prognosticon: válido para o passado, presente e futuro.

Além de Kaulbach, muitos outros comentadores buscaram interpretar a filosofia kantiana da história no seu todo ou apenas em algumas partes como vinculada à questão da esperança. Mas isso foi feito de formas bastante distintas. Booth defendeu que a filosofia da história é distinta da política, pois ela não tem a intenção de orientar a ação nem se funda imediatamente no dever, mas ela procura explicar o mecanismo da natureza segundo padrões que ofereçam um ponto de vista acalentador. Mas a filosofia da história também não seria completamente separada do dever, na verdade ela se apresentaria como uma representação (tal como uma novela ou um drama) que o sujeito moral pode tomar para si no intuito de garantir a si próprio a esperança acalentadora que o ajuda a se manter no caminho da virtude. Nesse sentido, a filosofia da história seria uma narrativa construída segundo um ponto de vista distinto daquele adotado pelo historiador e distinto daquele adotado pelo indivíduo que procura uma orientação para a sua ação. Ela serviria como complemento bem vindo à moralidade no sentido de que a “protege” da perspectiva espinosana de um mundo sem finalidade.58 Krämling em termos parecidos vincula a filosofia da história a uma filosofia crítica da cultura que se desenvolve a partir do vínculo entre o dever de promover o sumo bem e o juízo teleológico.59 Lindstedt defendeu que o progresso na filosofia da história deve ser sustentado como um postulado da razão prática, pois seria uma perspectiva de tornar sistematicamente coerente a doutrina do sumo bem.60Thies, por sua vez, defendeu que a filosofia da história se vincula

à esperança essencialmente a partir do juízo teleológico reflexionante da KU.61 Já Höffe se limita a indicar essa relação, mas com a constatação

final de que Kant não chegou a escrever uma “Crítica da esperança”.62 Pollmann vincula a utilidade da filosofia da história a figura de um “médico” que procura realizar uma “terapia da razão”. Essa terapia teria vários aspectos, os quais podem ser concentrados em torno da questão

58Cf. BOOTH, 1983. 59Cf. KRÄMLING, 1985. 60Cf. LINDSTEDT, 1999. 61Cf. THIES, 2007.

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da esperança, evitando a melancolia e o desespero, tais como: o “sentido” da guerra, o sentido de ser virtuoso, a motivação de que o mundo pode corresponder aos esforços humanos, qual o sentido do mal, a questão da dor e do sofrimento físico e finalmente, a crença no progresso da justiça em relação a todos os crimes.63 De uma forma muito semelhante, também Bittner acaba afirmando que a utilidade da filosofia da história é realizar uma terapia. Contudo, ao invés de realizar uma terapia sobre problemas que surgiriam da própria razão e do seu uso, trata-se de uma filosofia “para acalmar preocupações induzidas pelo cristianismo”,64 ou seja, tratar-se-ia de um antídoto frente às necessidades criadas pela doutrina cristã no mundo ocidental. Nesse caso, a filosofia da história não possuiria nenhum vínculo sistemático com o restante do sistema crítico-transcendental. {Cf. 4.3 e 5}