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5 IDEOLOGIAS RACIAIS E DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL: O

5.3 Os efeitos políticos e cognitivos das ideologias do branqueamento e da

As ideologias do branqueamento e da democracia racial, separadas e conjuntamente, e as decisões ou não-decisões políticas que as acompanharam, tiveram efeitos políticos e cognitivos relevantes na trajetória da questão racial no Brasil. De modo especial, os principais efeitos foram:

1) A negação das diferenças raciais e do racismo no Brasil. 2) A negação e/ou fragmentação da identidade racial no país.

3) Obstrução da mobilização e a consequente despolitização da questão racial.

A negação das diferenças e do racismo no Brasil

No Brasil, a dinâmica das relações raciais, as decisões políticas e as bases ideológicas que as sustentaram, no seu conjunto, tenderam a negar as diferenças raciais e também o racismo. Isto ocorreu, de modo especial, a partir do século XIX, quando se criou a imagem de paraíso

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racial para sustentar e manter o sistema escravista no país. Daí começou a consolidar a imagem de um país miscigenado, multirracial, onde as linhas de cor não eram rígidas e o preconceito racial era praticamente inexistente.

Nos Estados Unidos, antes e após a abolição, não houve negação das diferenças raciais tal como aconteceu no Brasil. As diferenças foram afirmadas, institucionalizadas explicitamente em leis e políticas públicas – “códigos negros”, proibições de casamentos inter-raciais e leis segregacionistas que estabelecessem linhas rígidas de cor –, e também justificadas com ideias, todas elas claramente racistas e voltadas para assegurar a escravidão e depois a segregação. No Brasil, pelo contrário, as diferenças raciais foram negadas no âmbito cognitivo e discursivo, ainda que existissem na prática. Além disso, nesse país, não se criou qualquer sistema legal e institucionalizado que expusesse explicitamente as diferenças raciais e o racismo existente neste país.

Além da comparação com os Estados Unidos, a ideologia da democracia racial veio reforçar essa dupla negação: das diferenças e do racismo no Brasil. Sheriff (2001), após pesquisar os discursos cotidianos sobre raça e racismo em uma favela do Rio de Janeiro, concluiu que, ainda recentemente, o mito da democracia racial desempenha um papel fundamental na contenção dos discursos sobre o racismo no Brasil. Sheriff constatou (idem, p. 220-221) que as premissas da democracia racial estão disseminadas na crença comum de que aqui no Brasil “todos são iguais! Pretos e brancos [...]. O sangue é o mesmo”. E, esta crença constitui uma “moral inatacável”, cuja força remete a um “patrimônio comum”, a uma “família comum”, a uma “nação unificada”. De acordo com essa moral o “Racismo é repugnante. Ele é imoral. Ele é, acima de tudo, não-Brasileiro”. Assim, para essa autora a democracia racial opera como um mecanismo efetivo de negação das diferenças e de velamento da realidade do racismo. A crença nessa ideologia, tomada como verdade, oculta a realidade existente no mundo social.

O que se observa é que a ideologia da democracia racial conseguiu fazer com que indivíduos e coletividades não percebessem, ou evitassem perceber, como raça operava na sociedade brasileira. Houve uma resistência em lidar com a diferença, com a ideia de raça, de grupos raciais, e de racismo. Esse quadro foi reforçado pela referência negativa de violência e de racismo explícitos existente nos Estados Unidos. No lugar dessas práticas odiosas, existentes apenas em outros países, no Brasil, predominava a valorosa harmonia racial. Chegou-se a admitir a existência de negros, brancos e índios neste país, mas todos misturados, num só povo, em que as diferenças existentes não são de raça ou de cor, mas sim de classe.

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Assim, o principal efeito cognitivo desse processo político e ideológico foi a cristalização de uma crença explícita voltada para a negação das diferenças raciais e do racismo. A ideologia do branqueamento e a ideologia da democracia racial foram fundamentais nesse processo. Enquanto a primeira o fez a partir de um ideário de homogeneização do país, a segunda afirmou que tais diferenças eram irrelevantes nesta sociedade onde havia se constituído um caldeirão étnico no qual a igualdade havia se sobreposto às diferenças e a harmonia não deixava espaços para o racismo, para os separatismos e para os conflitos raciais.

A negação e a fragmentação da identidade racial

Com o ideário do branqueamento e a existência do contínuo de cor no Brasil, a identidade negra não é algo a ser afirmado, mas algo a ser negado, superado. E, quanto mais “branqueado” um indivíduo se vê, biológica e socialmente, mais distante ele se enxerga de seus pares negros. Ademais, ao considerar que as origens comuns são elementos fundamentais na afirmação das identidades, de acordo com Rout (1976, p. 132; 245), a hierarquização das pessoas em termos de sua proximidade a uma aparência branca ajudou a fazer com que indivíduos de pigmentação escura desprezassem a sua origem africana. Daí, “negros e mulatos fazem o melhor possível para parecer mais brancos e eles energicamente buscam dissimular ou desenfatizar suas origens negróides”.

O ideal do branqueamento demonstrou uma enorme força cognitiva embutida nos seus pressupostos, que não pode ser desconsiderada. Ele não se referiu apenas à mudança biológica (de cor de pele), mas também ao campo da cultura, dos valores, dos costumes, dos comportamentos. Este ideal postula a supremacia do branco e, ao mesmo tempo, induz os indivíduos a se aproximarem desse ideal e de seus valores. O branqueamento poderia ser alcançado por vários meios: através do sucesso econômico (o dinheiro embranquece); do cultivo de amigos e conhecidos brancos; da adoção consciente de normas e de comportamento da vida dos brancos de classe média; e através do casamento com uma pessoa de pele mais clara, de preferência branca. Isto implicou na cristalização de uma visão de mundo e de valores que se encontram presentes não somente nos anseios e interesses dos grupos brancos, mas em toda a sociedade (ANDREWS, 1998; HOFBAUER, 2006). Assim, não apenas as raízes negras são afastadas e rejeitadas, mas, também no campo dos valores e da cultura, elementos fundamentais na construção da identidade, as referências a serem seguidas são àquelas do mundo branco, numa perspectiva de branqueamento social.

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Mesmo a ideia de democracia racial, que a princípio pode sugerir a incorporação da cultura e da identidade negra no conjunto social, o faz descaracterizando-as. O ponto central desta ideologia é a miscigenação, é a fusão das três raças existentes no Brasil. Na perspectiva teórica utilizada por Freyre, “raça” já não possuía um sentido biológico, mas se referia a diferentes culturas que conviviam na nação. Uma ideia forte era a de que raça não era importante: para a maioria das pessoas não havia racismo e havia pouco sentimento de identidade racial na população. Daí, o Brasil passa a se enxergar como uma civilização híbrida, miscigenada, como um “caldeirão étnico” capaz de absorver e abrasileirar as tradições e manifestações culturais de diferentes povos. Se a identidade negra na ideologia do branqueamento deveria ser diluída no sangue branco, na ideologia da democracia racial ela seria consumida neste caldeirão étnico. A identidade fundamental é “ser brasileiro”, “todos iguais”. Em fim, com os mecanismos ideológicos e políticos de negação das diferenças raciais e do racismo, não houve qualquer incentivo ou encorajamento para a afirmação da identidade negra no Brasil. Pelo contrário, as tentativas foram rechaçadas, desestimuladas (GUIMARÃES, 2001, p. 123; WADE, 2008, p. 182; ANDREWS, 1997).

O efeito da desmobilização e a não politização dos conflitos raciais

Se nos Estados Unidos as ideias, as leis e as políticas raciais explícitas contribuíram para gerar solidariedade entre os negros, para a formação de identidades coletivas com base em critérios raciais bem definidos e para a mobilização massiva dos negros gerando os mais intensos conflitos e tensões raciais, no Brasil a trajetória tomou rumos opostos a esse. Neste último, um conjunto complexo de fatores – com destaque para a ausência de leis e de políticas raciais rígidas, a negação do racismo, a ausência de uma identidade racial bem definida e o desejo de branquear – contribuiu não somente para negar, velar e minar os conflitos raciais, mas também para despolitizar a questão racial e para que raça não alcançasse espaço na agenda política nacional do país.

O ponto central da negação do conflito racial no Brasil está na negação do racismo. Essa negação teve um papel fundamental na definição do problema racial no Brasil. Isto porque a negação do racismo foi no âmago da questão: não há problema racial no Brasil. Daí, se o problema não existe, nada justifica o conflito racial e nada justifica políticas raciais. Essa interpretação minou as possibilidades de mobilização e de politização da questão racial. Ao ser negada, a questão não foi problematizada, não foi levada até a agenda política nacional.

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Daí, raça, no Brasil, não se tornou uma questão nacional, mesmo com mais de quatro séculos de existência de exclusão, discriminação e desigualdade racial. Essa imagem, nas últimas décadas materializada e fortalecida pela ideologia da democracia racial, foi duradoura e possuiu um forte potencial para moldar visões de mundo, comportamentos, decisões e não- decisões políticas, pelo menos até final dos anos 1980. Isto ajuda a entender a afirmação muito presente mesmo na contemporaneidade: no Brasil o problema não é racial, é social.

Por isso a afirmação de Hasenbalg (1996, p. 238) de que o mito da democracia racial “preenche uma importante função de controle social, apontando para a unidade e homogeneidade nacional e ocultando a existência de divisões raciais e sociais”. E para esse mesmo autor (2005, p. 255), é “na ausência de conflito racial aberto e na desmobilização política dos negros” que se manifesta a “eficácia da ideologia da democracia racial fazendo com que os componentes racistas do sistema permaneçam incontestados, sem necessidade de recorrer a um alto grau de coerção”. Como afirmou Schattschneider (p. 1967, p. 95), “o problema crucial da política é a administração do conflito” e “todo conflito requer um espaço no universo político”. Daí, ao negar o conflito racial no Brasil, o mito teve o efeito de evitar que a questão racial entrasse na agenda política deste país, ou seja, a questão racial foi indiscutivelmente despolitizada.

5.4 Voto, educação, terra, trabalho e moradia: a condição do negro no Brasil pós-

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