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A homossexualidade (re)visitada: Marta Lucía Álvarez Giraldo vs Colômbia

3 OS DIREITOS SEXUAIS NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS

3.2 As demandas perante a Corte e a Comissão: uma análise de casos

3.2.2 A homossexualidade (re)visitada: Marta Lucía Álvarez Giraldo vs Colômbia

O caso Marta Lucia Álvarez Giraldo vs. Colômbia teve petição apresentada em 18 de maio de 1996. A peticionária e suposta vítima, Sra. Marta Lucía, que na ocasião cumpria pena privativa de liberdade, alegou violação aos artigos 5.1, 5.2, 11.1 e 24 da CADH, em virtude de que autoridades penitenciárias do Estado colombiano lhe negaram o direito de visita íntima em virtude de sua orientação sexual. Com isso, teria sido afetada em sua integridade pessoal, honra e igualdade (CIDH, 1999, § 1-3). O caso nº 11.656, iniciado formalmente em 1º de agosto de 1996, não foi contestado

127 “A Comissão, ao receber uma petição ou comunicação na qual se alegue violação de qualquer dos

direitos consagrados nesta Convenção, procederá da seguinte maneira: [...] b. Recebidas as informações, ou transcorrido o prazo fixado sem que sejam elas recebidas, verificará se existem ou subsistem os motivos da petição ou comunicação. No caso de não existirem ou não subsistirem, mandará arquivar o expediente; [...]”.

pela República da Colômbia em termos de admissibilidade. O Estado processado limitou-se a afirmar que permitir visitas íntimas a parceiros e parceiras homossexuais afetaria a disciplina nos estabelecimentos carcerários, tendo em vista que a cultura latino-americana seria pouco tolerante quanto às práticas homossexuais em geral (CIDH, 1999, § 11-13). Em 23 de setembro de 1997, a CIDH colocou-se à disposição das partes para tentar alcançar uma solução amistosa, o que, entretanto, não foi possível (CIDH, 1999, § 5).

A CIDH entendeu que houve o esgotamento dos recursos internos (artigo 46.1.a da CADH), tendo em vista que a Corte Constitucional da Colômbia se absteve de revisar a decisão denegatória de visitas proferida na ação judicial de tutela da peticionária ajuizada pela Defensoría del Pueblo Regional Pereira. Quanto ao prazo de apresentação do petitório, houve ume flexibilização, na medida em que a decisão definitiva da Corte Constitucional não lhe teria sido comunicada. Ademais, como o Estado em nenhum momento objetou o cumprimento desse requisito, a CIDH entendeu que não é razoável exigir o cumprimento do prazo de seis meses previsto no artigo 46.1.b. Consideraram-se, também, satisfeitos os requisitos constantes do artigo 46.1.c e 47.1.d que tratam da duplicidade de procedimentos e da coisa julgada, de modo que a Comissão declarou admissível o presente caso128 (CIDH, 1999, § 14-

23).

3.2.3 Olmedo Bustos e Outros vs. Chile (e porque esse é um caso sobre direitos sexuais)

O caso Olmedo Bustos e Outros vs. Chile foi deflagrado por meio de denúncia nº 11.803, apresentada em 03 de setembro de 1997 pela Associação dos Advogados pelas Liberdades Públicas A. G., Juan Pablo Olmedo Bustos e Ciro Colombara López em face do Estado chileno. O caso foi recebido pela CIDH e posteriormente submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 15 de janeiro de 1999. A denúncia envolvia censura judicial imposta, no Chile, à exibição do longa-metragem “A Última Tentação de Cristo”, filme norte-americano dirigido por Martin Scorsese (CORTE IDH, 2001, p. 01, § 1-2).

128 Não constam do sítio eletrônico da CIDH ou da Corte IDH informações adicionais sobre o atual

estágio em que se encontra o processo. Alguns sites de cunho não científico mencionam uma solução amistosa, mas não foi possível certificar-se a respeito a partir de fontes oficiais.

Lançado em 1988, o filme é baseado no livro homônimo de autoria de Níkos Kazantzákis129 e retrata a vida de Jesus Cristo como um homem “comum”, despido

da aura mítica dos evangelhos e com uma existência permeada por medos, dúvidas, relutâncias e até mesmo pela depressão. Na obra adaptada para as telas por Scorsese, Kazantzákis apresenta um Cristo que, carpinteiro, é responsável pela construção das cruzes utilizadas para sacrificar os judeus insurgentes ao Império Romano. Demasiadamente humano, esse Jesus se apaixona por sua prima Madalena (Figura 17), aos vinte anos, abandonando-a, entretanto, quando deixa a casa dos pais para seguir a um “chamamento” que o atormenta desde a infância e o conduz para um mosteiro no deserto, local onde busca compreender a si mesmo. Lá conhece Judas, que vai conduzi-lo ao seu destino de crucificado. Uma vez na cruz, é que a última tentação de Cristo se apresenta: ele é confrontado com a “visão” de uma vida paralela na qual vive por longos anos, casando-se com Madalena e, posteriormente, com as irmãs de Lázaro (Marta e Maria), tendo muitos filhos e netos. Minutos antes de sua morte, recobra a consciência e se dá conta de que seu destino havia se cumprido conforme o que havia sido fatalmente determinado.

129 Publicado em 1955, a obra em questão foi incluída no Index Librorum Prohibitorum da Igreja

Católica, tendo o autor sido excomungado da Igreja Ortodoxa grega.

Figura 17. Jesus Cristo e Maria Madalena em cena de “A última tentação de Cristo” que sugere envolvimento amoroso.

Por ter ilustrado uma visão humanizada da imagem divina de Cristo, apresentando-o como um homem frágil, vulnerável e emocionalmente instável, a adaptação do livro para o cinema promoveu a indignação de alguns grupos cristãos130,

inclusive em sociedades supostamente liberais. Tais manifestações, contrárias à obra, implicaram a censura judicial ao filme no Chile. Na época, a Constituição chilena confiava à lei o estabelecimento de um sistema de censura para a exibição cinematográfica, atribuição que foi conferida, por meio do Decreto-Lei nº 679/1974, ao Conselho de Classificação Cinematográfica (órgão ligado ao Ministério da Educação). Em novembro de 1988, o referido órgão proibiu a exibição do filme; no entanto, em 11 de novembro de 1996, passou a autorizar a sua exibição para maiores de 18 anos, medida que fez com que um grupo de cidadãos chilenos ingressasse com recurso perante a Corte de Apelações de Santiago, alegando a violação à honra de Jesus Cristo, da Igreja Católica e de si mesmos. Em razão disso, a Corte chilena tornou sem efeito a resolução administrativa do Conselho, tendo a decisão sido confirmada pela Corte Suprema de Justiça em junho de 1997 (ÁVILA; CARVALHO, 2016).

A denúncia apresentada à CIDH foi embasada nos artigos 12 – que tutela a liberdade de consciência e religião – e 13 – que prevê a liberdade de pensamento e expressão – ambos da CADH. A Comissão decidiu, então, que a sentença da Corte de Apelações chilena e sua confirmação pela Corte Suprema do Chile, que deixaram sem efeito a resolução administrativa do Conselho Nacional de Qualificação Cinematográfica que aprovou a exibição do filme, quando já havia entrado em vigor para o Chile a CADH (ratificada por esse Estado em 21 de agosto de 1990), são incompatíveis com as disposições da Convenção e violam o disposto nos artigos 1.1 e 2. Além disso, enfatizou que, a respeito das pessoas em cujo nome se promoveu a contenda, o Estado chileno deixou de cumprir sua obrigação de reconhecer e garantir os direitos contidos nos artigos 12 e 13, em conexão com os artigos 1.1 e 2 da CADH (CORTE IDH, 2001, p. 03, § 10).

Na ocasião, a Comissão entendeu que, nos casos nos quais uma disposição constitucional é incompatível com a Convenção, o Estado parte está obrigado a adotar as medidas legislativas (constitucionais e ordinárias) necessárias para fazer efetivos

130 “Em cidades como Paris, Lyon, Nice e Grenoble, ativistas cristãos atacaram cinemas com bombas

de gás lacrimogêneo e sprays de pimenta, e espectadores foram agredidos. O cinema Le Saint-Michel, no Quartier Latin, de Paris, foi atacado com bombas incendiárias em 22 de outubro e quatorze pessoas ficaram feridas, quatro delas com gravidade” (ENDJSO, 2014, p. 65).

os direitos e liberdades garantidos pela Convenção131. Em razão disso, considerou

que o Estado chileno não deu cumprimento às regras incluídas no artigo 2 da Convenção Americana, por não ter adotado, em conformidade com seus procedimentos constitucionais, as medidas legislativas ou de outra natureza que fossem necessárias para dar efetividade aos direitos e liberdades contidos na Convenção.

Como foi concedido um prazo de dois meses para que o Chile cumprisse as recomendações e o país não informou o seu cumprimento, a demanda foi submetida à Corte Interamericana de Direitos Humanos em 15 de janeiro de 1999, que, ao final, decidiu que o Estado havia violado o direito à liberdade de pensamento e de expressão, consagrado no artigo 13 da CADH (CORTE IDH, 2001, p. 38, § 103).

Quanto ao direito à liberdade de consciência e de religião, não houve condenação, apenas a determinação para alteração do ordenamento jurídico pátrio, para que fosse suprimida a censura em relação ao filme e a possibilidade de ele ser exibido. Além disso, foi estabelecido um prazo de seis meses para a entrega de relatório comprovando as mudanças e o pagamento de valores em virtude dos gastos com os processos judiciais. Como resposta à decisão da Corte, o Chile reformou sua legislação nacional, passando a abolir a censura prévia: por meio da edição da Lei nº 19.742/2001, a Constituição Chilena (CHILE, 1980), em seu artigo 19, nº 12, passou a vedar expressamente a prévia censura e criou um sistema de classificação.

Esse caso destaca-se por ter sido o primeiro em que a Corte Interamericana reconheceu a questão democrática vinculada à liberdade de pensamento e de expressão, e foi o primeiro em que houve condenação pela sua infração. Não sucedeu, no entanto, condenação em relação à violação de liberdade de crença e de religião, por entender-se que a proibição em relação à exibição do filme não provocou (ou não se provou no decorrer do processo) a mudança em relação à fé professada pelas vítimas, e nem causou neles qualquer tipo de limitação à liberdade de conservar sua religião e suas crenças. Assim, não tendo provas contundentes, entenderam os julgadores pela impossibilidade da condenação no que se refere ao artigo 12.

Quanto ao cumprimento da sentença, a Corte declarou que o Estado chileno atendeu plenamente às suas determinações, dando por concluído o caso e arquivando o expediente (CORTE IDH, 2003).

3.2.4 José Meza vs. Paraguai: quando a sucessão hereditária encontra óbice na