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4. SOBRE ANTROPOTÉCNICA

4.1 A HOMINIZAÇÃO DOMESTICADORA

Para Sloterdijk, o humanismo alberga várias disposições conceituais distintas, o que significa que para ele o humanismo não seria apenas uma distinção própria e natural aos seres humanos, mas sim fruto da antropogênese, que, para ser melhor examinada, deve estar aliada às questões biológicas, antropológicas e mediáticas.

Contudo, mesmo tendo uma compreensão clara do que se tornou o humanismo, resta a assertiva de que tem seu modus operandi como uma instância desembrutecedora do ser humano (SLOTERDIJK, 2000). Portanto, torna-se lícito pensar que a preocupação sobre qual a essência do humanismo moderno, teve como móbil inicial “o perigoso fim do humanismo literário enquanto utopia da formação humana” (2000, p. 60). Entretanto, Sloterdijk faz uma análise do humanismo a partir de duas perspectivas apontadas por ele mesmo como técnicas que, de certo modo, se superpõem, a saber, uma que seria delimitada claramente no âmbito da dedução midiática e gramatológica da humanitas e outra na revisão histórica do motivo heideggeriano da clareira. É adicionado ainda ao segundo aspecto que este seria uma “inversão parcial da relação entre o ôntico e o ontológico” (SLOTERDIJK, 2000, p. 61).

Esse autor compreende perfeitamente o papel que o humanismo tradicional desempenha na autoimagem do homem, e, por isso mesmo, vai além da tese romântica e bucólica de que a leitura forma. Nas suas inquirições subjaz o entendimento de que a forma como os primeiros hominídeos se tornaram seres humanos é primordial para se entender o humanismo. Ele se prende a uma antropodiceia, que leva em consideração a ambivalência da natureza biológica e os objetivos morais do homem. Portanto, é imprescindível que exista esse tipo de circunscrição conceitual emblemática, ou seja, não se pode abrir mão de ver o homem naquilo que lhe é característico. Diante da proposta de Sloterdijk de conceber o homem, a frase de Terêncio torna-se lapidar: “Homo sum et nihil humani a me alienum puto” ganha novos contornos semânticos, sendo enriquecida com uma contextualização ligada aos processos de formação do homem. De forma imediata, se compreende que Sloterdijk não intenta alienar o homem de qualquer de suas características ontológicas. Pretende notá-lo enquanto Dasein (ser-

no-mundo), mas particularmente como um Vir-ao-mundo, que significa um acontecimento biológico de caráter ontológico (2000).

Em suma, é viável afirmar que o humanismo se notabiliza como sendo toda a filosofia que toma o homem como “medida das coisas” (ABBAGNANO, 1998). Pois, é precisamente na abertura, que só ao homem é facultada, por todas as suas idiossincrasias biológicas, que se dá um mundo. Logo, para ter um mundo a ser medido, é preciso existir o homem.

Por isso, a obra de Sloterdijk é fundamental para a contemporaneidade, seja por suas propostas pouco conservadoras, seja por tentar ultrapassar o motivo heideggeriano do Dasein por meio de uma nova visão, menos ortodoxa e mais próxima ao contexto biológico, logo cerceada pelo problema da physis. Ele compreende o peso da técnica na determinação do homem, – tékhne, enquanto um fazer que desencobre o encoberto. Desse modo, como o próprio Heidegger afirma a partir de uma compreensão de Platão, a tékhne é uma forma de abertura, de conhecimento que desvela, mas que se distingue da episteme (2006, p. 17-18). Ela desvela o que não produz a si próprio. Por esse prisma, a técnica se cumpre em uma produção. Então, a técnica pode se cumprir na produção das belas ações, na vida boa e bela, já presente no ideário grego. Portanto, o conceito de antropotécnica trabalhado por Sloterdijk, mesmo que se apresente como um aparente contrassenso, já que está no domínio biológico do homem, e não meramente metafísico, se reveste de relevância, precisamente por trazer a lúmen esse tipo de relação defrontada, pois o desvelar do homem é estritamente relacionado ao seu caráter biológico, o qual, por isso mesmo, é condição necessária para a abertura.

Via de regra, com a pretensão de operacionalização do homem “na era da técnica e da antropotécnica, a tendência é que os homens cada vez mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleção, ainda que não precisem ter se dirigido voluntariamente para o papel de selecionador” (SLOTERDIJK, 2000, p. 18).

Ademais,

Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no Primeiro Mundo em 1918 (radiodifusão) e depois em 1945 (televisão) e mais ainda pela atual evolução da Internet, a coexistência humana nas sociedades atuais foi retomada a partir de novas bases. Essas bases, como se pode mostrar sem esforço, são decididamente pós-literárias, pós-epistolares e, consequentemente, pós-humanistas (SLOTERDIJK, 2000, p.14).

Nesse sentido, é importante apontar que, com as novas realidades midiáticas, necessariamente menos elitistas, e mais horizontais, o humanismo toma uma nova forma (SLOTERDIJK, 2009a). Portanto, o significado da expressão há genes, muda drasticamente para há informação, uma vez que Sloterdijk entende que no novo contexto referente às informações, a compreensão da relevância destas é primordial para captar o conceito de homem. No entanto, será importante defender que ele não está fazendo nenhuma advocacia do determinismo biológico, muito pelo contrário; para ele, o problema se dá na medida em que as categorias metafísicas e lógicas tradicionais se mostram insuficientes para compreender de fato esse novo contexto polivalente. Assim, Sloterdijk (2011b) tão somente reconhece que a essência do ser humano deve ser vista dentro do processo de hominização propriamente.

Junto a isso, pode-se sucintamente asseverar que a pretensão de Sloterdijk é, antes de quaisquer conclusões precipitadas que possam surgir, fomentar uma ampla discussão, e sem preconceitos, não apenas sobre as categorias já trabalhadas por Heidegger, principalmente, em Carta sobre o Humanismo (1946), em Ser e Tempo (1926), bem como em A Questão da Técnica (1953), mas, indo além destas, buscando alento em conceitos confessadamente antropológicos. Desse modo, mesmo sabendo da alusão direta às conceitualizações heideggerianas, é possível vislumbrar que a intenção primordial de Sloterdijk é extrapolar a discussão sobre o humanismo do âmbito no qual sempre se deu. Necessariamente, para que isso seja feito, deve-se partir da discussão interposta por Heidegger, uma vez que este último já havia tentado levar o humanismo para um outro rincão. O intuito é simples; pretende-se afirmar que o humanismo deveria ser observado por lentes outras que não a da metafísica ocidental, uma vez que esta última padece de uma espécie de miopia, em função de ter a visão obliterada por preconceitos conceituais estabelecidos desde a Antiguidade.