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PARTE II APRESENTANDO SOLUÇÕES

3. Os fundamentos político-antropológicos do progresso

3.4 História como progresso moral

Pode-se colocar agora a seguinte questão: por que a filosofia da história deveria restringir o progresso apenas a um desenvolvimento da liberdade externa, excluindo assim o aspecto do desenvolvimento da disposição moral do indivíduo? Por um lado, existe o impedimento da opacidade epistemológica da disposição moral, mas por outro, também existe a legitimidade da crença de que de fato a humanidade está progredindo para o melhor e não apenas num sentido jurídico. Na medida em que gradualmente se retira impedimentos para o desenvolvimento moral dos indivíduos, é de se supor que

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151 gradativamente a razão prática adquira mais efetividade na vida do ser humano. Negar isso seria como contestar o princípio fundamental da filosofia prática kantiana de que a razão se apresenta de fato como uma causa atuante e que a lei moral se impõe na consciência do sujeito. Em suma, negar que a humanidade possa progredir moralmente também no âmbito da disposição de ânimo seria o mesmo que negar que a lei moral possui efetividade.

Além disso, de um lado, sabe-se que as conquistas no âmbito da moralidade interna não são transmitidas naturalmente para a descendência, pois isso exigiria uma nova “criação” ou “influxo sobrenatural”. Mas, por outro lado, através de condições sociais que fomentem o esclarecimento, nos seus mais diversos níveis, especialmente naqueles que se referem à autonomia moral dos indivíduos; através de condições pedagógicas que auxiliem o indivíduo a se sentir de posse da sua própria liberdade; através de instituições políticas que criem um ambiente político institucional que seja ao mesmo tempo pacífico e protetor das liberdades individuais, além de oferecer um plano unificado de educação para a liberdade política e moral; através disso tudo, também se pode acreditar que as gerações futuras possam se desenvolver melhor moralmente e por sua vez, dar um passo a mais no progresso moral em direção ao desenvolvimento de sua humanidade, o que pode ser sedimentado na forma de um progresso moral das instituições. Afinal de contas, a ontogênese também precisa recuperar a filogênese para que algo novo seja criado.

Se, por um lado, a filosofia da história não pode ter como objeto primário a narrativa do progresso moral da disposição, devido a incapacidade epistemológica de acessá-la, por outro, o signo histórico que Kant apresenta na SF cumpre exatamente esse vínculo de um fenômeno histórico que passa a ser interpretado como o sinal de uma mudança ou da tomada de consciência dos indivíduos sobre seus direitos, e nesse sentido, se refere a um modo de pensar, a uma disposição de ânimo.

Essas tensões só podem ser resolvidas quando se percebe que a filosofia da história transita por um campo teórico muito próprio, distinto da mera legalidade e da moralidade em sentido estrito. O juízo reflexionante transita por um campo intermédio, aberto pela faculdade de julgar reflexionante e que se enraíza num interesse prático da razão {Cf. 4.3 e 4.4}.

Nesse novo terreno em que se coloca a reflexão teleológica prática da filosofia da história pode-se ter outros critérios para interpretar fenômenos históricos e morais. Por exemplo, o Estado

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republicano pode ser um fim em si mesmo na teoria do direito, mas na filosofia da história ele é um meio necessário para que a humanidade possa desenvolver adequadamente as suas disposições morais.

Algo parecido acontece com o que se denominou de virtude moral {Cf. 2.5}, ou o que Höffe chamou de moralidade jurídica. Trata- se de uma possibilidade permitida pela doutrina do direito, mencionada na doutrina da virtude, mas que não se encontra desenvolvida pormenorizadamente em lugar algum da MS. Qual o motivo? Que essa “virtude” não se encaixa adequadamente em nenhuma das esferas. Mas ao se conferir os textos de filosofia da história, muitas vezes parece ser essa a possibilidade de desenvolvimento moral que mais se encaixa com o contexto e com seus pressupostos.

Segundo o texto SF, tem-se apenas dados empíricos para se vaticinar o progresso, ainda que a causa deles seja uma causa moral, como é o caso do signo histórico.422Ele também alerta que não se pode ampliar o fundamento moral do gênero humano, pois isso exigiria um influxo sobrenatural. Feitas essas ressalvas, Kant afirma que se pode esperar que no futuro “diminuirá a violência por parte dos poderosos e aumentará a docilidade quanto às leis. Haverá, porventura, na sociedade mais beneficência e menos rixas nos processos, maior confiança na palavra dada (...)”. Esses exemplos ultrapassam a mera legalidade, pois a beneficência ou a docilidade quanto às leis não são coisas que possam ser obrigadas juridicamente, isto é, está se ultrapassando o âmbito da mera legalidade jurídica. Kant percebe que dá um passo além do direito. Um passo para um campo legítimo teoricamente, mas que se desdobra no pequeno espaço limítrofe que existe entre a ética e o direito, pois se trata sempre de uma reflexão cujo valor é apenas subjetivamente suficiente. Esse aspecto subjetivo da reflexão de bom grado seria transformado pelos adversários, os moralistas políticos, em objeto de escárnio. Por isso, Kant recua e acrescenta um elemento de indeterminação: “quer por amor da honra, quer por interesse pessoal bem entendido”.

Teriam os políticos razão em tornar aquela ideia objeto de escárnio? Sim, se ela se tratasse de uma ampliação da “base moral” da espécie humana. Mas não é isso que a teoria do progresso moral está propondo. Na verdade, a proposta é pensar que a partir de circunstâncias externas cada vez mais favoráveis, não há motivos para negar que aquela base moral se desenvolva. Desenvolvimento não é ampliação, mas é o desdobramento articulado de algo que já estava lá em potência.

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153 Isso significa que não se pode assumir que a espécie humana se tornará gradualmente mais virtuosa em sentido estrito, pois

Que homem se conhece a si mesmo, quem é que conhece os outros tão perfeitamente para decidir se quando separa das causas do seu modo de vida pretensamente bem conduzido tudo o que se chama mérito da felicidade, por exemplo, o seu temperamento benigno congênito, a força natural maior das suas potências superiores (do entendimento e da razão, para dominar os impulsos), além disso, também ainda a oportunidade pela qual o acaso lhe poupou felizmente muitas provocações que afetaram outrem; se separar tudo isso do seu verdadeiro caráter (como necessariamente deve descontar para a este valorizar de um modo justo porque, enquanto dom feliz, não o pode atribuir ao seu próprio mérito), quem quererá então decidir, digo eu, se aos olhos que tudo veem do Juiz Universal um homem, segundo os seus valores morais íntimos, tem ainda alguma superioridade em relação a outrem?423

Mesmo que a humanidade progrida moralmente no sentido de uma disposição de ânimo mais amena e adequada à lei moral, ainda assim não se poderia dizer que uma pessoa é mais virtuosa que a outra, nem mesmo que uma geração seja mais virtuosa que a outra, pois o problema de se avaliar a virtude ética stricto sensu é que ela só poderia ser medida por Deus, visto que não se trata apenas daquilo que se fez, mas de saber o quanto disso está ou não dependente das condições circunstanciais nas quais um indivíduo ou uma geração se encontram. Por isso, na verdade, a moralidade em sentido estrito é, para Kant, algo que se deve sempre perseguir, mas que jamais se deve ter a pretensão egoísta de já a ter agarrado, muito menos, agir pretensiosamente como se já estivesse de posse dela.424 Esses são os aspectos que impedem o ajuizamento esperançoso do sujeito moral de avançar em direção à crença de que haverá cada vez mais pessoas virtuosas sobre a terra.

423EaD,AA 08: 329f. O próprio mal radical se apresenta como uma perfídia do

coração, isto é, um enganar-se a respeito das próprias intenções, cf. RGV, AA 06: 38.

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Esse campo intermédio no qual se desenvolve o que se pode chamar de virtude moral funda-se na esperança de um contínuo crescimento da legalidade, mas também da benevolência na forma como os seres humanos se tratam, dentro e fora do âmbito da coação jurídica. Por isso, defende-se que aquela virtude moral não é meramente uma virtude política ou cívica, pois ela sempre traz em si um elemento que se vincula com a disposição de ânimo do indivíduo, o respeito, ainda que também possa haver sempre outras inclinações agindo simultaneamente, de modo que talvez ele não seja suficiente para manter por si só uma máxima quando o sujeito for exposto à situações completamente adversas. O respeito, enquanto um sentimento moral, indica o efeito da determinação da lei sobre o ânimo do sujeito, por conseguinte, remete a algo que ultrapassa o campo do direito e que inclusive serve como fundamento para o seu próprio aperfeiçoamento moral.

Se, por um lado, essa virtude não pode ser considerada uma virtude ética em sentido estrito, também não pode, por outro lado, ser considerada apenas uma virtude jurídica (política ou cívica). Nomeia-se essa virtude como “virtude moral” justamente por que a Moral indica a raiz comum que unifica o direito e a ética. Essa interpretação não parece cair no perigo de apagar as fronteiras entre ética e direito, entre legalidade e moralidade, pois não se trata de estabelecer o vínculo tendo uma delas como ponto de partida {ver críticas 2.4.i}, mas sim de estabelecer uma relação entre elas a partir de uma outra perspectiva, a do juízo reflexionante teleológico.

4. A HISTÓRIA UNIVERSAL NO CONTEXTO DA FILOSOFIA