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2 DIREITO NATURAL E USUS MODERNUS

3.2 A Lei da Boa Razão (1769)

3.2.3 A ideia de “boa razão”

Em momento nenhum a Lei de 18 de agosto de 1769 nomeou-se Lei da Boa Razão, creditando a historiografia jurídica portuguesa a José Homem Correia Telles essa atribuição

610 Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o I.

Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo, 1801, p. 106.

611 TELLES, José Homem Correia, op. cit., p. 74.

612 “Cum interpretatione Grammatica conjungenda est Logica, quae in eruenda legis ratione versatur. Ratio legis

ex certis quibusdam principiis demonstratur: itaque Lusitani Jureconsulti est per rectam ratiocinationem ex eisdem colligere, quae mens, quaeve sententia legislatoris fuerit”. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos.

Historiae juris civilis lusitani liber singulis. Coimbra: Tipografia Acadêmica, 1827, p. 145.

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pela qual ficou conhecido o diploma614. Um exame do seu conteúdo explica o porquê do cognome, já que, ao longo do texto, a expressão “boa razão” se repete em diversas passagens.

Não se trata a expressão de uma novidade trazida pela lei em análise. Em verdade, as Ordenações Filipinas já falavam em boa razão quando diziam “as quaes Leis Imperiaes mandamos somente guardar póla boa razão em que são fundadas” 615, mas o tema não parece ter recebido atenção doutrinária ou prática616, mesmo porque, se assim não fosse, careceria de sentido a existência de uma lei interpretativa para o assunto. Se a inovação da Lei da Boa Razão não foi trazer uma nova expressão, sua função, fundamentalmente, foi dar-lhe aplicabilidade, conferindo importância fundamental dentro do contexto reformista.

A boa razão era um atributo necessário para a validade do direito romano dentro da ordem interna portuguesa. Não se falava em conformidade do direito pátrio à boa razão por ser este fruto de um legislador infalível e, portanto, perfeito. O legislador josefino buscou agir racionalmente quando da elaboração das suas leis, e, de acordo com o que se pensava na época, uma atuação pautada e construída na razão, maior e melhor atributo dos homens, não poderia conter falhas.

Os governos iluministas instalados em Estados absolutistas ao longo do século XVIII se preocuparam com a construção de um corpo de leis adequado e que refletisse o espírito da sua época, cuidando dos problemas encarados como de primeira ordem, tanto sob o ponto de vista material e do conteúdo quanto sob o aspecto formal, o modo de se fazer. A Prússia e a Áustria foram palcos de discussões e projetos de leis, reunidas em grandes códigos, frutos da colaboração de intelectuais e juristas respeitados.

Típico representante do absolutismo esclarecido, Frederico II da Prússia, na sua Dissertation sur les raisons d’établir et d’abroger les lois, criticou as leis que contrariassem a razão natural, as quais deveriam ser alteradas, como se sucedera no seu reino617, sendo necessário que as leis de um Estado fossem claras618 para não darem lugar a interpretações

614 Neste sentido, CRUZ, Guilherme Braga da, op. cit., p. 385; SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da, op. cit., p.

276.

615 ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal:

recompiladas por mandado d’el-Rei D. Filipe I. Ed. Fac-similar da 14 ed., segundo a primeira, de 1603, e a nona, de Coimbra, de 1821. 4 v. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 664 (Liv. III, Tit. LXIV).

616 Um dos organizadores das Ordenações, Manuel Barbosa, que foi também autor de um dos mais consultados

comentários a elas, sequer abordou a questão ao tratar da aplicação subsidiária do direito romano. Cf. BARBOSA, Manuel. Remissiones doctorum de officiis publicis, iuridictione et ordine iudiciario, p. 420-421.

617 FRÉDÉRIC II. Essai sur les de gouvernement et sur les devoirs des souverains. Oeuvres de Frédéric le

Gran. Tome IX. Berlin: Rodolphe Decker, 1848, p. 24.

618 “Des lois précises ne donnent point lieu à la chicane, elles doivent s’entendre selon le sens de la letter”.

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erradas feitas pelos juízes619. Portanto, o monarca prussiano reconhecia a existência de problemas com as leis no seu reino e propunha alterações. Logo em 1746, uma ordenança, determinando o repúdio ao direito romano e a prioridade para o direito territorial alemão fundado nas constituições do País e, vejam só, na razão natural620, decretou o início de uma onde de reformas jurídicas encabeçadas, inicialmente, por Samuel von Cocceji (1679-1755) e influenciada por autores como Samuel Pufendorf, que culminou com a elaboração de um projeto de código. O Codicis Fridericiani originou o Allgemeine Gerichtsordnung, que em 1781 se tornou o primeiro código processual iluminista e influenciou o maior monumento do movimento codificador do Antigo Regime, o Allgemeines Landsrecht, de 1794621.

A experiência austríaca começou com o governo da imperatriz Maria Theresa, quando foi nomeada uma comissão que, em 1766, terminou um longo projeto denominado Codex Theresianus, que tratava do direito privado e foi escrito em alemão, e não em latim, como ocorria tradicionalmente. Ainda que tenha sido criticado e sequer tenha sido publicado, o Theresianus foi a semente para que o sucessor de Maria Theresa, o imperador José II, mandasse elaborar o Josefinisches Gesetzbuch, codificação do direito privado austríaco publicada em 1787. Em seu governo, José II desenvolveu intensa atividade legislativa, a qual é bastante representativa do iluminismo, especialmente na seara penal622.

Portugal também foi palco desse movimento codificador, mas só no reinado de D. Maria I, quando se constituiu uma comissão, presidida por Mello Freire, com a função de elaborar um Código de Direito Público que substituiria as Ordenações. Tanto este quanto o projeto de um Código Criminal, no qual há nítidas influências iluministas, não se concretizaram623, e Portugal precisou esperar quase um século para ter uma nova codificação civil, o Código Seabra, de 1867.

619 “Les juges ont deux piéges à craindre, ceux de la corruption, et ceux de l’erreur; leur conscience doit les

garantir des premiers , et les législateurs, des seconds. Des lois claires, qui ne donnent pas lieu à des interprétations, y sont un premier remede, et la simplicité des laidoyers, le seconde”. FRÉDÉRIC II, op. cit., p. 30.

620 “Hauptsächlich muss das Römische Lateinische Recht abgeschafft, und dem Preussischen Fuss ein Teutsches

Landrecht verfertiget warden, welches sich blos auf die natürliche Vernunft und die Landesverfassungen gründen muss”. TARELLO, Giovanni, op. cit., p. 236.

621 Sobre a codificação prussiana, cf., entre muitos outros, TARELLO, Giovanni, op. Cit., p. 234-245 e 486-506;

WIEACKER, Franz, op. Cit., p. 371-380.

622 Sobre o tema, cf. TARELLO, Giovanni, op. Cit., p. 248-257 e 506-536; WIEACKER, Franz, op. Cit., p. 381-

386.

623 Em grande medida, o projeto naufragou em virtude das censuras elaboradas por António Ribeiro dos Santos.

Para uma visão geral das obras de Mello Freire, especialmente do Novo Código, cf. SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. Polizei, Ökonomie und Gesetzgebungslehre: ein Beitrag zur Analyse der portugiesischen Rechtswissenschaft am Ende des 18. Jahrhunderts. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2003, p. 122-156; PEREIRA, José Esteves. O pensamento político em Portugal no século XVIII: António Ribeiro dos Santos. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005, p. 243-406.

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Ainda que D. José I não tenha tentado elaborar um código racional, a sua atuação legislativa foi bastante intensa e trazia consigo a pretensão de racionalidade e de perfeição, e isso porque o Estado josefino, sob o comando de Pombal, buscava inspiração no reformismo e nas experiências de outros países do seu tempo, especialmente na Áustria, onde Carvalho e Melo vivera entre 1743 e 1749. A menção a expressões como “nações civilizadas” ou “nações polidas” da Europa é uma constante em vários textos legais do período, especialmente nos dois principais textos reformistas.

Por tudo isso, a idéia de boa razão, razão natural ou outro sinônimo teve a sua aplicação restrita, em Portugal, às leis já existentes, pois as leis josefinas já traziam na sua essência a melhor conformidade com a razão humana. Sendo ainda mais incisivo nessa delimitação, tampouco era aplicada a toda lei já publicada, mas tão somente àquelas que não eram oriundas do legislador português. O respeito do monarca para com os seus antecessores, evidenciado em algumas passagens da própria Lei da Boa Razão, desautorizava uma investigação pelo soberano sobre a conformidade daquele diploma com a razão natural; nesse aspecto, o rei é consciente de que a infalibilidade no ofício legislativo não era atributo pessoal seu, mas inerente ao ofício.

Ficou, pois, restrito o âmbito de aplicação da boa razão basicamente ao direito não nacional, especialmente o direito romano, a problemática fonte subsidiária. A excessiva aplicação das leis imperiais pelos tribunais era tão preocupante que o parágrafo nono da Lei da Boa Razão a menciona expressamente. Não bastasse ser utilizado em excesso, o direito romano seria mal-aplicado, e mal-aplicação era tomar o direito romano e fazer dele a lei do caso sem se verificar a compatibilidade do preceito específico com a boa razão, e erro semelhante era o do julgador ou do advogado que deixavam de verificar se a regra guardava relação apenas com o contexto romano, sem se ligar à realidade do presente.

As análises históricas, tão caras ao jusnaturalismo que influenciou o iluminismo absolutista624, ressoaram na Lei da Boa Razão. O extenso e importante parágrafo nono, ao condenar a aplicação de leis romanas cujos fundamentos estavam somente em situações particulares de Roma, fazia necessário um conhecimento mais aprofundado da própria História romana, sem a qual não seria possível entender o contexto em que surgiram essas

624 Praticamente todos os autores influentes do período se consideravam bons conhecedores da história romana e

da história local. Deles, o primeiro a dedicar uma obra ao assunto foi Hermann Conring, na sua De Origine Iuris

Germanici, de 1643. Em Portugal, Verney demonstrou, no Verdadeiro Método de Estudar, possuir bons conhecimentos históricos. Sobre esse tema, cf. p. 46 desta dissertação.

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leis625. Ao tratar da reforma universitária de 1772, esse tema será abordado com mais atenção, mas é importante mencionar a presença desses elementos na Lei da Boa Razão para comprovar que se tratava de um ponto relevante na reforma jurídica do período josefino.

Só depois de adquirir os necessários conhecimentos históricos que envolveram o surgimento da lei romana é que o aplicador do direito vai verificar a sua compatibilidade com a realidade. Importante é que a lei não menciona, em momento algum, que essa realidade é a portuguesa. O paradigma adotado foi o das nações européias, em mais uma evidência de que o legislador pretendia modernizar Portugal a partir da modificação da ordem existente, e seguir os modelos dessa reforma era uma garantia, ao menos em tese, de que os objetivos seriam alcançados. Por isso, a passagem que nega vigência às leis romanas que “tiverão por fundamento outras razões assim de particulares costumes dos mesmos Romanos, que nada podem ter de communs com os das Nações, que presentemente habitão a Europa”626 representa perfeitamente o reformismo pombalino e a sua ideologia, que, ao tentar combater o atraso em que se inseria Portugal, mandava que se seguissem povos mais desenvolvidos e civilizados.

Outra passagem do mesmo parágrafo nono também chama a atenção quanto ao aspecto da modernização do País. À categoria de direito subsidiário foi alçado o direito estrangeiro, desde que preenchidas as exigências legalmente estabelecidas, que diziam respeito preponderantemente à sua origem: o direito estrangeiro válido como fonte subsidiária era o dos Estados cristãos, iluminados e polidos627, para usar a literalidade do dispositivo628. Com isso, o legislador dava a entender que, se as leis e a jurisprudência desses países eram frutos de um exercício racional, baseado na busca por um direito verdadeiro e justo, elas poderiam perfeitamente ser aplicadas em Portugal.

Caso seja possível estabelecer uma hierarquia de importância do conteúdo do longo parágrafo nono, ela deve apontar como principal passagem o trecho da explicação do que o

625 A partir do argumento histórico, Mello Freire diz ser inepta e vã qualquer tentativa de aplicar o direito

romano ao direito pátrio português daqueles tempos, mencionando algumas determinações específicas das

Institutas e das Pandectas, pois essas disposições pertencem “ao estado de liberdade, e quase nenhum lugar tem numa monarquia”. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Instituições de direito civil português. Trad. Miguel Pinto de Meneses. Boletim do Ministério da Justiça 161 (dez. 1966), p. 104.

626 Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o I.

Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo, 1801, p. 104v-105.

627 Apesar da constante referência, a Lei da Boa Razão, não indicava quais os países civilizados, cf. MARQUES,

Mário Reis. História do Direito Português Medieval e Moderno. 2 ed. Coimbra, Almedina, 2002, p. 165. José Homem Correia Telles, porém, dá a entender o que um português pensava sobre civilização no começo do século XIX, já que o autor afirma “ter-se por civilisadas todas as Nações da Europa, só se exceptuarmos a Turquia”. TELLES, José Homem Correia, op. Cit., p. 62.

628 Cf. Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o

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legislador entende por boa razão. Se as Ordenações Filipinas condicionavam a aplicação do direito romano à sua conformidade com a boa razão e o caráter subsidiário deste não era obedecido, estava mais do que clara a necessidade de se determinar, definitivamente, o conteúdo dessa expressão. Neste ponto específico, a Lei da Boa Razão realiza uma interpretação autêntica, num raro caso de metalinguagem jurídica: uma lei que disciplina a interpretação autêntica e que traz em seus parágrafos um esclarecimento sobre uma lei vigente.

Três regras foram trazidas para se entender o conteúdo da boa razão, mas, delas, a primeira é a mais importante. Na literalidade legal, a boa razão “consiste nos primitivos princípios, que contém as verdades essenciaes, intrínsecas, e inalteráveis, que a ethica dos mesmos Romanos havia estabelecido, e que os Direitos Divino, e Natural formalisárão para servirem de regras Moraes, e Civis entre o Christianismo” 629.

A boa razão, de acordo com essa definição, se relacionaria aos fundamentos cristãos de justiça e da vida social, baseando-se na existência de um conceito metafísico de verdade ao qual corresponderia a boa razão, numa nítida influência do princípio tomásico da ueritas est adaequatio intellectus et rei630. Se a lei falava que essas verdades buscadas eram essenciais e inalteráveis, significava que não se mudavam ao longo do tempo e, conseqüentemente, tinham uma validade universal, em todos os lugares e épocas.

O atributo da universalidade, aqui, se liga profundamente à questão da racionalidade; esta também é uma característica que atinge a totalidade dos homens, apesar de esta Lei a direcionar, especificamente, aos povos cristãos, o que implica dizer que qualquer homem poderia, a princípio, utilizar a razão inerente à sua condição para entender esses princípios naturais. No entanto, algumas dificuldades poderiam surgir; partindo da pretensão de validade e veracidade universais dos valores cristãos, a Lei parece reconhecer nos povos cristãos uma maior facilidade para encontrar o caminho da verdade. É interessante que o legislador josefino não fala em moral católica, mas em moral cristã, e isso pode implicar duas conclusões: ou ele ainda estava sob influência do contra-reformismo, que tentou manter a unidade cristã sob o comando de Roma, considerando todos os outros como hereges631, ou quis reconhecer como civilizados povos cristãos que haviam aderido à reforma, como os ingleses, os holandeses e

629 Idem, ibidem.

630 Sobre a verdade em Tomás de Aquino, Cf. Suma teológica. Volume 1. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2003, p.

357-372.

631 Para Mello Freire, heresia era a “defesa pertinaz dum dogma condenado pelo Juízo da Igreja Universal e

contrário ao Símbolo da fé católica”. Instituições de direito criminal português. Trad. Miguel Pinto de Meneses.

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algumas regiões da Alemanha. A recepção, ainda que não sem alguma dificuldade e resistência, de juristas protestantes632 leva a crer que a segunda opção seja a mais coerente.

Outro aspecto que limitava essa busca pela verdade dizia respeito à necessidade de uma devida preparação, especialmente em matéria histórica. Os “princípios essenciais” eram descobertos através da razão humana, mas a comprovação de que se tratariam, de fato, de regras universais só poderia advir da análise histórica: se uma determinada regra vinha sendo aplicada por todos os povos há muito séculos, não há como lhe negar razão e validade universal. Desta forma, era fundamental o conhecimento da História, a fim de se comprovar que determinado instituto vinha sendo aplicado em todas as épocas.

Ao falar em direito romano, o legislador, aqui, retira quaisquer dúvidas sobre o principal foco da boa razão. A distância temporal entre a elaboração da lei e o momento em que se pretendia aplicá-la requisitava uma reflexão sobre os motivos que levaram o legislador a criar o diploma; caso este tivesse por finalidade a promoção da justiça, e não outra razão particular, o passo seguinte seria perceber se essa justiça era fundada na moral cristã, por ser inaceitável uma lei com os fundamentos pagãos adotados em Roma até o século IV. Sendo compatível com os ensinamentos cristãos, os quais refletiriam tanto o direito divino quanto o direito natural, como se comprovará à frente, a regra seria racional, universal e dotada da boa razão, estando apta para a aplicação, pelo menos de acordo com essa parte da Lei. A sua análise global, contudo, faz lembrar que, na prática, cabia à Casa da Suplicação verificar se esse preceito romano realmente condizia com a boa razão; está claro que a última etapa do processo de verificação da compatibilidade era a análise da sua coerência com a moral cristã e o direito natural, mas é importante frisar que essa tarefa cabia, em última instância, à Casa da Suplicação, que exercia a função jurisdicional em nome do rei.

Percebe-se que o termo “intrínseco”, trazido pela Lei, é de extrema relevância. A validade do direito romano, no Portugal do século XVIII, não decorreria da autoridade de quem deu as leis, mas do seu conteúdo, que proporcionaria, nos casos em que correspondesse à lei natural, um uso contínuo e atual da idéia expressa pela lei. E a verificação do uso atual do direito romano foi um dos principais temas discutidos por autores importantes entre os séculos XVII e XVIII, principalmente entre os de origem germânica. Esse movimento passou

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a ser identificado com a expressão usus modernus pandectarum633 e foi de influência decisiva no reformismo português634.

A segunda regra remetia à boa razão “que se funda nas outras regras, que de unânime consentimento estabeleceo o Direito das Gentes para a direcção e governo de todas as Nações civilisadas” 635. O direito das gentes teve origem romana e trazia as regras de convivência entre os povos636, sendo de grande serventia posteriormente, principalmente no século XVII, com a Paz de Westfália, em 1648637. As constantes relações entre os Estados, tanto em tempos de guerra quanto de paz, passaram a exigir alguns regramentos básicos para essa convivência, e muitos autores passaram a se dedicar ao assunto, construindo o direito das gentes moderno a partir do direito natural, fazendo do primeiro uma parte do segundo. Isso implica que essa segunda regra vai ao encontro do delineado na primeira quanto à razão natural, à moral cristã, ao direito divino e ao natural, podendo ser encarada com uma extensão daquela disciplina para o plano internacional.

Por fim, a terceira regra, a mais específica delas, fala da boa razão

que se estabelece nas Leis Políticas, Económicas, Mercantis, e Marítimas, que as mesmas Nações Christãs tem promulgado com manifestas utilidades, do soccego publico, do estabelecimento da reputação, e do augmento das cabedaes dos povos, que com as disciplinas destas sabias, e proveitosas Leis vivem felices à sombra dos thronos, e debaixo dos auspícios dos seus respectivos Monarcas, e Principes Soberanos638.

As definições do que eram leis políticas e econômicas foi dada posteriormente, nos Estatutos da Universidade639. Quanto às demais, José Homem Correia Telles afirma que as mercantis eram todas as que dissessem respeito aos negócios640, ao passo que as marítimas

633 Sobre o usus modernus pandectarum, cf. p. 95-99 desta dissertação.

634 Sobre a influência desses autores na cultura jurídica portuguesa do final do Antigo Regime, cf. p. 99-108

desta dissertação.

635 Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o I.

Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo, 1801, p. 105.

636 “El nombre de ius gentium es adoptado por los jurisconsultos para expressar también una comunidad de