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A Igreja: a experiência de Crateús

No documento Movimentos sociais no campo do Ceará (páginas 64-67)

Na Diocese de Crateús, também ocorreu algo semelhante ao que aconteceu em Aratuba, mas sob a orientação do bispo D. Fragoso. Recontaremos, nos parágrafos seguintes, a partir do depoimento de Manuel Marques da Costa, ex-presidente do STR de Tauá, a história do movimento de sindicalização orientado pela Igreja naquela Diocese.

46 Trecho de entrevista concedida à autora em 12 de março de 1990 para projeto de pes- quisa Esplar.

Ele conta que, em 1964, depois da “revolução”, foi quando se começou a falar em sindicato. Havia controvérsias sobre o seu signii- cado na vida dos trabalhadores, uns diziam “que era bom e outros di- ziam que era ruim. E o grande, o proprietário latifundiário, dizia ao morador que não se associasse, que aquilo era o comunismo; que a po- lícia ia vir meter o chicote em todo mundo” (COSTA, 1984a, p. 12). Apesar disto, conta ele, “a gente foi se animando pra criar sindicato na região e conseguiu” (COSTA, 1984a, p. 12).

O trabalho de sindicalização rural na região foi iniciado por D. Fragoso, primeiro bispo de Crateús. Manuel Marques da Costa conta que com o bispo veio a sua equipe, que trabalhava no sentido da “cons- cientização nas bases: nas casas, nas fábricas de farinha, sempre onde tinha gente. Principalmente depois dos sindicatos fundados eles deram muita contribuição nessa conscientização do homem do campo” (COSTA, 1984a, p. 12).

Sob o comando de D. Fragoso, foram criadas várias Comunidades Eclesiais de Base na região e era por meio delas que as comunidades mais isoladas tinham, pela primeira vez, um contato direto com pregadores da Igreja católica. Diz ele “o animador pregava o Evangelho, a gente criou isto praqueles lugar que não tinha missa, todos os domingos havia uma celebração da Palavra. Aonde se rezava, se cantava e pregava o Evangelho, um evangelho bem empregado à vida do povo” (COSTA, 1984a, p. 18).

Assim, por meio do Evangelho, os participantes das Comunidades Eclesiais de Base iam aprendendo sobre a história da dominação no sertão nordestino. Comparavam as opressões das passagens da Bíblia com as das suas vidas cotidianas. Comparavam “o sofrimento daquele povo com o sofrimento do povo de hoje e a maneira de como se libertarem. A gente via como o caminho mais certo e mostrava a eles e dizia a eles com muito entusiasmo e coragem: o caminho mais certo pra vocês se libertarem desta escravidão é se organizarem nos seus sindicatos” (COSTA, 1984a, p. 18).

Prossegue o ex-presidente do sindicato de Tauá sua narrativa:

E isto a gente fazia em todos os lugares do município e na re- gião da Diocese de Crateús. Todos os dias a gente fazia este tra- balho, quer dizer, em todo canto tinha alguém fazendo o trabalho todo dia. [...] A equipe paroquial se reunia uma vez por mês pra

avaliar o trabalho e arrumar outros métodos de trabalho para o próximo mês. E, de 3 em 3 meses, a gente reunia o Conselho da região, em Crateús, pra avaliar, também, o que tinha sido feito ou o que a gente tinha errado naquele trabalho e o que se devia melhorar a partir dali. E aquele Conselho, que eu fiz parte dele, levava até as Comunidades Eclesiais de Base a mesma infor- mação, e mostrava e avaliava junto com eles, e mostrava que erros todo mundo tem; e a gente via os pontos fracos da gente e procurava assim melhorar. E isto foi enriquecendo, foi aumen- tando o grupo, tanto de animadores como o crédito da gente pra conversar lá nas bodegas, nos bar, nas festinha. Aonde tinha um de nós conversando todo mundo interessava a ouvir. Um criti- cava, um achava que tava errado, mas outro achava que tava certo e a gente nunca tememos as críticas e nem temíamos dizer a verdade em qualquer canto. E foi assim que foi feito o trabalho da Igreja, em todos esses anos. [...] Esse trabalho contribuiu muito para o povo se associar. Mas eu acho que o que mais au- mentou mesmo, foi a tal de assistência médica, que nem existe, mas o povo ainda tem a ilusão que ela existe nos sindicatos. Eu acho que de qualquer forma teria se associado muita gente. Mas a dificuldade era maior de se lutar como o povo hoje se não fosse essa conscientização do pessoal nas bases. E só a Igreja, como eu já disse, tinha condição de fazer naquela época. Porque hoje não: tem os delegados sindicais, os sindicatos têm mais recursos pra fazer o trabalho... mas naquela época só quem tinha recurso e condições mesmo era a Igreja (COSTA, 1984a, p. 18-19).

[...] Depois da mobilização que nós fizemos, o Deputado Júlio Rego, em Tauá, aproveitou pra levar uma pessoa da confiança dele, eu acho que nem só com o objetivo de politicar lá dentro, mas com o interesse de levar um gabinete médico e um gabinete dentário e entregar a um cunhado dele, que é dentista. E criar um hospital, que ele só (conseguia) se houvesse um sindicato pra fazer um convênio com o Funrural. [...] Foi daí o grande interesse de Júlio Rego de fundar o sindicato. Não por que ele tivesse no lado do trabalhador querendo a reforma agrária, acei- tando que o trabalhador fosse viver muito mais livre, não, o con- trário, ele pensou que o hospital seria um instrumento político pra ele, e o sindicato, também, iria ser, além de tudo, gerar em- prego pra eles que tavam formados sem condições de trabalhar, porque não tinha aonde... (COSTA, 1984a, p. 13).

[...] Embora tenha sido uma boa, porque talvez sem a influência de um político desse ninguém quisesse presidir o sindicato. Quer dizer, aí a gente ia ter muita dificuldade pra arranjar uma dire- toria. Do outro lado, de reconhecer no Ministério do Trabalho, se até ele, como deputado, fosse contra a gente naquela época. Só que depois de fundado o sindicato, a primeira questão que houve foi com o pai do mesmo Júlio Rego, e ele começou a ficar contra o presidente. Só que o sindicato já era reconhecido e não teve problema, além do trabalhador ganhar a questão, a gente continua com o sindicato, e sem querer mais a influência política lá dentro. Embora ele sempre penetre, sempre apareça, mas a gente tá sempre tentando tirar (COSTA, 1984a, p. 14).

No depoimento acima, podemos observar a dinâmica do reconhe- cimento do trabalhador rural; de como, com a ampliação dos seus hori- zontes por meio da participação nas Comunidades Eclesiais de Base, vai-se apropriando de uma cidadania que antes se apresentava de forma apenas abstrata ou não se apresentava de modo algum. As tentativas de apropriação dos sindicatos pelas forças políticas locais também mos- tram que os grupos dominantes tinham grande diiculdade em aceitar o reconhecimento político desse grupo social, acreditando sempre na pos- sibilidade de voltar, de algum modo, a manipulá-los, tentando conven- cê-los de que permaneciam dependentes deles quando, de fato, no caso narrado acima, era o oposto que ocorria.

No documento Movimentos sociais no campo do Ceará (páginas 64-67)