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5 IDEOLOGIAS RACIAIS E DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL: O

5.1 A ideologia do branqueamento e a política imigratória no contexto da

A partir da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, a Constituição de 1891 estabeleceu uma série de mudanças para bem marcar a ruptura com o regime anterior. No campo político-institucional, ela definiu as bases institucionais do novo regime: presidencialismo, federalismo e sistema bicameral. A proposta federalista, por sua vez, organizava o novo regime em bases descentralizadas, dando aos estados maior autonomia e controle fiscal, e jogava por terra a crença no centralismo monárquico como agente de coesão

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nacional. Este modelo de federalismo coincidiu com os interesses das oligarquias do café do Sudeste que logo iriam controlar o poder político e econômico durante a Primeira República. A agenda republicana substituiu o Poder Moderador – a chave de organização política do Império – pelo principio da divisão e do equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Instituiu-se o sufrágio universal em lugar do sistema censitário até então vigente. Foram considerados eleitores os brasileiros adultos, do sexo masculino, que soubessem ler e escrever (SCHWARCZ & STARLING, 2015, p. 319-320; FAUSTO, 2006, p. 42; COSTA, 1999, p.397;430).

À sombra deste “sistema”, afirma Fausto (2006, p. 56), floresceu o “coronelismo”. Para Victor Nunes Leal (2012, p. 44-45) o coronelismo, enquanto base da política dos estados, tratava-se, sobretudo, de um compromisso, uma troca de favores entre o poder público e os chefes locais, notadamente senhores de terras. Os coronéis, com a passagem do Império para a República, não perderam seu poder político nos municípios onde viviam. Eles se tornaram parte fundamental da República oligárquica. Os governadores dos estados necessitavam de votos. Os coronéis lhes garantiam tais votos conseguindo-os através do voto de cabresto, da fraude eleitoral e outros meios de impedir ameaças da oposição política. Em troca, o governo garantia o poder do coronel sobre seus dependentes e rivais, especialmente através da concessão dos cargos públicos. E desse modo se estabilizava a República brasileira no início do século XX, na base de muita troca, empréstimo, favoritismos, negociações e repressão. Visto desse ângulo, e como diziam os jornais satíricos de época, o país não passava de uma grande fazenda (SCHWARCZ & STARLING, 2015, p. 323; FAUSTO 2006; LEAL, 2012).

Se inicialmente o povo teria assistido “bestializado” a proclamação da República, tal como afirmou Aristides Lobo (1889), logo, pelo menos parte deste povo iria expressar seu descontentamento em diversos movimentos de protesto. As contradições presentes no movimento que deu origem à República vieram à tona na manifestação de uma série de conflitos. As forças que momentaneamente se tinham unido em torno das ideias republicanas entraram em choque. Os fazendeiros do café, as forças militares, os representantes das profissões liberais, nem sempre tinham as mesmas aspirações e interesses. As divergências que os dividiam repercutiam em conflitos no Parlamento e eclodiam em movimentos sediciosos que polarizavam momentaneamente todos os descontentamentos (COSTA, 1999, p.396; FAUSTO, 2006, p. 17-19).

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As reações de insatisfação com os rumos da República se espalharam pelos campos e pelas cidades. Em diversas regiões do país estouraram movimentos sociais que expressavam as mais diversas questões sociais: a questão agrária relacionada à posse da terra, a questão de saúde pública, de moradia, de emprego, pobreza e desigualdades sociais e raciais. Logo, em 1896, começou o conflito armado de maior visibilidade nos momentos iniciais da República: a Revolta de Canudos (1896-1897). Além desta, vale destacar a Revolta da Vacina (1904), a Revolta da Chibata (1910), a Guerra do Contestado (1912-1916), a Insurreição de Juazeiro (1914), e as diversas greves operárias ocorridas nas três primeiras décadas do século. De modo geral, tais movimentos ilustravam a desatenção da república com grande contingente populacional.

Ainda assim, o regime republicano sobreviveu. Apressadamente, as oligarquias cafeicultoras afirmaram-se no poder. Os primeiros governos se preocuparam em executar uma política de pacificação do país e em garantir os interesses da elite cafeicultora a qual deu origem e sustentou a existência de uma República oligárquica no Brasil (SCHWARCZ & STARLING, 2015, p. 320-1; FAUSTO, 2006). Em 1893, quando a República brasileira ainda dava seus primeiros passos, Romero (1893, p. 56-57) apontou o “sistemático desdém pelo povo”, e a extravagante divisão da sociedade em dois grupos: “os privilegiados” de um lado, e os considerados “ineptos”, “viciados”, “incapazes de qualquer ação política”, do outro.

E os negros, como ficaram após a abolição? Os libertos se juntaram à grande massa de negros e mulatos já em condição de liberdade, mas, ocupando os estratos mais baixos da sociedade e sob o controle do sistema de patronagem das elites, seja no campo ou nas cidades. Não houve qualquer interesse das elites políticas e econômicas na introdução de medidas que representassem uma mudança significativa na condição de vida dessa população e o ex- escravo foi abandonado à sua própria sorte. Sua dificuldade de ajustamento às novas condições foi encarada como prova de sua incapacidade e de sua inferioridade racial (COSTA, 1999, p.340-1; DOMINGUES, 2004, p. 27; FERNANDES, 1965). Na visão de Schwarcz e Starling (2015, p. 342), “a impressão era de que seria preciso apagar o passado negro” do Brasil.

O imobilismo do Estado em relação ao negro no pós-abolição é melhor compreendido pelas imagens e ideias dominantes sobre a “originalidade” das relações raciais entre brancos e negros no Brasil. De longa data, herdava-se a imagem idílica da escravidão brasileira, tomada como humana, branda e suave. Além desta imagem, como afirma Hasenbalg (1996, p. 235),

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“desde os anos finais do Império e início da República já se falava que o Brasil tinha escapado do problema do preconceito racial”. Essa ideia surgia, sobretudo, da comparação implícita ou explícita com a situação racial observada nos Estados Unidos naquela época. Assim, essa interpretação certamente contribuiu para que não houvesse políticas afirmativas de integração do negro na sociedade.

Contudo, a população negra não deixou de ser um fator de preocupação no processo político em torno da construção do Estado republicano. A formação deste estado como Estado Nacional passou necessariamente pela elaboração de um conjunto de representações acerca de uma identidade nacional. As imagens da nação fabricadas ao longo das primeiras décadas da República retomaram a preocupação com a unidade nacional, tomando-a, todavia, como problema relativo à produção de um povo brasileiro concebido nos termos de uma unidade racial a ser criada (RAMOS, 1994, p. 18-19). Daí, a questão racial esteve no centro dos debates e das políticas orientadas para a formação do estado nacional. Esses debates e as medidas políticas posteriormente tomadas foram informadas, em grande parte, pelas ideias raciais dominantes na época.

Não cabe aqui discutir a origem e as implicações mais amplas do conceito de raça e de racismo ao longo da história. Deve-se apenas pontuar que, a partir da segunda metade do século XIX, as teorias raciais, fundamentadas na Antropologia Física e no darwinismo social, proliferavam e conquistavam ideias e mentes na cultura ocidental61. Guardadas as diferenças

de interpretação, todas essas teorias tinham em comum o dogma de que a diversidade humana, anatômica ou cultural, era produzida pela desigualdade de raças; e a partir deste dogma, produziram-se hierarquias raciais que invariavelmente localizavam os europeus como povos superiores e civilizados e outros povos, inclusive negros e índios, como povos inferiores e atrasados. Além deste pressuposto básico, essas doutrinas geralmente condenavam a miscigenação entre as raças desiguais. Também recomendavam a eugenia – seleção dos melhores indivíduos para continuarem o progresso humano – a qual deveria ser alcançada, muitas vezes, através de políticas públicas que implicavam limpeza étnica. Somente a partir das primeiras décadas do século XX essas teorias começaram a perder legitimidade e, cada vez mais, foram rotuladas de “racistas” (DOMINGUES, 2004;

61 Dentre os principais proponentes desta teoria podemos destacar: Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), um

dos mais importantes teóricos do racismo do século XIX; Georges Vacher de Lapouge (1854-1936); Louis Agassiz (1807-1873); Francis Galton (1822-1911); Gusave Le Bom (1841-1931), dentre outros.

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GUIMARÃES, 1999; 2001; 2005; SKIDMORE, 2012; SCHWARCZ, 1993; HOUFBAUER, 2006).

Nos debates políticos e na produção intelectual do início da República, fortemente influenciados pelo pensamento racial dominante da época, o que se observou foi a preocupação em formar um povo brasileiro, um tipo nacional homogêneo e unificado. Assim, um dos principais elementos debatidos no projeto de nação e de estado nacional para a nova república foi o ideário do branqueamento. E, paralelamente, a política imigratória dos brancos europeus foi concebida como a medida apropriada para alcançar este ideário, ou seja, para resolver o problema racial relativo à formação da identidade do estado brasileiro62

(SEYFERTH, 1996; HOUFBAUER, 2006). Daí, a tese do branqueamento, aceita pela maior parte da elite nacional, foi concebida como uma “solução nacional” para os problemas sociopolíticos após a abolição. Enquanto nos Estados Unidos a solução encontrada foi segregar os negros, os quais foram expulsos da comunidade branca e obrigados a criarem suas próprias instituições, no Brasil, a elite acreditou que se resolveria a questão do negro através do branqueamento (HASENBALG, 1996, p. 236; SKIDMORE, 2012, p. 111-128; HOFBAUER, 2006).

Mesmo um abolicionista tradicional tal como Joaquim Nabuco (2003[1883], p. 28), havia defendido a política de imigração europeia como um meio de trazer para o Brasil uma corrente de sangue vivaz, enérgico e sadio, “o sangue puro e oxigenado de uma raça livre”. Sylvio Romero (1888, p.7; 66), influente escritor e político brasileiro, recebeu com otimismo as perspectivas de branqueamento do Brasil e previu, num futuro não muito remoto, o desaparecimento dos índios e negros brasileiros, através da miscigenação. Diferente de Romero, mais apegado ao racismo científico, o médico Raimundo Nina Rodrigues (1935; 1938), marco do pensamento racial brasileiro, o qual acreditava na inferioridade biológica, moral e intelectual do negro em relação ao branco, não via com otimismo a questão racial no Brasil. Embora acreditasse na possibilidade da miscigenação das raças, Rodrigues duvidava da possibilidade de um desenvolvimento próspero do país exatamente por causa da grande quantidade de negros entre a população brasileira.

62 Vale frisar as ideias de embranquecer o Brasil e de atrair o imigrante europeu não eram novidades neste país.

Embora tenham tomado maior visibilidade e amplitude com a chegada da república, tais ideias já existiam desde as primeiras décadas do século XIX. Para detalhes, ver Hofbauer (2006, p. 172-180).

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Mas, entre um diagnóstico mais pessimista de Nina Rodrigues e àquele mais otimista de Sylvio Romero, prevaleceu o segundo. Apesar de ambos terem sofrido forte influência do racismo científico do século XIX, a tese do branqueamento reajustou os pressupostos do racismo científico para que ele se adequasse à realidade multirracial brasileira e aos interesses políticos e ideológicos das elites desta nação. Tais pressupostos, ao condenar a miscigenação, punham em xeque a viabilidade do projeto de modernização do país. Isto era inviável para a república emergente. Daí, através da tese do branqueamento, a fim de formular sua própria solução para o “problema do negro” no Brasil, o pensamento racial brasileiro logo descartou dois pressupostos principais do racismo científico: 1) questionava-se o caráter inato das diferenças raciais; 2) não se aceitava que a mistura racial levaria obrigatoriamente à degeneração das raças. Ou seja, houve uma adaptação do racismo científico clássico à situação racial brasileira (SKIDMORE, 2012, p. 126; HASENBALG, 1996, p. 236; ANDREWS, 1998, p. 212).

De acordo com essa tese original do pensamento racial brasileiro, o branqueamento da raça seria alcançado através de um processo seletivo de miscigenação que, dentro de algumas gerações, através de políticas de povoamento e imigração europeia, produziria uma população de fenótipo branco (SEYFERTH, 1996, p. 49; HASENBALG, 1996, p. 235). É importante ressaltar que essa suposta originalidade do pensamento racial brasileiro, expressa na ideologia do branqueamento, vinha acompanhada, no mundo empírico, de uma forma peculiar de classificação racial dos indivíduos e grupos sociais, denominado contínuo de cor. Se nos Estados Unidos a regra da gota de sangue tomou o aspecto biológico como elemento definidor dos grupos raciais63, no Brasil, foi o aspecto fenótipo um dos principais referentes

para se definir o pertencimento de um indivíduo ao seu grupo racial. Isto significa que, neste país, os caracteres físicos, sobretudo a tonalidade da cor da pele, dentro de um contínuo que vai da pele branca à pela negra, são os principais definidores da condição racial do indivíduo e dos grupos sociais.

Ao analisar este sistema complexo de categorização racial, deve-se lembrar que, de acordo com os padrões valorativos estabelecidos pelas teorias raciais dominantes, neste contínuo de cor quanto mais branco melhor e quanto mais negro pior. Desta forma, a gradação de uma

63 Importante deixar claro que esta caracterização das relações raciais nos Estados Unidos refere-se a um período

histórico, especificamente durante a vigência da segregação racial. Estudos têm demonstrado que no período colonial esta linha não foi tão rígida e após os anos 1960 e 1970, tem havido certo afrouxamento da mesma. Sobre o tema ver Skidmore (1992), Hofbauer (2006), e Telles (1996).

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linha de cor se correlaciona com um “complexo sistema de nomenclatura racial – onde as diferenças mínimas no tom da pele tornaram-se dados sociais significativos” (HASENBALG, 2005, p. 244). A existência deste contínuo de cor tornou o processo social e político referente às relações raciais no Brasil algo mais complicado do que o sistema vigente nos Estados Unidos, rico em detalhes, e com implicações profundas na trajetória da questão racial neste país. Somente é possível compreender a ideologia do branqueamento levando em consideração a existência deste continuo de cor como um elemento essencial das relações raciais no Brasil. Tal como concluiu Carl Degler (1976), a existência de um sistema bi-racial nos Estados Unidos enquadrou o mestiço na condição de negro e, diferentemente, no sistema multirracial do Brasil, mestiço é visto como uma “válvula de escape” da condição de negro e como um meio de ascensão social, ou melhor, de branqueamento.

No campo das decisões políticas, paralelamente ao ideário do branqueamento e como uma forma de efetivá-lo, ocorreu um conjunto de políticas voltadas para a imigração em massa do trabalhador branco europeu. Além de garantir mão de obra para a lavoura, pois o trabalhador nacional foi preterido em relação ao branco europeu, os proponentes desta política não deixavam de enfatizar a importância das mesmas para o progresso da nação, um progresso que somente ocorreria com o efetivo branqueamento biológico e moral da nação. Para Hofbauer (2006, p. 26), “a ideologia foi um elemento fundamental para justificar e levar a cabo a política imigracionista”. Seguiu-se que o ideário do branqueamento e as políticas imigratórias caminharam pari passu, e esses dois elementos marcaram as quatro décadas da Primeira República no Brasil.

Ao implementar a política imigratória, não houve qualquer preocupação com o destino dos negros, nem mesmo com o destino dos demais trabalhadores nacionais. Conforme Seyferth (1996, p. 46-47), era como se os descendentes de africanos estivessem simplesmente destinados ao desaparecimento no contexto de uma civilização não escravista. “As chamadas ‘raças inferiores’ foram deixadas à margem de todos os projetos oficiais ou particulares envolvendo imigrantes: ‘agricultura moderna’ era coisa para civilizados brancos”. E, na realidade, o ideário parecia estar se concretizando. O quadro abaixo demonstra o aumento nas taxas de imigração europeia a partir dos anos 1850. Observa-se que a década de 1890 concentrou o maior volume de entradas de estrangeiros no Brasil. A partir dos anos 1880 houve um aumento significativo dos investimentos públicos e privados na política de imigração tendo em vista a certeza inarredável da abolição da escravatura.

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Tabela 1 – Entrada de imigrantes europeus no Brasil (1851-1900)

Período Entrada de europeus

1851-1860 (proibição do tráfico) 121.747 18611870 (Lei do Ventre Livre) 97.571 1871-1880 (movimento abolicionista) 219.128

1881-1890 (abolição total) 525.086

1891-1900(apogeu da imigração europeia) 1.129.315

Total (1851-1900) 2.092.847

Fonte: Clóvis Moura, Sociologia do negro brasileiro, 1988, p.83

Evidentemente, o ideário de branqueamento estava carregado de pressupostos racistas. Para Peter Wade (1993; p. 19), mais que ideologia, tratava-se de um conjunto de práticas sociais racistas, as quais implicavam numa forte discriminação e, porque não, na busca de aniquilação dos índios e negros do país. De fato, as palavras de Wade encontram ressonância no Decreto 528, de 28 de junho de 1890, o qual abria o Brasil para todas as pessoas válidas e capazes para o trabalho, desde que não estivessem sob processo criminal em seus países de origem, “com exceção de africanos e asiáticos”. É importante lembrar, também, que nessa mesma época foram efetivados os primeiros projetos de “retorno a África, ou seja, planos de envio da população negra de volta a seus continentes de origem” (SEYFERTH, 1992, 1996; MOURA, 1988, p. 80; SKIDMORE, 2012; SCHWARCZ, 1993, p. 184-186).

Em 1911, João Baptista Lacerda, antropólogo, um dos mais importantes protagonistas do ideário do branqueamento brasileiro, na função de Diretor do Museu Nacional, foi nomeado pelo presidente da República para representar oficialmente o Brasil no Congresso Universal das Raças, realizado em Londres. Neste Congresso, Lacerda (1911, p. 377-382) fez um famoso pronunciamento no qual afirmou que o Brasil estava a caminho do branqueamento e que a “extinção da raça negra” levaria cerca de um século. Em tom otimista, Lacerda frisou que após a abolição, o Brasil, diferente dos Estados Unidos, estava resolvendo o problema das raças sem esforço e sem conflitos. Essa “solução pacífica” ocorria mediante a imigração contínua de brancos europeus para o Brasil, sendo essa a grande esperança da construção de “um futuro brilhante” reservado para o país. Com esse discurso, num evento internacional, Lacerda não apenas defendeu oficialmente a ideologia do branqueamento, mas também assumiu o empenho do governo nacional em branquear o Brasil.

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Nas primeiras décadas do século XX, embora existisse um enorme consenso entre as elites brasileiras em torno do projeto de branqueamento como solução para os problemas raciais e sociais do Brasil, havia vozes dissonantes. Por exemplo, Manoel Bomfim (1868-1932) e o Movimento Sanitarista dos anos 1910. Ambos denunciaram que o problema real do Brasil não era os negros, mas sim a exclusão e a discriminação racial que os deixavam à margem da sociedade. Bomfim (2008, [1905], p. 4-80), atribuiu os problemas existentes na sociedade brasileira ao fenômeno do “parasitismo social”. Por parasitismo, entende-se a prática de colonização na qual os parasitas (senhores de escravos) viveram à custa do parasitado (negros e índios), e isso era a principal causa da degeneração social. Para esse autor (ibid, p. 81;125), as oligarquias viciadas, ao introduzir o trabalho livre, não instruíram o trabalhador e, como resposta para a questão do trabalho, importaram braços para substituir os antigos escravos. Sobre o fazendeiro, afirma Bomfim: “ontem parasita do escravo, hoje parasita do Estado”. O movimento sanitarista da segunda década do século XX, ao invés de condenar o brasileiro pela inferioridade racial, pela miscigenação, confirmou que o brasileiro era indolente, preguiçoso e improdutivo, não pela raça, mas porque estava doente e abandonado pelas elites políticas. Redimir o Brasil seria saneá-lo, higienizá-lo, uma tarefa obrigatória dos governos (LIMA & HOCHMAN, 1996, p. 23). O problema brasileiro deixa de ser raça e passa a ser a doença. “O Brasil ainda é um imenso hospital”, disse o médico Miguel Pereira, em 1916, para ilustrar a situação da República brasileira64 (MIRANDA DE SÁ, 2009). As “patologias do

Brasil” pareciam atingir a todos, mas os grandes alvos – além dos sertanejos, caipiras, e populações do interior – foram os ex-escravos, os habitantes pobres das cidades, os moradores dos cortiços e favelas (SCHWARCZ & STARLING, 2015, p. 327-30). A ampla campanha pelo saneamento do Brasil teve impactos políticos e cognitivos de longo alcance, para além dos anos 1920, tanto no campo das políticas públicas de saúde e da educação quanto no processo político e ideológico de reconstrução da identidade nacional deste país. Contudo, apesar do avanço na interpretação, vale registrar que o diagnóstico se limitou a detectar os problemas sociais e não um “problema racial” no Brasil.

64 Miguel Pereira, em 10 de outubro de 1916, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, numa ocasião

especial, proferiu um discurso no qual expressou esta frase. De acordo com Miranda de Sá (2009) esse discurso teve repercussão persistente e decisiva influência em políticas públicas de saúde na primeira metade do século XX. Desde o último quartel do século XIX o tema da saúde vinha frequentando a agenda intelectual e política brasileira, e gerava preocupação. Viajantes, jornalistas, médicos, cientistas sociais e outros andavam atentos à forte incidência de doenças tanto nas cidades quanto no meio rural. No governo republicano, sobretudo na primeira década dos 1900, o país sofria uma série de epidemias: cólera, febre amarela, varíola, peste bubônica, dentre outras. Nas estatísticas médicas, o numero de doenças contagiosas era apavorante (SCHWARCZ & STARLING, 2015, p. 327-330)

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A Primeira Guerra Mundial e seus efeitos trouxeram mudanças importantes para o Brasil, no campo sociocultural, econômico e político. Entre 1889 e 1920, o número de estabelecimentos industriais existente passou de pouco mais de seiscentes para cerca de treze mil. A população

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