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A Igreja: a experiência de Aratuba

No documento Movimentos sociais no campo do Ceará (páginas 60-64)

A Igreja prossegue dirigindo o processo de sindicalização no Ceará.39 Mas, a partir de 1967, já é possível perceber algumas mudanças na sua orientação expressas nas práticas de alguns setores. Eviden- temente, os setores da Igreja que apoiaram o golpe militar, acreditando que este faria a revolução antes que o povo a izesse, continuava ainda a crer no seu sucesso no que diz respeito à promoção das transforma- ções que as relações sociais no campo reclamavam. De fato, somente com a pressão dos setores mais progressistas é que a Igreja, como insti- tuição, questionará sua identiicação com o Estado. Enquanto, para os militares, a reforma agrária (tal como eles a encaminharam) era uma questão de segurança nacional, para os bispos, estava em jogo a viabi- lização de um programa de promoção humana cuja execução, no inal

39 Em virtude da sua participação no movimento golpista de 1964, a Igreja não sofrerá a repressão que atingirá frontalmente o PCB, e isso garantirá a continuidade do processo de sindicalização rural. Vejamos o que João Felismino, líder sindical, nos diz sobre esse processo no Ceará: “Não, os sindicatos da região do Cariri não sofreram intervenção [...] por terem sido fundados na orientação da Fundação Padre Ibiapina. Vejam bem: até determinado tempo, o pessoal chamava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Crato, o Sindicato do Bispo que funcionava numa dependência da Fundação Padre Ibiapina” (OCHOA, 1989, p. 118-119).

das contas, também favoreceria a estabilidade social e política. Se a Igreja só se divorciará do Estado formalmente na Assembleia da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB de 1980, já nos primeiros anos da década anterior, “começa a se deinir, na orientação de diversos bispos, uma pastoral de convivência com os movimentos sociais” e, mesmo antes, no inal dos anos 1960, “os bispos das áreas mais tensas procuram canalizar as tensões e conlitos dos trabalhadores rurais de suas dioceses para a exigência de aplicação da lei, o Estatuto da Terra dos militares” (MARTINS, 1989b, p. 28). Como, para os mili- tares, o Estatuto só deveria ser utilizado como medida cautelar em casos de conlitos graves, começa a se gerar um desentendimento com a Igreja, que considera “que o Estatuto deveria ser a regra geral e uni- versal, que condenasse o latifúndio em seu conjunto e viabilizasse a reforma social no campo” (idem, ibidem).

Alguns padres e bispos, no desenvolvimento das suas práticas eclesiais em suas paróquias ou dioceses, tomam a iniciativa de desen- volver um trabalho de organização das populações pobres do campo em comunidades.40 É produto dessas iniciativas isoladas, aqui no Ceará, o caso da paróquia de Aratuba e da Diocese de Crateús.

Em Aratuba, desde os ins de 1967, o vigário nomeado da Paróquia, José Maria Cavalcante Costa, inicia um trabalho de organi- zação das populações pobres do município. No intuito de compre- ender as condições de vida e trabalho desses grupos, o Pe. José Maria e, posteriormente o Pe. Moacir e a Irmã Maria Amélia, passam a con- viver mais estreitamente com os trabalhadores rurais.41 Tornam-se comuns, a partir de então, as peregrinações de sítio em sítio. Vendo, ouvindo e discutindo com os trabalhadores os seus problemas, à luz dos ensinamentos bíblicos, esses religiosos passam a incentivar a reu-

40 Esse trabalho que alguns religiosos, isoladamente, passam a desenvolver são, de certa forma, a continuação ou a retomada do trabalho de educação e organização de bases iniciado pela Igreja e outros grupos políticos, a partir de 1961 (PAIVA, 1973).

41 O município de Aratuba fica situado na microrregião da Serra de Baturité. As infor- mações, trazidas aqui sobre o movimento de organização dos trabalhadores rurais de Aratuba em comunidades eclesiais de base, foram obtidas por meio de entrevista com Pedro Jorge F. Lima, agrônomo, presidente do Esplar, em março de 1990.

nião dos trabalhadores em comunidades, e, fruto desse trabalho, surgem as comunidades eclesiais do Sítio Fernandes e do Sítio Paraíso. A essa altura, a dedicação aos pobres, antes inusitada, começa a ser percebida pelas classes dominantes locais, que passam a reclamar a ausência dos padres da sede da Paróquia e, embora estes argumen- tassem que os limites da paróquia transcendiam os limites da cidade, os grupos dominantes passam a desconiar do teor do trabalho desen- volvido pelos religiosos.

Num primeiro momento, as reuniões são realizadas, sob a coor- denação dos padres, nas próprias comunidades, mas à medida que o número delas vai crescendo, nos primeiros anos da década de 1970, as reuniões passam a ser dominicais e na própria sede da Paróquia. Nessas reuniões, eram discutidos os mais diversos problemas das comuni- dades, mas era fundamentalmente em torno de questões relativas à produção e à divisão do produto do trabalho que as discussões giravam. Até então, não havia sido fundado ainda o STR de Aratuba, pois a ten- tativa da Fetraece,42 em 1969, com a campanha da criação de sindi- catos em todos os municípios onde eles não existiam, fora frustrada. Se as classes dominantes locais não tinham ainda, publicamente, se pro- nunciado contra o trabalho de organização de comunidades desenvol- vido pelos padres, contra a organização do sindicato a reação será ime- diata. Ameaçados de expulsão, os trabalhadores rurais adiam o movimento pró-sindicalização, mas aí ocorre um fato curioso, as mu- lheres, considerando que contra elas os patrões nada podiam fazer, tomam a frente do processo e organizam a fundação do STR, que ocor- rerá no ano seguinte, 1970, tendo na sua diretoria trabalhadores que participavam das comunidades eclesiais organizadas pelos padres.

É importante lembrar que, desde 1967, com a criação do Funrural,43 muitos sindicatos são fundados para servirem de rede ins-

42 Após a conquista da Contag pelas oposições, lideradas por José Francisco, nas eleições de 1967, foi reatualizada a diretriz de fundar STRs onde estes ainda não existiam com o intuito de ampliar os espaços de organização por meio dos quais se encaminharia a luta, dentro dos parâmetros legais - ETR e ET - pelos “direitos” (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA, 1985).

trumental para funcionamento dos centros de serviços, neles instalan- do-se ambulatórios, gabinetes médicos e mesmo transformando-os em pequenos hospitais (BESERRA 1989, p. 104). Esse caso da fundação do STR de Aratuba, como de muitos outros municípios, revela-nos que, a despeito do assistencialismo dominante, alguns sindicatos ainda es- tavam sendo fundados, salvaguardando o seu papel fundamental de órgão representativo de classe.44

O trabalho da Igreja de Aratuba junto às comunidades pros- segue. Agora, além dos religiosos que o iniciaram, técnicos da Associação Nordestina de Crédito e Assistência (Ancar), que desen- volviam trabalhos na região, juntam-se à organização. Do aprendizado das discussões, os trabalhadores concluem que a estratégia para garantir um preço razoável da produção é o controle da comercialização do pro- duto. A partir daí, e com a colaboração estreita da Paróquia e dos téc- nicos da Ancar, em 1969, é formada uma chapa para concorrer à dire- toria da Cooperativa de Guaramiranga.45

Vitoriosa, a nova diretoria, basicamente composta de médios e pequenos proprietários, desloca o trabalho de assistência dos grandes para os pequenos. Assistida inanceiramente por convênios (irmados pela Paróquia de Aratuba) com instituições internacionais (como a

Oxford Committee for Famine Relief, Oxfam, etc.), em 1971, a coope-

rativa adquire um caminhão Mercedes Benz que, a partir daí, recolherá, de comunidade em comunidade, as frutas e verduras para comercializar diretamente em Fortaleza. À medida que passa a ferir diretamente os interesses dos intermediários, que, numa boa parte dos casos, são os

mesmo ano pelo Decreto 61.554. Este decreto deu vida ao FUNRURAL, que centrou sua atenção em celebrar convênios com hospitais visando a oferecer internação e assistência médica, principalmente permitindo cirurgia geral e obstétrica, em condições de total gra- tuidade; alcançou assalariados permanentes e safristas, arrendatários, parceiros e pro- prietários, inclusive proprietários com até quatro empregados” (BESERRA, 1989, p. 104). 44 É necessário lembrar que, após a retomada da Contag pela oposição, em 1968, é estru- turado um programa de expansão do movimento sindical, então, muitos sindicatos rurais, sobretudo naquelas cidades onde não existiam, são fundados a partir dessa iniciativa da Confederação e das Federações estaduais de trabalhadores rurais.

45 A Cooperativa de Guaramiranga, cidade vizinha a Aratuba, organizava o comércio das culturas produzidas na região.

grandes proprietários da região, denúncias sobre o trabalho da coopera- tiva chegam ao presidente da Ancar, que promove a substituição dos técnicos envolvidos. Por outro lado, a própria diretoria eleita une-se a representantes do poder local na eleição de 1972, e, com essa aliança estabelecida, ao contrário do que esperavam, os pequenos e médios pro- prietários perdem outra vez seu espaço na cooperativa, e tudo volta ao que existia anteriormente. Mas, mesmo sem a cooperativa, sob a asses- soria do Pe. Moacir, as comunidades continuam se organizando com recursos de instituições internacionais.

A partir dos primeiros anos de 1970, Pe. Moacir passa a organizar comunidades também na região vizinha do Sertão Central, de modo que os conlitos desencadeados nessa região, a partir dos ins de 1979, têm também a sua participação assim como a colaboração de outros reli- giosos da Diocese de Quixadá. Pedro Jorge F. Lima, agrônomo, presi- dente do Esplar, conheceu de perto e também participou do movimento desenvolvido pela Paróquia de Aratuba:

[...] Até 1978, o trabalho gravitava todo em torno dos grupos tocados pela Igreja. Mas a Paróquia de Aratuba compre- endia parte do município de Quixadá, Itapiúna, Canindé, Capistrano... Era uma ampla área! Aratuba passou a polarizar e chegou a ter cento e tantos grupos comunitários, que vinham, às vezes, de quase 100 quilômetros de distância para se reunir lá...46 (BESERRA, 1990b).

No documento Movimentos sociais no campo do Ceará (páginas 60-64)