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5 IDEOLOGIAS RACIAIS E DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL: O

5.2 A ideologia da democracia racial: efeitos políticos e cognitivos

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O mito da democracia racial brasileira tem sido muito estudado ao longo das últimas décadas, partindo-se “em geral dos escritos de Gilberto Freyre, a quem se atribui uma espécie de autoria intelectual desse mito” (AZEVEDO, 1996, p. 152-153). Entretanto, muitos anos antes que Casa grande & senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936) fossem publicados e apontassem a miscigenação como fator explicativo da suposta tolerância e harmonia racial brasileira, a imagem do Brasil como um suposto “paraíso racial” – sem conflitos raciais, sem preconceitos raciais e sem barreiras de cor que impedissem a ascensão social dos negros e mulatos – já estava disseminada em meados do século XIX, principalmente nos Estados Unidos e na Europa.

Nas primeiras décadas do século XIX, em resposta à onda abolicionista empreendida pela Inglaterra, a elite luso-brasileira desenvolveu uma campanha sistemática, tanto em casa como no exterior, para defender e inocentar a escravidão e o comércio de escravos no Brasil. Começaram a construir representações favoráveis da escravidão brasileira para o consumo externo. No geral, sustentaram que a escravidão no Brasil era branda, suave, humana e mais suportável comparativamente a outros países e, além disso, os senhores eram benéficos para seus escravos. Essa imagem de “escravidão benigna” foi rapidamente apropriada e instrumentalizada pelas autoridades políticas e pelos construtores do Estado nacional brasileiro. Assim, essas ideias circulavam no cenário internacional, na imprensa e na literatura. Enquanto os Estados Unidos se tornou o exemplo a não ser seguido, a escravidão existente no Brasil se tornou um modelo65. (GUIMARÃES, 2001; HANCHARD, 1994;

MARQUESE, 2006, p. 122). Portanto, a imagem dos Estados Unidos como um “inferno racial” e do Brasil como um “paraíso racial”, não é uma invenção do século XX, embora neste século ela tenha sido sofisticada e ajustada em um novo contexto, com uma nova roupagem (PARRON, 2009, p. 262).

Na primeira metade do século XX, sob os efeitos da Primeira Guerra Mundial, da revolução socialista na URSS e da emergência do nazi-facismo na Europa, as nações ocidentais reorientavam suas identidades nacionais (HOBSBAWM, 1992, p. 131). No Brasil, ao final

65 Frederick Douglas, um ex-escravo e abolicionista norte-americano, na cidade de New York, em 1858,

declarou: “Mesmo um país católico como o Brasil – um país que nós, em nosso orgulho, estigmatizamos como semibárbaro – não trata as suas pessoas de cor, livre ou escravos, do modo injusto, bárbaro e escandaloso como nós as tratamos”. Em 1867, logo após a abolição da escravidão nos Estados Unidos, durante uma Conferência em Paris, o abolicionista francês M. Quentin, afirmou que a transição para o trabalho livre no Brasil seria facilitada, pelo fato de não haver preconceito de raça neste país, tal como havia nos Estados Unidos. Afirmou que no Brasil todos os homens livres eram tratados como iguais, não somente na lei, mas também na vida cotidiana (AZEVEDO, 1996, p. 155-156).

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dos anos 1920, a Primeira República ia se esgotando. O seu legado era ambíguo: de um lado ficava a lembrança do momento do boom da urbanização, da industrialização, da entrada de imigrantes, da adoção de novas instituições políticas e da europeização dos costumes; de outro, as marcas da repressão, das fraudes políticas, da enorme distância entre brancos e pretos, da aplicação de medidas racistas e da expulsão da pobreza para as laterais das cidades. Neste país, também parecia ter chegado a hora de buscar novos modelos de identidade nacional, não mais construídos nos pressupostos racistas da tese do branqueamento, mas na riqueza cultural e social do Brasil. Foi apenas a partir de 1930, principalmente com o Estado Novo (1937-1945) e a Segunda República (1945-1964), que o Brasil ganhou definitivamente um “povo”, ou seja, inventou para si uma tradição e uma origem (SCHWARCZ & STARLING, 2015, p.349-350; GUIMARÃES, 2001, p. 123).

Para isso contribuiu a obra de Gilberto Freyre. Os escritos de Freyre trouxeram uma grande contribuição para criar uma nova imagem sobre a nação e o Estado brasileiro. Freyre reforçou a imagem de que no Brasil havia predominado um sistema escravocrata menos rígido comparativamente ao dos Estados Unidos66 e que, no Brasil, embora existisse o preconceito

racial em algum grau, esse não era a causa da distância entre os grupos sociais, mas sim a consciência de classe. Além disso, reiterou a flexibilidade da mobilidade social existente no Brasil, onde nunca existiram rígidas gradações sociais, de modo que, neste país é possível para pessoa de talento, por mais inferior que fosse sua origem social, ascender às mais altas posições no sistema aristocrático e monárquico brasileiro (2001[1947], p. 128-132; 171). Esse autor descreveu o Brasil como produto do amalgamento de diferentes raças/culturas, ou seja, como uma sociedade multirracial, miscigenada e com a originalidade de não carregar as marcas da segregação. Freyre fez apologia ao povo brasileiro, à cultura brasileira, à mestiçagem e ao caráter democrático e flexível das relações raciais existentes no Brasil (FREYRE, 1933, 1936, 2001). Esse diagnóstico positivo e otimista do Brasil levou Freyre a

66 Vale registrar que Araujo (1994, p. 48-57), numa importante pesquisa sobre a obra Casa-grande e senzala,

demonstra, com base nesta obra, como pode ser equivocada atribuir à Freyre uma visão da escravidão no Brasil como um paraíso racial. Para esse autor, é o próprio Freyre, nesta obra, que demonstra como a escravidão foi também um inferno para os negros. Com base nos argumentos fortes apresentados por Araújo, é possível suspeitar de uma mudança de ênfase do próprio Freyre a partir de Casa-grande e Senzala, ou também de ênfase de seus intérpretes em alguns aspectos de sua obra em detrimento de outros. Contudo, o tema exige pesquisas mais aprofundadas que não sejam neste espaço.

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afirmar a existência no Brasil tanto de uma “democracia social e étnica” quanto de uma “igualdade política”67 (FREYRE, 2001, p. 128-129; 171).

No contexto internacional, ao longo dos anos 1930 e 1940, as representações construídas em torno do Brasil assumiam importância cada vez maior em um mundo que estava preocupado com os efeitos do racismo, aprofundando cada vez mais os conflitos nacionais e internacionais. Em meados dos anos 1940, com o fim da Segunda Guerra Mundial, ganhava força a ideia de que o padrão das relações interétnicas do Brasil era específico quando comparado aos Estados Unidos e à Europa. O Brasil passou a ser considerado como um modelo de sociedade que havia superado os conflitos entre diferentes grupos raciais e, por isso, se tornava um alento para um mundo atormentado pela guerra. Para Freyre (2001, p. 229) a política étnica e socialmente democrática do Brasil fazia deste país um modelo ideal para os europeus “cansados de preconceitos de raça”. Freyre (2001, p. 198-199), nesta passagem abaixo, afirma a democracia étnica no Brasil, propõe esse país como um modelo de relações inter-étnicas para o mundo:

(...) com todas as suas imperfeições, de base econômica e de formas políticas de convivência democrática, o Brasil impõe-se hoje como uma comunidade cuja experiência social pode servir de exemplo ou estímulo a outras comunidades modernas. Decerto não existe nenhuma outra comunidade moderna da complexidade étnica da brasileira onde os problemas das relações sociais entre os homens de origens étnicas diversas estejam recebendo solução mais democrática ou mais cristã que na América Portuguesa. E a experiência brasileira não indica que miscigenação conduza à degeneração.

Araújo (1994, p. 28-31) em profícua interpretação da obra de Freyre, dá a medida da importância e do ineditismo da pesquisa desse autor. Para Araújo, Freyre elaborou e apresentou uma nova solução para o “problema racial” que, na época, superou as

67Conforme já observado por Guimarães (2001; 2002), a origem do termo “democracia racial” não deve ser

atribuída à Gilberto Freyre e não se encontra esse termo em nenhuma de suas obras mais importantes. O termo somente aparece na literatura nos anos 1950, em outras fontes, mas não em Freyre. O próprio Freyre empregou o termo “democracia racial” somente em 1962. Antes disso, principalmente nos anos 1940, utilizou a termo “democracia étnica” para tratar da realidade brasileira (GUIMARÃEIS, 2001, p. 153). Assim, embora seja o mais brilhante defensor da “democracia racial”, Freyre não pode ser responsabilizado integralmente nem pela ideia nem pelo seu rótulo. Porém, Freyre pode ser considerado como àquele que mais contribuiu para a construção das bases teóricas que sustentaram a ideia da existência de uma democracia racial no Brasil. Nos termos de Guimarães (2001, p. 152;153), Freyre teria sido “grandemente responsável pela legitimação científica da afirmação da inexistência de preconceitos e discriminações raciais no Brasil”. Sobre a cunhagem e o

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interpretações dominantes caracterizadas por um forte racismo – tal como a ideologia do branqueamento – e baseadas na visão de mundo da supremacia branca. Tais interpretações sustentavam a inviabilidade de um país mestiço, o qual caminharia para a esterilidade, senão biológica, certamente cultural, comprometendo qualquer esforço de civilização. Freyre rompe com o relacionamento negativo com a herança histórica do país. Ao distinguir raça de cultura, para Araújo, Freyre valoriza em pé de igualdade as contribuições do negro, do índio e do português para construir uma nova versão da identidade nacional. Freyre se consagrou como aquele que recuperou positivamente as contribuições oferecidas pelas diversas culturas para a formação da nacionalidade brasileira. Este autor elaborou um interpretação que deu alguma atenção e reconhecimento à hibrida e singular articulação de culturas estabelecida no Brasil.

Para Schwarz e Starling (2015, p. 341-342), a obra de Freyre, ao tratar da temática da experiência e da convivência entre as “três raças”, oferecia um novo modelo para a sociedade multirracial brasileira, invertendo o antigo pessimismo e introduzindo os estudos culturalistas como alternativa de análise. O “cadinho das raças” aparecia como uma versão otimista do mito das três raças, mais evidente aqui do que em qualquer outro lugar. Era assim que o cruzamento de raças passava a singularizar a nação nesse processo que leva a miscigenação entre diferentes grupos raciais a se transformar em modelo de sociabilidade. Freyre, em muitas partes de sua obra reconhecia as hierarquias raciais e as violências acontecidas durante a escravidão. Mas, a novidade do seu argumento estava em destacar a intimidade do lar, suavizar a vida dura do eito e fazer de tudo material de exaltação: enfim uma “boa escravidão”, como se essa não fosse uma contradição em seus termos.

As noções acerca da democracia racial foram encampadas pelo Estado e ofereceram a definição oficial da situação (HASENBALG, 1996, p. 237). Legitimado pela ideologia dominante de Freyre, o Estado Novo, a partir dos anos 1930, propagou a ideologia da “nacionalidade morena”, do “povo mestiço”, que sustentava o populismo nacionalista de Vargas, considerado o “pai dos pobres” (SALES JR., 2006, p. 230). Assim, entre os anos 1930 e 1950, a ideia posta por Freyre de uma democracia étnica no Brasil foi se consolidando e se transformando rapidamente no que viria a ser chamado de “democracia racial”68. A força

68 É importante ressaltar que enquanto a ideologia da democracia racial ganhava força aqui, ela também recebia

forças vindas de fora. A influência obra de Tannenbaum, O escravo e o cidadão, de 1947, sustentava que os latino-americanos tinham escapado do pior do racismo norte-americano. Tannenbaum argumentava que as instituições ibéricas (a coroa e a igreja) intervieram para impedir a desumanização do escravo prevalecente nas colônias inglesas (SKIDMORE, 1992, p. 51; WADE, 2008, p. 181-182).

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da ideia era tamanha que, mesmo os movimentos sociais negros que surgiram nos anos 1930 (a Frente Negra Brasileira) e 1950 (o Teatro Experimental do Negro), embora tenham reconhecido a exclusão do negro da ordem social e econômica, tiveram dificuldades em associar esta realidade à existência do racismo no Brasil. E, em meados dos anos 1950, a democracia racial brasileira era cada vez mais forte em referência direta aos conflitos raciais que “começavam a rasgar” o racismo legal nos Estados Unidos e à descrença pela qual passavam as teorias racistas após a Segunda Guerra Mundial (GUIMARÃES, 2001, p. 151).

Expostos os processos de origem e o que foram as ideologias raciais dominantes no Brasil – ideologia do branqueamento e da ideologia da democracia racial – agora, faz-se necessário concentrar esforços sobre os efeitos dessas ideologias no conjunto da sociedade. De modo particular busca-se enfatizar os efeitos políticos e cognitivos dessas ideologias sobre as “relações raciais no Brasil”, ao longo das cinco décadas seguintes, até os anos 1980. Ressalta- se que o movimento de desmistificação do “mito da democracia racial”, ocorrido entre os anos 1950 e 1970, assim como o papel desempenhado pelos movimentos sociais negros para tal serão assuntos para o próximo capítulo.

5.3 Os efeitos políticos e cognitivos das ideologias do branqueamento e da democracia

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