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2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA CONCEPÇÃO DE POBREZA NA

2.3. Teoria das Capacidades: desenvolvimento como liberdade

2.3.1. Sobre as liberdades, a capacidade e a pobreza

Conforme demonstrado, a pobreza, segundo a proposição teórica de Amartya Sen, deve ser encarada na perspectiva da ausência de capacidade individual. Neste sentido, a conquista da igualdade entre os homens, nesta matriz de sociedade, será possível quando cada indivíduo possuir igual capacidade, ou igual liberdade, de escolher a forma como pretende levar sua vida.

Apesar da magnitude da retórica de que “todos os homens nascem iguais”, não é possível encarar a humanidade como um conjunto de homens iguais, não é possível nem mesmo crer que existam de fato dois indivíduos iguais no mundo. Sen destaca que os homens são diferentes tanto em suas características externas (riquezas que possuem e ambiente social e natural em que se situam, por exemplo), quanto em suas particularidades pessoais (características como idade, sexo, genética, aptidões físicas e mentais, e etc.). Nesta linha de pensamento o autor destaca que, em uma humanidade diversa, “a avaliação das demandas de igualdade tem de ajustar-se à existência de uma diversidade humana generalizada”. (SEN, 2008, p.29)

Sobre sua análise da desigualdade entre as pessoas a partir da “variável focal” das capacidades dos indivíduos, Amartya Sen esclarece que:

A igualdade é julgada comparando-se algum aspecto específico de uma pessoa (tal como a renda, ou riqueza, ou felicidade, ou satisfação de necessidades) com o mesmo aspecto de outra pessoa. Por isso o julgamento e a medição da desigualdade são completamente dependentes da escolha da variável (renda, riqueza, felicidade, etc.) em cujos termos são feitas as comparações. Eu a denominei “variável focal” – a variável que a análise focaliza ao comparar pessoas diferentes. (SEN, 2008, p.30)

A desigualdade entre pessoas será compreendida, na perspectiva seniana, em parâmetros de realizações e liberdades. Realizações alcançadas, e liberdade para realizar, ou oportunidade real de fazer o que se quer. Fala-se, assim, em padrões de bem-estar alcançados, realizados, e liberdade para buscar bem-estar e ampliá-lo.

A afirmação fundamental é de que, na avaliação bem-estar, os objetos-valor sejam os funcionamentos e as capacidades. Isto não implica que todos os tipos de capacidades são igualmente valiosos, nem indica que qualquer que seja a capacidade – mesmo se totalmente remota na vida de uma pessoa – necessita ter algum valor na avaliação do bem-estar dessa pessoa. É afirmando a necessidade de examinar o valor de funcionamentos e capacidades, opondo-os à atenção restrita aos meios para essas realizações e liberdades (como recursos ou bens primários ou renda), que a abordagem da capacidade tem algo a oferecer. (SEN, 2008, p.85-86)

A capacidade, nesta perspectiva teórica, deve ser compreendida como um espelho da liberdade para realizar funcionamentos, de modo que se expressa nas alternativas reais de liberdade que as pessoas têm. Refere-se, portanto, às liberdades substantivas mencionadas na seção anterior, às capacidades elementares das pessoas. (SEN, 2008, p.89)

Parece complicado compreender as formulações do autor sobre as liberdades individuais, principalmente sobre a diferença entre liberdades substantivas e instrumentais. O leitor atento deverá ter notado que em certos momentos nossa exposição parece até mesmo contraditória. No entanto, a apreensão deste conteúdo é fundamental para a correlação que será feita no próximo capítulo desta, assim, utilizemo-nos da prolixidade própria de Amartya Sen para retomarmos o ponto.

O livro “Desigualdade Reexaminada”, escrito em 1992 e aqui utilizado em sua versão de 2008, trata, sobretudo, da questão das liberdades substantivas e da igualdade. Já em “Desenvolvimento como Liberdade”, de 1999, aqui referenciado em sua edição de 2000, o autor busca demonstrar o papel da liberdade substantiva e, com destaque, o papel da liberdade instrumental para o desenvolvimento social e econômico. Pode-se compreender, assim, que, em uma ordem cronológica, um livro aprofunda o que fora iniciado no anterior e, ambos, somam-se na exposição da teoria formulada pelo autor.

Em “Desigualdade Reexaminada” Sen caracteriza que a capacidade dos homens deve ser “definida em termos das mesmas variáveis focais dos funcionamentos”. Assim, a capacidade é um conjunto de funcionamentos dentre os quais cada indivíduo escolhe uma combinação, o que representará seu conjunto capacitário. Ou seja, o conjunto capacitário dos indivíduos constará da combinação escolhida dos funcionamentos concretizados. (SEN, 2008, p.90-91) Devemos entender que em dado momento o autor se detinha ao papel substantivo da liberdade, ou seja, às capacidades elementares dos homens, como a de manter-se vivo e socialmente ativo.

É importante ressaltar que o papel instrumental da liberdade, a liberdade para ampliar as capacidades, ou ainda, a capacidade de se capacitar, acaba por ter menor destaque nos artigos que compõem “Desigualdade Reexaminada”, mas não se encontra ausente. O último ensaio do livro, de título “As exigências da igualdade” faz clara menção àquilo que viria a ser reiterado e aprofundado em “Desenvolvimento como Liberdade”:

A abordagem particular da igualdade que investiguei envolve a apreciação da vantagem individual por meio da liberdade para realizar, incorporando (mas ultrapassando) as realizações efetivas. Em muitos contextos, especialmente na

avaliação do bem-estar individual, estas condições podem, como sustentei, ser vistas proveitosamente em termos de capacidade para realizar funcionamentos, incorporando (mas ultrapassando) os funcionamentos efetivos que uma pessoa consegue realizar. A “abordagem da capacidade” baseia-se numa consideração geral das liberdades para realizar (incluindo as liberdades para realizar funcionamentos). (SEN, 2008, p.201-202)

Em “Desenvolvimento como Liberdade” Sen especifica com maior precisão os papéis constitutivo e instrumental da liberdade e, por conseguinte, melhor define a concepção de liberdade substantiva e liberdade instrumental. Segundo o autor, “o papel constitutivo relaciona-se à importância da liberdade substantiva no enriquecimento da vida humana”, onde se incluem as capacidades elementares dos homens. (SEN, 2000, p.52) É válido melhor definir a compreensão do autor sobre “capacidades elementares”, pois neste ponto reside a questão que pode elucidar toda esta particularidade do pensamento do autor. Elementar para ele vai além da sobrevivência, elementar é sobreviver com dignidade dentro da sociedade de mercado, e, portanto, não é apenas estar vivo e alimentado, abrange também saber ler, calcular, participação política e livre expressão, consumo, entre outros.

As liberdades instrumentais, como o nome já diz, são consideradas como meios, como instrumentos, processos que propiciam a expansão da liberdade humana em geral, visto que aumentam as capacidades das pessoas. É possível compreender, neste sentido, as liberdades instrumentais como alavancas que impulsionam, ou alargam, as liberdades substantivas, também entendidas como capacidades elementares dos indivíduos91.

É perceptível, então, que a abordagem das capacidades valora a liberdade tanto como um instrumento, quanto por seu valor intrínseco, o valor que possui por si só. A mesma abordagem, no que se refere à pobreza, a identifica como capacidade individual insuficiente, “o que pode ser conectado a vários interesses subjacentes, tal como garantir um bem-estar individual mínimo, ou prover liberdades individuais mínimas, o que, por sua vez, pode ser relacionado com exigências mais fundamentais de ordenamentos sociais bons ou corretos”, ou ainda, porque não adiantar, ordenamentos sociais “justos”. (SEN, 2008, p. 227)