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CAPÍTULO II – Elementos para a construção do corpus

3. Resumos das histórias

3.4. Os Dois Irmãos

Germano Almeida, na qualidade de agente do Ministério Público e narrador conhecedor dos factos ocorridos, foca a sociedade rural cabo-verdiana de Santiago, usando para tal o desenrolar de vivências num povoado isolado no interior dessa ilha. Na sua narrativa ele transporta o leitor para a representação de um acontecimento realmente acontecido. Em nota paratextual, o autor informa:

A história que serve de suporte a esta estória aconteceu lá pelos anos de 1976, algures na Ilha de Santiago. Como agente do Ministério Público fui responsável pela acusação de “André” pelo crime de fratricídio. Só muitos anos depois percebi que “André” nunca mais me tinha deixado em paz. Devo-lhe por isso este livro no qual se confunde com a ficção. (DI:2).

Logo no frontispício do romance, a escrita revela o essencial da história e no início da narrativa, antecipa a sentença de André. A travessia do texto consiste na tomada de conhecimento dos acontecimentos que se desenrolam numa pequena e pacata aldeia do interior da Ilha de Santiago, com poucos habitantes, fechada ao mundo e portadora de regras comunitárias próprias e fixas, decorrentes da moral ensinada pela Igreja Católica Apostólica e Romana e pelos ensinamentos éticos e morais herdados dos seus ancestrais.

Na narrativa Os Dois Irmãos, toda a ação, em analepse, inicia-se num tribunal que pela voz do juz, admite que a personagem André Pascoal cometera um fraticídio em

circunstâncias “[...] não de todas esclarecidas” (DI:11), mas que no entanto apontam para a prática de um crime de homicídio voluntário.

André Pascoal casado com Maria Joana, fora convocado pelo pai, a fim de repor o seu bom nome da rapariga e a honra da sua família, já que Maria Joana teria mantido relações sexuais com o seu cunhado, João, irmão de André. André Pascoal que tinha sido educado numa família tradicional, resolveu deixar a ilha e emigrar para Lisboa, vivendo num quarto na rua de São Bento onde havia muitos outros patrícios. Muitas vezes deitado na sua cama, recordava a sua aldeia e as suas gentes, mas nunca lhe ocorreu chamar Maria Joana para junto de si. Deixara na aldeia a família, pai, mãe, tio Doménico, irmão e esposa, deixando-se envolver pela nova vida de Lisboa.

Ao fim de três anos, ele já pouco pensava na sua mulher, tendo aliás uma namorada em Lisboa que era de Santo Antão. Recebe então uma carta de seu pai informando-o que Joana o enganara com o seu irmão João e que era necessário o seu regresso à aldeia para assumir a posição que se exigia. Maria Joana, tendo praticado adultério, fora expulsa de casa dos pais de seu marido.

De regresso à ilha, André bastante europeizado e um tanto desenraizado pela ausência emigratória, já ligado a outros valores culturais, não reage contra o irmão, razão para ser ostracisado pelos pais e pelas gentes da aldeia. O pai defensor da tradição popular e de todos os seus valores, chamou André, que veio de Lisboa, esperando que os reparasse, de acordo com os valores populares existentes, a fim de preservá-los naquela comunidade.

Mas como se referiu, André não reagiu contra o irmão. Em vez disso, ausentou-se durante três semanas na Praia. Depois desse tempo de fuga às responsabilidades ditadas pela honra, regressa à aldeia disposto a agir contra o irmão a vingar a afronta de ele ter cometido adultério com a mulher do seu irmão, André.

Para o pai de ambos, João, filho mais novo era “[...] a vergonha tinha-lhe entrado em sua família”” (DI:38), que João era “um desnaturado!” (DI:38) não hesitou em dizer-lhe:”[...] faz com ele o que entenderes” (DI:39).

A pressão comunitária exercida sobre André é intensa, vinda nomeadamente do pai que praticamente o excluiu, por ele tardar em repor a honra desfeita. Trava-se um ajuste de contas entre entre André e João. Em relação ao fratricídio, pela boca de André,

beco para lhe dizer que ia matá-lo por ele continuar a “[...] montar-lhe a mulher”. (DI:234).

Depois do confronto, como um louco, João andou pelo povoado a desafiar e a insultar todos. No rescaldo, ficou-se pela tese de João não ter morrido do tiro dado pelo irmão, mas de um traumatismo posterior, devido a uma queda de João.

O último capítulo do romance, relata a tensão dramática com o regresso de André, de volta da cidade da Praia, com o seu quarto desfeito, em casa do pai. Após um sonho agitado, André decide fazer justiça. Este modo em que expomos os factos, conforme a ordem do texto, mostra que a lógica dominante na narrativa não é a causal, mas a associativa entre as ideias em jogo no tribunal. Fica-se a saber que André não reagiu logo por considerar que, no caso de Maria Joana com João, ela “[...] já era apenas uma vaga do passado.” (DI:22).

Conforme dito pelo narrador, as provas associadas ao acontecimento foram inconclusas. O tiro que João recebeu não foi suficiente para lhe causar a morte, pelo menos de forma imediata, pois ele ainda conseguiu levantar-se, dirigir-se para a frente da casa dos pais e blasfemar contra estes enquanto arremessava pedras contra a casa.

As personagens compõem dois grupos: os magistrados envolvidos no julgamento, o Meritíssimo Juiz, o digno agente do Ministério Público (advogado de acusação) e o advogado de defesa e os populares, o réu e as testemunhas, gente humilde e de filiação religiosa católica.

Ao Meritíssimo Juiz incumbia o poder de julgar, de aplicar a lei, o direito positivo e administrar a pena. Mas também reflete sobre a relação entre as normas jurídicas, do Estado de Direito e os valores consuetudinários. O advogado de acusação põe em evidência os factos concretos ocorridos que desencadearam o crime. O advogado de defesa reflete e problematiza questões mais gerais como a aculturação do emigrante, o Direito positivo (Estado de Direito) e o direito tradicional que se liga aos sentidos de honra e de respeito familiar e de fidelidade da mulher ao marido.

A esse propósito João Lopes Filho diz: “O fenómeno jurídico é, portanto, uma resultante da realidade sócio-cultural; acompanha o fenómeno social porque a ele é inerente.” (1981:119). Retoma-se o advogado de defesa que assistiu à autópsia e afirma que fora diagnosticado que a bala teria saído pelo ouvido da vítima, sem no entanto provocar qualquer lesão. Ele conclui que na dúvida dos factos deve decidir-se a favor do

réu, visto que não existem provas que justifiquem que os ferimentos sofridos são a causa da morte.

Mas o magistrado do Ministério Público insiste que o réu tinha produzido ofensas corporais voluntárias na pessoa da vítima com a intensão de matá-la, mas segundo os médicos legistas, a morte foi ocasionada pelos desaforos da vítima, por isso o réu deve ser posto em liberdade e regressar à família.

Diante do impacto social produzido sobre o réu e cujo desfecho é o crime, interroga-se, se André é culpado ou não pelo fratricídio que apresenta provas concretas da sua realização. Essa dúvida enriquece o texto e instiga o leitor a comentar a existência de uma comunidade que pelos anos de 1976 ainda se regia pela sobrevivência de valores enraizados no seu povo.

3.5. Dona Pura e os Camaradas de Abril

Como se referiu já, Dona Pura e os Camaradas de Abril, narra a trajetória de um grupo de estudantes cabo-verdianos residente em Lisboa (1974) no mesmo período em que ocorreu a Revolução dos Cravos.

Em Lisboa, o protagonista, vindo de Luanda, chega à pensão de Dona Pura, esta já morava com o seu terceiro marido, Firmino. Ele conhece Dona Purificação, mais propriamente Dona Pura, natural da Ilha de Santo Antão. Aos dezasseis anos, ela foi raptada por um administrador do conselho dessa ilha que também desempenhava as funções de juiz municipal e chefe de polícia. Devido a isso, ela foi esquecida pelo seu pai. Quando se aposentou, veio com Dona Pura para Lisboa e a mesma tornou-se dona de uma pensão com aluguer de quartos. A personagem narrador instala-se na sua pensão no tempo em que veio estudar direito, como bolseiro.

O administrador sofre uma mudança de atitude, ajuda Dona Pura em trabalhos domésticos e aceitou o aluguer de quartos para que ela fizesse dinheiro. Já velho, morre e deixa-lhe as suas ofertas “[...] de ouro, cordões, anéis com pedras de valor, um trancelim muito bonito, e ela foi-se desfazendo delas [...]” (DPCA:39).

Mas ainda em sua vida, ela conhece Giovanni Garpini, pintor que estava em Lisboa. Ele pintou o retrato de Dona Pura e tratava-a como uma rainha enquanto o velho administrador continuava a vê-la “[...] como uma criada para todo o serviço.” (DPCA:42).

Quando ele soube da relação de sua mulher com o italiano, teve um ataque fulminante e morreu. Dona Pura viveu com os seus filhos e Giovanni de quem teve Ana Rita e Susana. Quando foi passar férias à Sicília, terra da sua origem, veio a morrer afogado no mar. Posteriormente Dona Pura casa com Firmino, cabo-verdiano, informador da Pide e para não ser preso na altura do 25 de abril, ele regressa a Cabo Verde.

Entretanto a personagem-narrador que perdera de vista o seu primo Natal que tinha prestado serviço militar na Metrópole, tinha feito alguns anos do liceu, fora mobilizado para a Guiné, fugiu para o PAIGC, completa o curso de engenho, foi condecorado com a cruz de guerra por feitos gloriosos em combate e volta a Lisboa. O protagonista reencontra-o nos anos 70, em Lisboa.

Natal casa, por conveniência, com Ana I para ganhar segurança da nacionalidade portuguesa, divorcia-se e casa com Ana II, divorcia-se e casa com Ana III, viúva de um emigrante cabo-verdiano que morreu num acidente de trabalho. Nessa altura apaixonou- se por uma alentejana, Ana Maria, militante do MRPP que levou-o a assistir “[...] a uma breve cerimónia de homenagem a Amílcar Cabral realizada no Jardim da Estrela e promovida por força política.” (DPCA:24). A personagem-narrador casa-se com Susana e regressa com ela a Cabo Verde.

Na trajetória romanesca, as personagens relacionam-se umas com as outras num movimento de forças que exprime realidades culturais e sociais num tempo de mudanças rápidas operadas num Portugal liberto da opressão ideológica, no significado de ser cabo-verdiano e viver na metrópole e mesmo como o cabo-verdiano vivenciou esse tempo de mudanças em Cabo Verde.

A personagem-narrador, na primeira pessoa, interliga a ação entre o tempo colonial e o presente da Pós-Independência Nacional e parte do presente histórico, 25 anos após o 25 de abril de 1974 para rememorar e reconstruir essa época conturbada da viragem política, da Ditadura à Democracia em Cabo Verde.

Numa mistura entre a realidade e a ficção, Germano Almeida serve-se de diferentes figuras representativas do social, deslocadas para Lisboa, com o intuito de criticar e instaurar interrogações e ainda relatos de incertezas desse novo tempo Histórico que funciona como a abertura de um novo ciclo, sobretudo na vida do homem cabo-verdiano.

Assim Dona Pura é o símbolo da luta pela melhoria da sua situação económica; o administrador representa o conservadorismo e a mudança; Giovanni Garpini é o artista; Firmino, cabo-verdiano e assume a postura de verdadeiro assimilado residente em Portugal; Suzana, a filha mais velha de Dona Pura, é a personagem que questiona a sua identidade; Ana Rita também filha de Dona Pura; Ana II representa os valores da Independência e da liberdade feminina. Ela é o símbolo da mulher autónoma e autossuficiente; Ana III, viúva de um emigrante cabo-verdiano que morrera num acidente de trabalho em Londres; Natal, figura oportunista e contraditória nas suas posições políticas e Luís Varela, figura que problematiza e questiona o difícil papel que a História vai operar no embate ideológico da descolonização.

CAPÍTULO III – Personagens e figuração dos mundos textualizados

1. Sobre o conceito de personagem

Je disais, que les héros de roman naissent du mariage que le romancier contracte avec la réalité.

François Mauriac

Com base em alguns teóricos da literatura que estudam o conceito da personagem romanesca, pretende-se explicitar de que forma Germano Almeida constrói a figura da personagem no corpus selecionado, dando lugar a uma interpretação crítica e reflexiva da sociedade cabo-verdiana representada nos textos.

Não cabe no âmbito do nosso trabalho problematizar o conceito de personagem que, como se referiu, tem sido, ao longo dos tempos, objeto de reflexão de vários teóricos.

No entanto citam-se a título exemplificativo alguns que trataram de clarificar a funcionalidade o termo e as características que envolvem o seu conceito.

Conforme apontado por Maria de Lourdes Ferraz: “[...] na indefinição reside grande parte do interesse e do vigor da categoria de personagem [...], se são projecções do autor ou independentes criações suas; se têm autonomia ou não relativamente ao seu autor... se são funções estruturais ou entidades textuais.” (2002:13). Segundo Baruch Hochman

[...] quando personagens tomam forma nas nossas imaginações como totais, coerentes e consequentes criaturas que parecem análogas às pessoas que conhecemos na vida, a impressão da sua totalidade tende a residir não tanto nelas como são por si e em si, mas nelas como são geradas e sustentadas pelo texto como um todo. (1985:65).

No desenrolar do estudo do corpus, a personagem assume traços caracterizadores que refletem os objetivos do ficcionista em criar uma nova literatura virada à análise e crítica dos factos e com preocupações de mudança e de projeção para o futuro literário, conforme já dito.