• Nenhum resultado encontrado

2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA CONCEPÇÃO DE POBREZA NA

2.3. Teoria das Capacidades: desenvolvimento como liberdade

2.3.2. A igualdade, a liberdade e os fundamentos da justiça

Em “A Ideia de Justiça” (2011, p. 09) Amartya Sen aponta que a motivação dos seres humanos na busca pela justiça, “não é a compreensão de que o mundo é privado de uma justiça completa – coisa que poucos de nós esperamos -, mas a de que a nossa volta existem

91 Amartya Sen especifica cinco tipos de liberdades instrumentais que aqui foram destacados no item anterior. No entanto, o autor destaca que estas liberdades coexistem com outras igualmente importantes.

injustiças claramente remediáveis que queremos eliminar”. Nesta perspectiva é que o autor apresenta sua teoria de justiça, segundo ele, “uma teoria da justiça em um sentido amplo”, cujo objetivo é apontar procedimentos para a melhoria da justiça e a remoção de injustiças, sem a intenção de ofertar soluções que versem sobre “a natureza da justiça perfeita” ( p.11), e cujos princípios são definidos com relação “à vida e às liberdades das pessoas envolvidas” (p.14).

É perceptível que ao longo da história todas as grandes teorias da justiça buscavam, cada qual a seu modo, a igualdade em determinado nível de análise. “Em cada teoria, a igualdade é buscada em algum ‘espaço’ (ou seja, em relação a algumas variáveis relacionadas às respectivas pessoas), um espaço que é visto como central nessa teoria”, afirma Sen (2011, p.326).

Qual será então a igualdade buscada pela ideia de justiça proposta por Amartya Sen? Tendo por base as obras do autor aqui já referenciadas, deve-se ter em mente que sua ideia de justiça correlaciona-se com sua Teoria das Capacidades e, por sua vez, com seu entendimento de liberdade como desenvolvimento.

Qualquer teoria da ética e da filosofia, em particular qualquer teoria da justiça, tem de escolher um foco informacional, ou seja, tem que decidir em quais características do mundo deve se concentrar para julgar uma sociedade e avaliar a justiça e a injustiça. Nesse contexto, é particularmente importante ter uma visão de como uma vantagem total de um indivíduo deve ser avaliada. O utilitarismo, iniciado por Jeremy Bentham, concentra-se na felicidade individual ou prazer (ou alguma outra interpretação da “utilidade” individual) como melhor forma de avaliar a vantagem de como uma pessoa é e como isso se compara com as vantagens dos outros. Outra abordagem, que pode ser encontrada em muitos exercícios práticos de economia, avalia a vantagem de uma pessoa quanto a sua renda, sua riqueza ou seus recursos. Essas alternativas ilustram o contraste entre as abordagens baseadas na utilidade e nos recursos, em contraste com a abordagem das capacidades, baseada na liberdade. (SEN, 2011, p.265)

É importante destacar que apesar da tendência a se crer que a ideia de justiça de Sen se baseie na igualdade no campo das capacidades individuais, não é exatamente esta a perspectiva proposta pelo autor. (SEN, 2011, p.329) Trata-se de uma perspectiva mais fluida e abrangente, menos rígida e delimitada, que busca não estabelecer padrões únicos de comparação, e que se pretende adaptável a diferentes ocasiões e regiões.

Segundo ele,

A questão central aqui diz respeito às múltiplas dimensões nas quais a igualdade importa, que não são redutíveis à igualdade em um único espaço, seja de vantagens econômicas, recursos, utilidades, qualidade de vida ou capacidades. Meu ceticismo em relação a uma compreensão unifocal das exigências da igualdade (nesse caso

aplicada à perspectiva das capacidades) é parte de uma crítica mais ampla de uma visão unifocal de igualdade. (SEN, 2011, p.331)

O pensamento seniano aponta para o fato de que os seres humanos são diferentes o suficiente para impossibilitar a busca pela igualdade em uma visão unifocal. Segundo o autor, a igualdade em uma esfera não necessariamente significará igualdade em outras esferas que podem ser tão importantes quanto aquela escolhida como foco. Assim, “a diversidade generalizada dos seres humanos acentua a necessidade de lidar com uma diversidade de foco na avaliação da igualdade” (SEN, 2008, p.31), bem como a pluralidade dos valores que perpassam as diferentes comunidades impõe “a necessidade de transcender as limitações de nossas perspectivas posicionais”, configurando-se em um desafio e em uma necessidade “que o pensamento ético, político e jurídico tem de incorporar” (SEN, 2011, P. 187).

Sen discorda da assertiva de que é necessário estabelecer um único leque de princípios para a definição de justiça, afinal, tal como mencionado anteriormente, o autor tem como direcionamento para sua ideia de justiça não uma previa definição do que seja tal conceito, mas, sim, a busca por formas de ampliação da justiça social e do fim de injustiças remediáveis.

Assim como toda Teoria de Justiça, aquela proposta por Sen também se estabelece calcada em determinada ideia de um “bem que seja caro a todos”, ou de vantagem individual a todos necessária. O chamado foco informacional. Ainda que, conforme dito, este foco para Amartya Sen não seja exclusivo, ou único, o autor destaca que em sua abordagem das capacidades a vantagem individual deve ser “julgada pela capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razão para valorizar” (SEN, 2011, p.265).

Segundo Sen, a escolha de um foco informacional é importante para “chamar a atenção para as decisões que teriam de ser feitas e a análise de políticas que precisa levar em conta o tipo correto de informação” (SEN, 2011, p.267). É neste sentido, considerando a amplitude das variantes abordadas na perspectiva das capacidades, que o autor assevera a contribuição que esta pode dar à busca pela justiça.

[...] a perspectiva da capacidade é inevitavelmente interessada em uma pluralidade de características diferentes de nossas vidas e preocupações. As variadas realizações de funcionamentos humanos que podem valorizar são muito diversas, variando desde estar bem nutrido ou evitar a morte precoce até tomar parte na vida comunitária e desenvolver a aptidão para seguir os planos e as ambições ligados ao trabalho. A capacidade na qual estamos interessados é nosso potencial de realizar várias combinações de funcionamentos que possamos comparar e julgar entre si com relação àquilo que temos razão para valorizar. (SEN, 2011, p.267)

É válido frisar que a ideia da capacidade, conforme demonstrado anteriormente, abrange não apenas o que tange aos funcionamentos e oportunidades, mas, também, o que se refere à liberdade. Ou seja, a perspectiva se pauta na “aptidão real das pessoas para escolher viver diferentes tipos de vida a seu alcance, em vez de confinar a atenção apenas ao que pode ser descrito como a culminação – ou consequência – da escolha” (SEN, 2011, p.271).

A liberdade, neste sentido, é referente às liberdades substantivas mencionadas em seção anterior, as liberdades “básicas” às quais todo ser humano deve gozar. Assim, medir a justiça de um ato, ou de uma sociedade, terá como premissa a aferição da liberdade que esta gera aos homens em tela. Como para Sen gerar liberdade é gerar desenvolvimento, assim como gerar liberdade é gerar atos justos, então, presume-se que há, para o autor, paridade ou identidade entre justiça social e desenvolvimento socioeconômico capitalista.

O fundamento da ideia da justiça de Sen está, portanto, na compreensão e importância que dá às liberdades individuais. Ainda assim, o autor destaca que “as instituições não podem deixar de ter um papel instrumental importante na busca da justiça” (SEN, 2011, p.14). Ao correlacionar com as seções aqui apresentadas anteriormente, e com o que fora aqui exposto sobre obras anteriores do autor, pode-se vislumbrar o elo entre o que neste momento ele chama de instituições, e aquilo que outrora fora denominado liberdades instrumentais, aquelas que quando praticadas levariam à expansão das liberdades substantivas dos indivíduos.

Junto com os determinantes do comportamento individual e social, uma escolha apropriada das instituições tem um papel criticamente importante na tarefa de melhorar a justiça. As instituições entram nos cálculos de muitas formas diferentes. Elas podem contribuir diferentemente para a vida que as pessoas são capazes de levar de acordo com o que têm razão para valorizar. As instituições também podem ser importantes para facilitar nossa capacidade de examinar minuciosamente os valores e as prioridades que podemos considerar, sobretudo por meio de oportunidades para o debate público (incluindo considerações da liberdade de expressão e do direito à informação, bem como a existência de locais para o debate informado). (SEN, 2011, p.14-15)

No que se refere ao instrumental para a busca da maximização da justiça, dois pontos saltam aos olhos de quem lê “A Ideia de Justiça”. Aqui não nos aprofundaremos nestes, mas destacamos que os dois pontos são: a democracia e os direitos humanos.

Para Sen, a democracia deve ser entendida como “governo por meio do debate”92

e deve ser julgada “não apenas pelas instituições que existem formalmente, mas também por

92 Nestas passagens apresenta-se claramente a aproximação da perspectiva seniana de análise à perspectiva teórica de Stuart Mill. John Stuart Mill viveu durante a primeira metade do século XIX. Segundo Balbachevsky (2003, p. 195), “De certa forma, a obra de Mill pode ser tomada como um compromisso entre o pensamento liberal e os ideais democráticos do século XIX. O fundamento deste compromisso está no reconhecimento de

diferentes vozes, de diversas partes da população, na medida em que de fato possam ser ouvidas”. A democracia é descrita por Sen, neste sentido, com relação à sua possibilidade de promover uma argumentação racional pública que influencie ações práticas rumo à justiça (SEN, 2011, p.15). Esta mesma argumentação racional pública é quem, na perspectiva seniana, solidifica os direitos humanos como “pretensões éticas constitutivamente associadas à importância da liberdade humana” (SEN, 2011, p.401).

Os direitos humanos podem servir de motivação para muitas atividades diversas, desde a legislação e a implementação de leis adequadas até a mobilização de outras pessoas e a agitação pública contra violações dos direitos. As diversas atividades, em conjunto e em separado, podem contribuir para fomentar a concretização de importantes liberdades humanas. Talvez seja o caso de frisar que, além de existirem muitas vias para salvaguardar e promover os direitos humanos além da legislação, esses diversos caminhos mantêm uma relação de considerável complementariedade. A ética dos direitos humanos pode se tornar mais efetiva com uma variedade de instrumentos inter-relacionados e uma versatilidade de meios e maneiras. Essa é uma das razões pelas quais é importante reconhecer ao estatuto ético geral dos direitos humanos o que lhe cabe, em vez de encerrar prematuramente o conceito de direitos humanos no quadro estreito da legislação, real ou ideal. (SEN, 2011, p.401)

Nota-se, neste sentido, a identificação nos direitos humanos da concretude da perspectiva ética baseada na defesa da liberdade de Amartya Sen. Para o autor, os direitos humanos universais associados à democracia, e sua expansão a um valor mundial (ainda que não presente em todos os Estados, ou que não presente com as mesmas características em todos eles), seriam instrumentos passíveis de levar a compreensão da justiça a um nível global.

Diz ele:

Há duas razões principais para exigir que o encontro entre a argumentação racional pública e a justiça vá além das fronteiras de uma região ou de um estado, e elas se baseiam respectivamente na pertinência dos interesses de outras pessoas para evitar a tendenciosidade e ser equânimes com os outros, e na pertinência das perspectivas de outras pessoas para ampliar nossa própria investigação dos princípios relevantes, e assim evitar o paroquialismo dos valores e pressupostos insuficientemente examinados da comunidade local. (SEN, 2011, p. 437)

Sobre a argumentação racional, a democracia e a possibilidade da justiça global, Sen argumenta que neste sentido “muitas instituições têm um papel a desempenhar, inclusive a ONU e as instituições ligadas a ela”. Para ele estas instituições, que funcionam como aparelhos para a perpetuação da ordem capitalista neoliberal, “operam com um certo grau de

que a participação política não é e não pode ser encarada como um privilégio de poucos. E está também na aceitação de que, nas condições modernas, o trato da coisa pública diz respeito a todos. Daí a preocupação de Mill em dotar o estado liberal de mecanismos capazes de institucionalizar esta participação ampliada”.

eficácia, e podem se tornar ainda mais eficazes dando apoio às instituições que ajudam a disseminar a informação e a ampliar as oportunidades de discussão internacional” (SEN, 2011, p.443).

Para Amartya Sen “a distribuição dos benefícios das relações globais depende não só das políticas internas, mas também de um leque de arranjos sociais internacionais, incluindo tratados comerciais, leis de patentes, iniciativas sobre saúde global, convênios educativos” a nível internacional, dentre outros, onde se incluem orientações para o combate à pobreza e o desenvolvimento (SEN, 2011, p.444). Este ponto, sobre o qual a discussão foi iniciada no capítulo anterior, será retomado no terceiro e último capítulo desta dissertação.

3. A CONCEPÇÃO PREDOMINANTE DE POBREZA POSTA EM PRÁTICA: A