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4. SOBRE ANTROPOTÉCNICA

4.7 HUMANISMO GLOBAL

Sloterdijk entende que, devido ao processo de humanização, podem ser identificados não menos que três grandes mecanismos imunológicos, os quais trabalham de forma cooperativa. Naturalmente, o primeiro deles é o sistema biológico em si mesmo, que não necessita da intervenção deliberada da consciência; o segundo seria um sistema de práticas socioimunitárias, fundamentado nas práticas jurídicas; por último, é possível destacar um sistema imunológico simbólico, ou como se poderia chamar também, psico-imunológicos, o qual trata especialmente de resguardar a vulnerabilidade humana quanto ao seu futuro incerto (SLOTERDIJK, 2012a), ou como diria Heidegger, em seu ser para a morte (2012).

É relevante notar que esses espaços imunológicos surgem basicamente como resposta às tensões internas e externas pelas quais os seres humanos passam. Rocca (2013a, p. 4, tradução nossa) lembra que “tanto profetas (fundadores de religiões), sacerdotes e, por certo, filósofos desenvolvem os procedimentos de cura (a arte médica)”. É possível interpretar que o afã por infundir dados espaços nasce primordialmente de uma necessidade terapêutica, a qual tem seu esteio nas imagens míticas de mundo, e são a salvaguarda para um mínimo de harmonização espiritual possível ao ser humano lançado no mundo (SLOTERDIJK, 2009a).

Que a forma que permite aos seres humanos estar entre eles conjunta e ‘interiormente’, não só em um vago sentido metafórico de imunidade e abrigo, mas que também desde o ponto de vista técnico possa ser a condição tanto de sua salvação como de sua sobrevivência: este é o sentido morfoevangélico das narrações bíblicas e extra-bíblicas do dilúvio universal e das fantasias da “arca” que vão unidas a elas. (SLOTERDIJK, 2009b, p. 219, tradução nossa).

O sentido figurado dos sistemas imunológicos termina por ser desde os espaços mínimos, ou a microesfera, até os espaços macros como um meio de manutenção de um

centro homeostático. Muito frequentemente, os espaços de poder político lançam mão das pressões, ou medos causados por forças externas, para que o equilíbrio interno seja conservado. Quanto a isso, é possível asseverar que na história é patente a existência intermitente de conflitos entre sistemas imunológicos distintos, o que já demonstraria precipitadamente um elemento para a impossibilidade de se pensar em sistemas imunológicos globalizados (SLOTERDIJK, 2012a).

O ponto culminante dos sistemas imunológicos, a despeito das particularizações, pode ser dado com a metafísica clássica, pois, com essa foi arquitetado um espaço de transcendência virtualmente inquebrantável em volta do homem, consoante a segurança de seu antropocentrismo. Pode-se arrolar a essa reflexão, segundo Sloterdijk, que “a atual situação do mundo se caracteriza por não possuir nenhuma estrutura imunitária conjunta que seja eficiente para os membros desta ‘sociedade planetária’” (2012a, p. 572, tradução nossa). Como resultado disso, acaba sendo uma excrescência política pensar em termos de solidariedade global, pontualmente por conta dos sistemas imunitários com resquícios étnicos, onde as alianças cooperativas formadas têm sua funcionalidade traçada em termos do que é próprio contra o alheio (SLOTERDIJK, 2012a).

Uma ilação muito conveniente é feita por Sloterdijk ao dizer que qualquer inferência sobre a humanidade sob os paradigmas metafísicos preponderantes até o momento, levando em consideração a compreensão dos sistemas imunológicos apresentados, é um mal-entendido, uma vez que postula-se a existência de certa incomensurabilidade entre as culturas, tomadas como sistemas que se organizam para sua segurança e manutenção, inibindo qualquer crença em um sistema super-orgânico. É adicionado o que Carl Schmitt de maneira extravagante sentenciou: “Todos os que pronunciam o nome humanidade fazem-no com a intenção de enganar” (apud SLOTERDIJK, 2008, p. 280).

Em um arrebatamento argumentativo, com o fito de ilustrar maiormente os problemas dos sistemas imunológicos culturais, é perfeitamente viável pensar mesmo em relação à Roma antiga, que tinha a pretensão exclusivista de uma cultura expansionista da humanitas. Assim, o objetivo maior daquele sistema imunológico em particular era externalizar suas práticas. Ao se recorrer mais uma vez à máxima de que toda a história é a história da luta entre diferentes sistemas imunológicos, existe uma viabilidade razoável em imaginar que esse conceito hiperbólico da história cultural

representa sempre a pretensão de vitória daquilo que é próprio ao sistema, à cultura, contra o que é estranho (SLOTERDIJK, 2012a).

Porém, não obstante a verossimilitude dos sistemas imunológicos, existe uma possibilidade para a composição de um sistema imunológico global, de onde se pode falar em humanidade, a partir do momento em que a sociedade planetária se expandiu até seus limites mais extremos. Portanto, com a mesma lógica aplicada ao Império Romano, é legítimo pensar que ao se absolutizar só resta à razão imunológica criar uma teia de proteção totalitária, sobrevindo apenas ao sistema imunológico a asserção para tomar o lugar da metafísica e das religiões, infundindo um programa de imunidade global mútuo, ou co-imunidade, e podendo o conceito de humanidade ganhar ares de um conceito político de fato.

Uma estrutura assim se chama civilização. As regras de sua Ordem devem ser redigidas agora mesmo, ou não serão feitas nunca. Estas codificarão as antropotécnicas de acordo com a existência humana ao contexto de todos os contextos. Querer viver obedecendo-as significaria a resolução de adotar nos exercícios do cotidiano os bons hábitos da sobrevivência comum (SLOTERDIJK, 2012a, p. 574, tradução nossa).

Essa é a única saída que sobra em tempos de globalização, ou seja, não se deixar sucumbir às rotinas nocivas que impelem à inércia. Para que isso não aconteça Sloterdijk sugere que a criatividade, conceito em tão alta conta na contemporaneidade, possa infundir nos seres humanos aquilo que Aristóteles chamava de magnanimidade. Assim, ser cidadão, nas circunstâncias atuais, é significar que a magnanimidade é uma segunda natureza (SLOTERDIJK, 2012a).