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2 DIREITO NATURAL E USUS MODERNUS

3.2 A Lei da Boa Razão (1769)

3.2.2 As alterações

Esta seção do trabalho cuidará dos aspectos mais relevantes dos catorze parágrafos da Lei de 18 de agosto de 1769, a fim de esclarecer todo o conteúdo da lei. Como foi dito na seção anterior, a Lei da Boa Razão, apesar de fazer algumas alterações na ordem jurídica, teve finalidades nitidamente interpretativas, esclarecendo alguns pontos específicos considerados problemáticos nas Ordenações vigentes.

O primeiro dispositivo da Lei faz referência ao Liv. I, Tit. IV, §1º587, das Ordenações, cujo objeto gira em torno de uma das funções do Chanceler da Casa da Suplicação, a quem cabia a tarefa de revisar todas as sentenças dos desembargadores antes das publicações. As Ordenações prelecionavam que, caso a sentença as afrontasse expressamente, deveria o Chanceler pôr-lhe glosa e levá-la aos demais desembargadores para que decidissem, caso houvesse divergência entre o desembargador-relator e o Chanceler.

A Lei da Boa Razão, no parágrafo primeiro, determinou que fosse seguido esse procedimento tanto “quando a decisão da Carta ou Sentença, que houver de passar pela Chancellaria, for expressamente contrária às Ordenações, e as Leis destes Meus Reinos” quanto “quando a sobredita decisão for contra direito expresso, com erro do referido direito por si mesmo notório” 588. Aqui há uma interpretação ampliativa na primeira parte, pois se indica que o dispositivo em comento, ao falar da contradição com as Ordenações, deveria ser entendido como todas as leis do reino, o que é plenamente compreensível, já que várias outras leis extravagantes foram publicadas depois de 1603 e entre elas e as Ordenações não havia hierarquia589. Na segunda parte do parágrafo, a opinião de José Homem Correia Telles é de que o “direito expresso” do qual fala a Lei seria o direito romano recepcionado, mas por “erro

587 “Ao dito Chanceller pertence ver com boa diligencia todas as Cartas e sentenças, que passarem pelos

Desembargadores da dita Casa, antes que as selle. E vendo pela decisão da Carta, ou sentença que vai expressamente contra as Ordenações, ou direito, sendo o dito erro expresso, per onde conste pela mesma Carta, ou sentença, ser em si nulla, a não sellará, e por-lhe-ha sua glosa, e a levará a Relação, e fallará com o Desembargador, ou Desembargadores, que a tal Carta, ou sentença passaram. E se entre o dito Chanceller e Officiais, que o tal desembargo assinaram, houver sobre a dita glosa differença, determinar-se-há perante o Regedor com os Desembargadores, que para isso lhes parecerem necessário, e passará como pela maior parte delles for determinado. E tanto que o dito Chanceller propozer a glosa, se apartará, como se apartam os Desembargadores, que nas taes sentenças e Cartas foram, e não será presente ao votar sobre Ella, para que os Desembargadores, que as houverem de determinar, o façam livremente, como lhes parecer justiça. E isto haverá lugar, assim nas cartas e sentenças, que forem desembargadas em Relação, como nas que per hum, ou dous, ou mais passarem”. ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de

Portugal: recompiladas por mandado d’el-Rei D. Filipe I. Ed. Fac-similar da 14 ed., segundo a primeira, de

1603, e a nona, de Coimbra, de 1821. 4 v. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 14-15.

588 Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o I.

Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo, 1801, p. 102v.

589 Isso se dava em razão de as Ordenações serem consideradas leis de caráter geral, cf. LOPES, José Reinaldo

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notorio” o autor não admite divergência interpretativa ou desconformidade com a boa razão, o que faz concluir que se trata do literal dispositivo do texto romano já internamente válido590.

Em seguida, o segundo parágrafo trouxe determinação importante para os fins deste trabalho, pois tratou de hipótese de descumprimento de um rito previsto legalmente. Não era permitido a um desembargador, antes de consultar o Regedor da Casa da Suplicação para que este encaminhasse a elaboração de assento, julgar contra a expressa dicção legal ou se posicionar, pelo seu próprio arbítrio, contra a inteligência da lei. Em outros termos, a Lei da Boa Razão proibiu os membros da Casa da Suplicação de questionarem e deixarem de aplicar as leis antes que o referido tribunal emitisse posicionamento oficial, através de assentos, “em que não se julga o direito das partes no particular de cada huma dellas, mas sim a intelligencia geral, e perpetua da Lei em commum beneficio” 591. Como os assentos, ainda que oriundos de um caso particular, diziam respeito à lei abstratamente considerada, às partes envolvidas no processo originário não seria autorizado recorrer da decisão. É notória a importância deste artigo para garantir a segurança jurídica, pois um membro da Casa não mais poderia contrariar a orientação predominante no seu tribunal, implicando a centralização das decisões sobre divergências interpretativas.

Enquanto o parágrafo terceiro traz regras procedimentais, o parágrafo quarto menciona um aspecto digno de nota: ao mesmo tempo em que manda publicar todos os assentos já emitidos pela Casa da Suplicação592, dá-lhes força de lei593. Isso não violaria a perspectiva de que a função legislativa era exclusiva do rei, pois, como já se mencionou, a interpretação autêntica a cargo da Casa da Suplicação ocorria em razão da delegação de atribuições pelo rei. Essa força de lei dos assentos foi aceita na prática, tanto que, no projeto do Código de Direito Público, a disciplina dos assentos se situava, topologicamente, no título referente às leis594.

590 TELLES, José Homem Correia, op. cit., p. 8-10. 591

Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o I.

Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo, 1801, p. 102v-103.

592 O primeiro volume dessa coleção só foi publicado em 1791, mais de vinte anos depois do mandamento legal.

Para ter acesso a essa obra, cf. Collecção Chronologica dos Assentos das Casas da Supplicação e do Civel. v 1. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1791.

593 “E que os Assentos já estabelecidos, que tenho determinado, que sejam suplicados, e os que se estabelecerem

daqui em diante sobre as interpretações das Leis, constituam Leis inalteraveis para sempre se observarem como taes debaixo das penas abaixo estabelecidas”. Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz

reinado delrey fidelissimo D. José o I. Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo,

1801, p. 103.

594 “Para maior e mais prompta expedição dos negocios, conservamos o uso dos Assentos da Casa da

Supplicação, e mandamos que havendo dúvida sobre a intelligencia da lei, e sua applicação, suscitada pelos juízes, advogados, ou por glosa do Chanceller, o Regedor da Casa a proponha em Mesa grande, a que serão chamados os ministros actuaes dos aggravos, e os que o houverem sido; e o que por mais votos se decidir, se observará, de que se fará Assento, que servirá de regra para o futuro em casos similhantes”. Tit. II, 13. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo Código de Direito Público de Portugal, com as provas, compilado

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O parágrafo seguinte tem conteúdo similar, mas se refere aos assentos que viessem a ser tomados depois da Lei. Na verdade, ela fala, em termos precisos, de “estilos da Casa da Suplicação”, os quais já eram, de acordo com as Ordenações, fontes do direito pátrio. José Homem Correia Telles os define como “o uso acerca do modo de praticar o que as leis mandão” 595, o que acarreta não se admitir a contrariedade das leis por eles. Na tendência centralizadora em que se insere a Lei de 18 de agosto de 1769, passou-se a encarar como estilo somente as práticas da Casa da Suplicação confirmadas por assentos, evitando-se, assim, a invocação, como possuidores de força de lei, de precedentes de tribunais inferiores ou de decisões isoladas de desembargadores da Casa, os quais, em muitos casos, se chocavam com a legislação pátria, como já se disse. O parágrafo oitavo, por sua vez, fala expressamente que a interpretação autêntica, através da tomada de assentos seguindo os procedimentos trazidos pelas Ordenações, era prerrogativa exclusiva da Casa da Suplicação, e não das Relações do Porto, de Goa, da Bahia e do Rio de Janeiro596.

Manifestação do caráter pedagógico da Lei da Boa Razão, desta vez destinado expressa e especificamente aos advogados, foi o parágrafo sétimo. Nele, o legislador afirmou que a experiência já demonstrou a abusividade de muitas interpretações das leis pátrias, e esse problema não raro era causado por ação dos advogados, que ofereciam nas suas petições versões “equivocadas” do que as leis quiseram dizer. No intuito de evitar essas interpretações chamadas de “frívolas” pelo dispositivo, estabeleceu-se um elenco de punições para os casos em que os procuradores atuassem dolosamente nesse sentido.

As penas começariam com a aplicação de uma multa pesada, no valor de cinquenta contos de réis, mais uma suspensão das atividades advocatícias por seis meses, porém, em caso de nova ocorrência em conduta faltosa, o causídico teria o seu diploma de bacharel cassado; se tornasse a cometer essa infração, fazendo “assignar clandestinamente as suas Allegações por differentes pessoas”, receberia a pena de degredo, por cinco anos, em Angola597. Com a previsão de tão severas punições, pretendeu o monarca evitar que os advogados levantassem interpretações contrárias ao que dizia o rei diretamente, através das suas leis, ou através do seu tribunal, a Casa da Suplicação. E note-se: a punição não atingia a

pelo Desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1844, p.

5. Nas provas, Mello Freire justifica a sua decisão por serem os assentos instrumentos da interpretação autêntica, a qual possui força de lei, como diz o Código, no parágrafo anterior do mesmo título. Cf. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos, op. Cit., p. 182.

595 TELLES, José Homem Correia, op. cit., p. 15.

596 Cf. Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o

I. Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo, 1801, p. 104-104v.

597 Cf. Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o

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parte, mas o seu advogado, pois este, como conhecedor das leis e da justiça, tinha o dever de respeitá-la e obedecê-la.

Foi uma medida que, em sua essência, visou a acabar com a argumentação: os advogados, cuja principal arma na alegação em favor dos seus constituintes é justamente argumentar, dela ficaram privados, pois, ainda que a lei só proibisse interpretações “dolosamente frívolas”, a comprovação da sua inocência seria extremamente difícil, impedindo-os de questionarem a justiça da interpretação oficial. A própria lei invocou com freqüência o termo justiça, mas, nesse contexto, essa palavra era unívoca, pois o justo era o legal, por derivar da vontade do legislador; superou-se, em certa medida, a idéia do fundamento místico de validade das leis do qual falara Montaigne, para quem as leis não valiam por serem justas, mas somente por serem leis598, alcançando-se um estágio em que justiça e legalidade, entendendo-se esta como atividade inerente ao poder real, eram faces da mesma moeda.

Em meio à centralização e à reafirmação da autoridade real e das funções do rei- legislador, relegar todas as outras fontes do direito trazidas pelas Ordenações ao posto de subsidiárias, confirmando o que já há séculos se dizia e seguindo uma tendência também observada nos demais países europeus599, era a principal medida esperada da Lei da Boa Razão. Falar em confirmação da posição de subsidiariedade pode ser pouco para demonstrar o que se sucedeu com as demais fontes; na verdade, o direito subsidiário passou por drástica redução e por submissão a critérios extremamente rígidos para que pudesse ser aplicado.

O direito romano, a mais problemática fonte subsidiária, não deveria ser aplicado pura e simplesmente, como já se mencionou exaustivamente neste trabalho, pois, se assim fosse, estar-se-ia reconhecendo fonte para cuja elaboração o legislador português não houvera contribuído. O ideal seria a manifestação do soberano, através da Casa da Suplicação, no sentindo de reconhecer a recepção das leis romanas, analisadas individualmente, e não em blocos600; mas a recepção precisava de um paradigma, e este foi a idéia de boa razão, sobre a qual se tratará no próximo tópico. Desta forma, o direito romano só seria válido se estivesse em conformidade com a boa razão, sendo inaplicável caso a confrontasse. Consequentemente, o direito romano não era aplicável por razões formais, como a autoridade da qual emanara ou

598 “Or les loix se maintiennent em credit, non parce qu’elles sont justes, mais parce qu’elles sont loix. C’est le

fondement mystique de leur authorité: elles n’en ont point d’autre”. MONTAIGNE, Michel. De l’expérience.

Les Essais de Michel, le seigneur de Montaigne. Tomo III. Amsterdam: Compagnie, 1781, p. 495.

599 Cf. MOHNHAUPT, Heinz, op. Cit., p. 213

600 Assim deveria se verificar a recepção do direito romano na Alemanha, de acordo com um dos precursores do

usus modernus, Herman Conring. Cf. WIEACKER, Frank. História do direito privado moderno. Trad. António Manuel Hespanha. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 229.

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pelo simples fato de ser lei, mas por fundamentos materiais, ou seja, pelo seu conteúdo: o mais importante era o que dizia a lei romana.

Outro tema problemático foi o direito canônico, em razão da já comentada força que a Igreja exercia em Portugal. Apesar de as Ordenações já falarem que o direito canônico seria reservado às questões que envolvessem matéria de pecado, o rol de temas relacionados a essas matérias era muito extenso, pois a Igreja participava e controlava diversos segmentos da vida privada e social dos portugueses. Nesse aspecto, o parágrafo doze da Lei da Boa Razão foi firme ao dizer que os juízos eclesiásticos só poderiam cuidar de matéria de pecado e aplicar as penas referentes à sua jurisdição, de cunho espiritual601; caso um ato violasse matéria espiritual e temporal, haveria responsabilidade nas duas esferas602, pois ao poder estatal caberia aplicar, com exclusividade, as penas previstas nas leis civis. Portanto, dos pecados cuidava a Igreja, aplicando penas espirituais, mas por delitos só o Estado poderia sancionar, aplicando as penas civis.

A estratégia do legislador foi inteligente; ao mesmo tempo em que reafirmou a autoridade eclesiástica, dando-lhe exclusividade para cuidar dos seus temas603, sem interferência estatal, tomou para si a tarefa de tratar das ações consideradas delituosas, ainda que um mesmo ato atingisse as leis seculares e religiosas, pois, pela incomunicabilidade dessas esferas, seu legítimo guardião zelaria por cada uma delas. Assim, garantiu que, caso fosse de interesse do Estado punir algum pecador, o fato de este responder perante a jurisdição espiritual não seria um empecilho.

Os costumes, fonte importante desde a Alta Idade Média, tiveram o seu âmbito de aplicação bastante reduzido. Isso porque, mesmo sendo mantidos no direito subsidiário, foram submetidos ao preenchimento de três exigências: a conformidade com a boa razão, a compatibilidade com as leis pátrias e a comprovação de que sua antiguidade, exigida por lei, remontasse a, no mínimo, cem anos604. Essas imposições do parágrafo catorze praticamente fulminaram a aplicabilidade dos costumes, pois, ainda que os dois primeiros requisitos não

601 Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o I.

Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo, 1801, p. 106v.

602 Mello Freire tratou dos delitos eclesiásticos, que deveriam ser punidos nas duas esferas, tanto a religiosa

quanto a civil, por não serem “menos funestos para a Igreja que para a Nação”. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Instituições de direito criminal português. Trad. Miguel Pinto de Meneses. Boletim do

Ministério da Justiça 155/156 (1966), p. 84.

603 “Devemos chamar delitos eclesiásticos apenas àqueles malefícios que se cometem contra a Religião pública e

o bem da Igreja. Por direito próprio, pode a Igreja punir estes delitos e pecados com a privação dos bens e direitos de que aliás os fiéis estão providos enquanto membros da Igreja cristã”. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos, op. cit., p. 85.

604 Cf. Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o

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fossem de tão difícil preenchimento, a comprovação de que um uso já era centenário só aconteceria em situações raras605.

Por fim, outra fonte subsidiária reformulada foi a doutrina. Ao contrário das demais, a doutrina, representada nas Ordenações pelas menções às obras de Bártolo e de Acúrsio, foi expurgada do rol de fontes do direito606 pelo parágrafo treze, não mais podendo as obras dos dois autores “ser allegadas em juízo, nem seguidas na practica dos Julgadores” 607. E os fundamentos desse rompimento radical foram o fortalecimento do legislador pátrio, a necessidade de combater a problemática opinio communis e, segundo a própria lei, o desconhecimento desses autores da história romana, de filologia e dos fundamentos do direito natural, tese que será reforçada três anos depois, nos Estatutos da Universidade. Bártolo e Acúrsio, tão utilizados anteriormente, eram os símbolos do atraso do direito português. Quanto à doutrina nacional, apesar de não haver menção na Lei, parece terem sido a ela aplicadas as mesmas proibições, em que pese não ter existido por parte do legislador pombalino uma tendência à inibição da reflexão pelos juristas. Os doutrinadores poderiam e, em alguns casos, deveriam, publicar livros sobre o direito pátrio, mas as suas opiniões não eram mais consideradas como fonte do direito.

Um último assunto que deve ser tratado neste tópico diz respeito à interpretação. A Lei da Boa Razão, dentre as suas muitas funções, cuidou das interpretações consideradas adequadas, fortalecendo as interpretações autênticas proferidas pela Casa da Suplicação através dos seus assentos. Contudo, a interpretação autêntica não foi a única a ser objeto de considerações pela lei em análise.

O texto do parágrafo dez afirma que as leis pátrias deveriam ser interpretadas por elas mesmas, sem interferência do direito romano, salvo se este fosse conforme a boa razão608. José Homem Correia Telles mencionou alguns preceitos interpretativos romanos que serviriam à interpretação do direito pátrio609, mas reforça a necessidade de este ser interpretado sem interferência das leis imperiais. Proibiram-se as interpretações restritivas e ampliativas da lei pátria por preceitos interpretativos romanos, já que há leis nacionais

605 Ainda assim, tal medida mereceu os aplausos de José Homem Correia Telles, que argumentou em seu favor a

indeterminação que cercava o tema antes da Lei da Boa Razão. Op. cit., p. 88.

606 O fato de ter deixado de ser fonte do direito não significa que a interpretação doutrinária passou a ser

proibida. Cf. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Instituições de direito civil português. Trad. Miguel Pinto de Meneses. Boletim do Ministério da Justiça 161 (dez. 1966), p. 102.

607 Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o I.

Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo, 1801, p. 107.

608 Collecçaõ das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado delrey fidelissimo D. José o I.

Tomo 3 (Jul. 1767/Dez. 1772). Lisboa: António Rodrigues Galhardo, 1801, p. 105v-106.

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fundadas unicamente em razões internas ou cuja pretensão foi afastar expressamente as determinações do direito romano. Caso este fosse utilizado na interpretação das leis pátrias nessas circunstâncias, afastar-se-ia do verdadeiro espírito da lei nacional.

Contudo, o parágrafo onze faz importante ressalva sobre as interpretações ampliativas e restritivas, permitidas desde que amparadas pelo espírito das leis610, que, nas palavras de José Homem Correia Telles, seria o “fim, que ella [a lei] teve em vista”611. Através da interpretação lógica, para a qual chamou atenção Mello Freire612, alcançar-se-iam as razões da lei e, a partir delas, seria verificado se o texto legal queria dizer mais ou menos do que estava escrito. Desta forma, a lei seria interpretada de forma mais ampla ou mais restritiva, e com amparo legal.

Esse exercício de descoberta da razão da lei, do seu espírito ou do seu fim se ligava profundamente à idéia de boa razão. No caminho indicado por José Homem Correia Telles para se alcançar esse objetivo, encontram-se regras que mandam averiguar os elementos da lei