• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – Elementos para a construção do corpus

2. Espaços sociais e históricos narrativos

2.4. A Ilha de Santiago

A ação narrativa de Os Dois Irmãos situa-se na Ilha de Santiago.

Sobre a sua descoberta, refere-se ter-se ficado a dever em 1445 a António de Noli (genovês ao serviço da coroa portuguesa) que, juntamente com seu irmão, Bartolomeu de Nolle e um sobrinho Rafael de Nolle e Diogo Gomes, navegador português (as ilhas do Barlavento – Santo Antão, São Vicente e São Nicolau foram encontradas depois).

Oficialmente as ilhas de Cabo Verde foram descobertas por volta de 1460, isto para solucionar a discrepância entre datas e autores da precária veracidade da documentação. Seja como for, a ilha foi dividida em duas donatarias. António de Noli recebeu a Ribeira Grande, hoje Cidade Velha e Alcatrazes, hoje Nossa Senhora da Luz, ficou com Diogo Afonso que descobria as ilhas do Barlavento. A este respeito Alberto de Carvalho informa em relação à descoberta e povoamento subsequente das ilhas que

[...] primeiro de Santiago para o Fogo, e desta para Brava e Maio, e sucessivamente para as restantes (sem ordem nem cronologia exactas), Boavista, S. Nicolau, Santo Antão, S.Vicente, Sal, todos se tornaram também “migrantes” na ocupação da toralidade do arquipélago, no processo de homogeneização civilizacional do espaço.” (2008:14). Santiago é a primeira ilha a ser povoada, a “Ilha dos Escravos” que abrigou a primeira capital fundada pelos europeus na África – a Vila da Ribeira Grande, hoje “Cidade Velha” (com a mudança da capital para a cidade da Praia). Sobre isso o historiador Sena Barcelos refere: “[...] haverá quatro anos que ele (D. Fernando)

alongada dos nossos regnos a gente não quer a ela viver senão com mui grandes liberdades e franquezas [...] “ (1899:21).

O historiador Daniel Pereira informa que em 1485 “ a Ilha de Santiago já estava dividida em duas capitanias: a do Norte, com sede na Vila dos Alcatrazes, e a do Sul, com a sua sede na Ribeira Grande. Por capitania, deve entender-se circunscrição territorial concedida a um delegado do rei, por ele nomeado, mediante a entrega de um documento intitulado “Carta de Capitania”.” (2005:44).

Ao longo dos tempos, a ilha de Santiago veio a dar origem a uma sociedade multiétnica, criando um quadro de miscigenação cultural. Ribeira Grande funcionava como porto de escala obrigatória para os navios que sulcavam o Atlântico, durante os dois primeiros séculos da sua descoberta e povoamento. O arquipélago é fundamental para o comércio, facto este que faz surgir e prosperar a vila da Ribeira Grande, o berço da sociedade cabo-verdiana.

Esta ilha tornou-se sede do trânsito de escravos e desde o início da colonização teve com os frades Capuchinhos a presença da Igreja Católica. O historiador António Carreira diz: “era na ilha (de Santiago) que se depositavam os escravos trazidos da costa com vista a serem “preparados” e, depois, “exportados”. (1972:259). A propósito da presença da escravatura, o historiador Daniel Pereira refere que a Carta Régia de 1466 concedia “aos moradores da ilha de Santiago a possibilidade de irem resgatar e comerciar escravos à costa ocidental africana, na zona compreendida entre o norte do Senegal e o limite norte da Serra Leoa, ajudou ao rápido povoamento da Ilha com mão- de-obra escrava, e Ribeira Grande transformou-se, simultaneamente, num verdadeiro entreposto de venda de escravos.” (2005:37). Aliás, como indica António Carreira em “Tratos e resgates dos portugueses nos Rios de Guiné e ilhas de Cabo Verde nos começos do século XVII”:

[…] a questão do despacho de escravos nas feitorias dos rios de Guiné foi debatida (sem resultados práticos) durante largos anos – até ao findar da primeira metade do século XVII. O litígio terminou quando Santiago perdeu a posição de entreposto de “exportação” de escravos, entre 1643-1645. E foi uma das principais causas da decadência da grande ilha. (1978:92).

Por volta de 1600, o governo português enviou jesuítas para a referida ilha e consta em Cartas da Missão, na Carta 60 dirigida ao padre André Fernandes de 25 de dezembro de 1652, Padre António Vieira escreve:

É o caso que nesta ilha de Santiago, cabeça de Cabo Verde, há mais de 60 mil almas, e nas outras ilhas, que são oito ou dez, outras tantas, e todas elas estão em extrema necessidade espiritual; porque não há religiosos de nenhuma Religião que as cultivem, e os párocos são mui pouco zelosos, sendo o natural da gente o mais disposto que há entre todas as nações das novas conquistas, para se imprimir neles tudo o que lhes ensinarem. (2013:70).

Como foi insinuado, o povo de Santiago destacava-se pela crença religiosa consequente da forte presença da evangelização que imperou desde início até ao século XVII de forma crescente, altura em que a cidade da Ribeira–Grande deixou de ser um entreposto obrigatório. A partir dessa data, os navios negreiros passaram a efetuar as suas viagens diretamente do litoral africano para os portos do continente americano, sem necessidade de efetuar qualquer escala na Ilha de Santiago.

António Carreira refere que o tráfego de escravos, o apoio à navegação (víveres frescos, aguadas) e o comércio (tecelagem, sal, algodão, urzela, anil, cana de açucar) e a agricultura faziam a riqueza dos senhores e libertos que assim sustentavam os seus escravos. Com a perda do privilégio de Centro do Comércio, a cidade começou a perder importância, tudo se agravando com os ataques de corsários, caso em que seriam os escravos a auxiliarem os senhores a fugirem para o interior da ilha.

E é esta sociedade composta por senhores, libertos, escravos que se vai desenvolver com o tempo Histórico, caso em que os senhores acabam por criar a classe dos morgadios. Ilha muito agrícola, criou ao lado dos latifúndios dos morgados, a classe de agricultores que serve de base à história de Os Dois Irmãos.

Desde 1820 que Santiago vinha passando por uma grande instabilidade social e política, dos eventos de nudança decorrentes do colapso do sistema da escravatura e, por outro, dos efeitos da revolução liberal em Portugal, cujos ecos chegam, por vezes, através da presença de degredados políticos e militares.