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1 POR QUE OS DIREITOS HUMANOS (E A SEXUALIDADE) TORNARAM-SE

1.2 Por que regionalizar demandas? Uma análise dos sistemas regionais de proteção

1.2.1 O sistema europeu de proteção

Dos sistemas regionais em funcionamento hoje, o mais consolidado é o europeu. Ele emerge como uma resposta aos horrores aos quais foi submetida a humanidade durante a Segunda Guerra Mundial (GUERRA, 2014). A busca, então, pela reconstrução dos direitos humanos do ponto de vista da sua internacionalização inicia-se no continente europeu.

13 “[...] encoraja os Estados em áreas onde os acordos regionais de direitos humanos ainda não

existem, a considerar a possibilidade de firmar acordos com o objetivo de estabelecer, dentro das respectivas regiões, mecanismos regionais adequados para a promoção e a proteção dos direitos humanos” (ONU, 1977, p. 149, tradução nossa).

Após os horrores vividos durante a Segunda Guerra Mundial e a corrida armamentista desenvolvida entre as superpotências mundiais vencedoras da guerra (Estados Unidos e União Soviética), os países europeus buscaram união e cooperação entre si, principalmente em razão da situação política econômica pós-guerra que os deixou fragilizados para atuar individualmente no cenário internacional. (WERMUTH; GOMES, 2016, p. 534).

Em termos de instrumento normativo, a Convenção Europeia de Direitos Humanos (TEDH, 1950) é o diploma maior do sistema europeu. Em 1953, entrou em vigor após a ratificação de oito Estados (Dinamarca, Alemanha, Islândia, Irlanda, Luxemburgo, Noruega, Suécia e Reino Unido). Em 2005, esse número já era de 45 Estados membros, os quais se comprometem, nos termos do artigo 1º da Convenção, a assegurar a todas as pessoas sob a sua jurisdição os direitos e as liberdades nela enunciadas. Desse modo, as nações são obrigadas a adotar as medidas necessárias à efetiva implementação da Convenção no âmbito doméstico. Nessa perspectiva, chama atenção o fato de que o artigo 52 da Convenção prescreve que o Secretário- Geral do Conselho da Europa pode solicitar aos Estados partes que prestem esclarecimentos acerca da maneira por meio da qual seu direito interno assegura a efetiva implementação das disposições da Convenção. Embora o catálogo de direitos civis e políticos da Convenção Europeia seja amplo, os direitos sociais, econômicos e culturais foram incorporados apenas com a adoção da Carta Social Europeia, cuja vigência data de 1965. Além disso, diversos protocolos foram adotados para se somarem aos direitos já previstos na Convenção.

Quando da sua elaboração, a Convenção previa uma sistemática de monitoramento calcada em dois órgãos distintos: a Comissão Europeia de Direitos Humanos e a Corte Europeia de Direitos Humanos, as quais atuavam em tempo parcial. Aquela, tinha por objetivo a apreciação das comunicações interestatais e as petições submetidas por indivíduos, organizações ou grupos de indivíduos. Em qualquer das hipóteses adotadas relativamente ao procedimento da Comissão, a decisão não vinculava do ponto de vista internacional. Por conseguinte, em novembro de 1998, adotou-se o Protocolo nº 11 (TEDH, 1994). Com ele, consagra-se uma nova sistemática com o objetivo de fortalecer a judicialização do sistema europeu, substituindo-se os dois órgãos que na ocasião funcionavam em regime parcial por uma nova Corte permanente com atribuição para realizar o exame de admissibilidade e também de mérito dos casos (RAMOS, 2012). Esse foi um grande avanço, na

medida em que possibilitou que indivíduos, organizações não governamentais ou grupo de indivíduos tivessem acesso direto à Corte relativamente à violação de direitos enunciados na Convenção ou em seus Protocolos adicionais.

No tocante aos aspectos formais, a Corte, cuja sede fica em Estrasburgo, na França, compõe-se de um número de juízes equivalente ao número de Estados partes (artigo 20º), os quais são escolhidos dentre uma lista de três candidatos indicados por cada Estado, sendo que eles devem gozar de elevada respeitabilidade moral, possuindo as qualificações necessárias para as Cortes judiciais superiores ou saber jurídico de reconhecida importância (artigo 21º). Os juízes são eleitos para um período de nove anos, não se admitindo reeleição.

A Corte Europeia tem função consultiva e contenciosa. A função consultiva traduz-se na formulação de opiniões consultivas, por meio de pareceres, sobre questões jurídicas que envolvam a interpretação da Convenção e dos seus posteriores Protocolos (artigo 47º). A competência contenciosa, por outro lado, implica a emissão de decisões juridicamente vinculantes com natureza declaratória, sendo importante reiterar que qualquer pessoa, grupo de pessoas ou organização não governamental pode acessar diretamente a Corte (artigo 34º). A petição será apreciada em duas etapas. Primeiramente, faz-se o juízo de admissibilidade relativamente aos pressupostos a que se refere o artigo 35º. Não preenchidos os pressupostos, a decisão é definitiva e inapelável14. Declarando-se o petitório

admissível, entretanto, as partes são informadas e propõe-se uma solução amistosa. Não restando exitosa a conciliação, serão fixados prazos para apresentação de alegações finais, podendo haver designação de audiência, se for o caso. Ao final, a Corte delibera sobre ter havido ou não violação à disposição constante da Convenção ou dos demais instrumentos que a complementam, arbitrando, se assim entender, compensação pecuniária à vítima (artigo 41º). Além disso, pode haver determinação de alterações normativas, como no caso Dudgeon vs. Reino Unido, de 1981, em que os peticionários haviam sido afastados das Forças Armadas em virtude de sua orientação sexual. A Corte entendeu que a proibição de conduta homossexual consensual entre adultos constituía uma interferência arbitrária na vida privada, com o que determinou a descriminalização da prática consensual homossexual na Irlanda

14 O artigo 37º estabelece que embora possa haver arquivamento em qualquer momento do processo,

“o Tribunal dará seguimento à apreciação da petição se o respeito pelos direitos do homem garantidos na Convenção assim o exigir” (TEDH, 1994, p. 23-24).

do Norte. Por fim, é de se mencionar que a supervisão do cumprimento das decisões fica a cargo do Comitê de Ministros (artigo 46º).

Em termos de desafios, é prudente lembrar que se até há pouco o sistema europeu alcançava uma região relativamente homogênea, o ingresso dos países do Leste Europeu agregou diversidade e heterogeneidade ao mecanismo, o que significa ter de lidar com novas complexidades e ansiedades até então menos evidentes. Como conciliar em um mesmo sistema percepções acerca dos direitos humanos do ponto de vista da França e da Rússia, por exemplo?15 A receita parece ser aquilo que a

Corte chama de margem de apreciação ou princípio da proporcionalidade, o que concede maior liberdade para a autoridade interpretar a norma. Quanto aos direitos mais consolidados, a exemplo do direito à vida e da proibição de tortura, a interpretação ocorre, via de regra, de modo mais restrito. Mas no que se refere aos direitos conquistados mais recentemente, dentre os quais é possível incluir os direitos sexuais, a margem de manobra é significativamente maior.

Essa teoria, engendrada na antiga Comissão Europeia de Direitos Humanos e confirmada depois pela Corte IDH, é consequência do espírito que gerou o Conselho da Europa. Esse espírito consiste na crença que os direitos humanos e a democracia são parte integrante do patrimônio jurídico dos Estados Europeus Ocidentais. Assim, a confiança nesses países possibilitava que a Corte EDH deixasse de apreciar determinados casos, porque democracias não deixariam de proteger os direitos humanos. Ocorre que, aplicada essa teoria a casos envolvendo os direitos das minorias (transexuais, homossexuais, liberdades de expressão em temas religiosos, xenofobia, violação dos direitos dos suspeitos de terrorismo etc.) teremos uma verdadeira denegação de justiça internacional, uma vez que as suscetibilidades e tradições nacionais majoritárias não sofreriam crivo. (RAMOS, 2012, p. 170).

Nesse ínterim, é possível tomar como exemplo o antigo caso Handyside vs. Reino Unido (TEDH, 1976). Os fatos giram em torno da obra “O pequeno livro vermelho do estudante”, que continha uma seção de 26 páginas destinadas a tratar de questões relativas à sexualidade, como contracepção, pornografia, homossexualidade e aborto. O Sr. Handyside foi condenado por ter a posse de livros obscenos para publicação com intuito de lucro. O pedido foi apresentado perante a Comissão em 1972, que não encontrou as violações alegadas. A Corte Europeia

15 Nesse sentido, importa mencionar que a Rússia está sendo demandada em inúmeros casos relativos

a direitos sexuais, dos quais é um exemplo o recente caso Lashmankin e Outros vs. Rússia (TEDH, 2017a), de 2017, em cujo cerne discutiam-se as restrições impostas por autoridades russas às reuniões, manifestações e assembleias destinadas a debater os direitos de pessoas LGBTI.

argumentou, com base na margem de apreciação, que a interferência na liberdade de expressão do Sr. Handyside estava alicerçada pelo direito, sendo necessária em uma sociedade democrática, inexistindo, por consequência, violação ao artigo 10º da Convenção, que discorre sobre a liberdade de expressão.

Além desses desafios de cunho hermenêutico, as inovações trazidas pelo Protocolo nº 11 trouxeram um aumento significativo de demandas submetidas à Corte. Se na década de 1960 apenas 10 decisões foram proferidas pela Corte, na década de 1990 esse número superou a marca das 800 decisões (TEDH, 2001). O Protocolo nº 14, nesse sentido, foi incorporado ao mecanismo do sistema regional europeu tendo em vista justamente o elevado número de demandas que têm sido submetidas para apreciação (TEDH, 2004).

Por outro lado, não se pode desconsiderar o fato de que, em termos de direitos sexuais, o tribunal mais consolidado é, de fato, o europeu. A discussão a respeito é antiga e, além do caso envolvendo o Sr. Handyside, decidido pelo Tribunal Europeu no longínquo ano de 1976, em 1992 houve uma decisão paradigmática relativa ao caso B. vs. França, no qual uma mulher trans questionava a alteração do seu registro civil. Foi a primeira vez na qual a Corte concluiu que havia violação ao artigo 8º da Convenção no que diz respeito ao reconhecimento de direitos de transexuais. Até então, nos casos Van Oosterwijck vs. Bélgica (TEDH, 1980), Rees vs. Reino Unido (TEDH, 1986) e Cossey vs. Reino Unido (TEDH, 1990), a Corte não havia condenada os Estados por se negarem a modificar a certidão de nascimento de pessoas transexuais. Também é possível mencionar o caso Christine Goodwin vs. Reino Unido (TEDH, 2002), de cuja decisão, proferida em julho de 2002, constou que o transexual pode exercer todos os direitos ligados ao novo sexo, inclusive contraindo casamento. No caso Baczkowski vs. Polônia (TEDH, 2007), apresentado em 2005, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou o banimento das marchas de orientação sexual uma violação ao direito de reunião e associação de pessoas LGBTI. Também relativo a manifestações pacíficas referentes ao Dia Internacional contra a Homofobia é o caso Identoba e Outros vs. Georgia (TEDH, 2015a), de 2015, no qual a Corte concluiu que houve violação aos artigos 3º e 14º da Convenção. O caso Y. Y. vs. Turquia (TEDH, 2015), também de 2015, versa sobre direitos sexuais, notadamente acerca da recusa das autoridades turcas em conceder a cirurgia de mudança de sexo sob o argumento de que a requerente não era permanentemente incapaz de procriar. Por fim, é de se trazer à baila o caso Carvalho Pinto de Sousa Morais vs. Portugal

(TEDH, 2017), cujo julgamento data de 25 de julho de 2017. O mérito do caso dizia com a indenização que deveria ser alcançada a uma mulher que ficou impossibilitada de ter relações sexuais com normalidade depois de ter sido submetida a uma cirurgia de rotina. A justiça de Portugal reduziu o montante a ser ressarcido porque supostamente depois dos 50 anos de idade o sexo não tem a mesma importância que ocupa quando se é mais jovem. Em acertada decisão, a Corte Europeia condenou o Estado português a pagar uma indenização em euros à Sra. Maria Morais, hoje com 70 anos de idade. Um dos argumentos utilizados pela Corte é o de que a decisão da justiça portuguesa foi proferida com base em percepções estereotipadas (sexuais, de gênero e de faixa etária) a respeito da vítima.

Não se pode negar, portanto, que a Corte Europeia cultiva e incrementa uma vasta jurisprudência em termos de direitos sexuais. O fato de se assistir a uma espécie de “interamericanização” do sistema europeu e, em contrapartida, uma “europeização” do sistema interamericano, para usar as expressões de Piovesan (2014), talvez indique que seja possível visualizar um futuro promissor em termos de direitos sexuais também no sistema interamericano, cuja análise será feita a seguir.