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CAPÍTULO II – Elementos para a construção do corpus

3. Resumos das histórias

3.3. O Dia das Calças Roladas

O autor escreve na introdução ao livro O Dia das Calças Roladas que a história não é ficção uma vez que, como se referiu, se inspira nos acontecimentos ocorridos nos dias das calças roladas em Santo Antão.

Num tempo histórico em que a discussão do projeto da Lei de Bases da Reforma Agrária se operava em algumas zonas do Conselho da Ribeira Grande, o narrador escolhe, observa e analisa personagens relacionadas com vivências sociais, desse tempo de agitação e contestação ideológica e política do ilhéu dessa localidade da ilha.

Germano Almeida na qualidade de advogado e de personagem-narrador reconstitui os acontecimentos atribulados que tiveram lugar nos dias 30 e 31 de agosto de 1981, em Santo Antão.

Nessa perspetiva há uma voz que recomemora o passado histórico e outra voz que está implicada e é idêntica à do narrador que narra “[...] os dias das calças roladas” (DCR:13). Essa voz particulariza o desejo do povo de Santo Antão, em preservar a sua identidade social e cultural, manter esse passado mítico de conservação telúrica. O povo é reconstruído e reinventado como tradicional e rural com forte apego à terra e inconformista em relação à nova ordem estabelecida.

As personagens presentes produzem o efeito de representação de um motim popular que expressa especificamente um olhar coletivo face às diferentes realidades ideológicas da ilha de Santo Antão. Esse motim popular é recontado a partir das declarações prestadas durante a instrução do processo pelos réus e pelas testemunhas do “o dia das calças roladas”, no “o julgamento da Reforma Agrária” que envolve a ação do povo.

Nesses dias as populações de Ribeira Grande revoltaram-se contra o regime PAICV que queria impor essa lei à força. Uma população irada com o regime do partido único, organizou-se e manifestou-se na zona da Boca de Figueiral, viria a ser vítima de disparos de metralhadoras das forças armadas, ordenadas pelos dirigentes do PAICV que se fingem democratas, acabando por ceifar a vida de Adriano Santos.

Um grupo de populares contestatários é visto pelos diferentes agentes divulgadores da Reforma Agrária e Supremo Tribunal Militar como responsáveis pelos atritos que estiveram na origem do motim vivido e que puseram em causa uma organização política, instituída por “[...] dirigentes que andaram mais de 30 anos na luta, dirigentes que andaram com Cabral na luta” (DCR:16).

Nesse contexto, são abordados valores políticos, sociais e culturais que permitem no decorrer da narrativa, construir uma síntese de situações históricas em tempos descontínuos, mas que são marcas textuais em que figuram diretamente ou indiretamente dissidências de grupos sociais. Essas querelas obrigam o leitor a uma reflexão na articulação do discurso com aquilo que está fora do texto, o social e o político, suas transformações e ruturas na evolução da sociedade cabo-verdiana.

Nessa aproximação sociológica, as personagens em O Dia Das Calças Roladas constituem a representação mimética de um acontecimento real que resulta do entrecruzamento entre a História e a ficção, nas refigurações de tempos do passado colonial e as variantes imaginativas do discurso ficcional que ainda estão ligadas à ideologia dos intelectuais da Claridade e de Certeza, bem como as reações sociais às novas ideologias políticas e suas repercussões na sociedade cabo-verdiana da Pós- Independência.

É a personagem Bento que, por intermédio do seu relatório, foca o passado, o presente e o futuro revolucionário ocorrido em Santo Antão.

Bento narra os acontecimentos vividos no dia 30 de agosto de 1981 que tiveram origem no dia 29, na altura em que decorreu uma reunião do grupo do Partido e que no dia seguinte foram induzidos por José Rodrigues (Djô de Antoninho João) a atacar Cula, um elemento da JAAC/CV (Juventude Agrária Amilcar Cabral/Cabo Verde). “[...] que participou na reunião, dizendo que na casa da escola não era lugar para fazer reuniões e que quem quisesse fazer reunião que a fizesse em sua casa [...] (DCR:66), isto com ameaças de morte a todos aqueles que viessem a qualquer reunião em

Figueiral, visto que essa gentinha seria ameaçada, mesmo Bento que era o responsável político da zona e tinha que dar contas ao Partido.

O seu relatório descreve e regista os acontecimentos com marcas oralizantes e de crioulo. Bento foi também levado para uma sala e submetido a um interrogatório sobre as atividades do Partido. A sua casa foi revolvida e não tendo encontrado nada, obrigaram-no “[...] a entregar-lhes 10 munições de G-3 que tinha em casa.” (DCR:67). Em seguida, foi levado para Tope de Djack, “vasculharam a casa do Sr. Maninho, dum canto a outro, onde encontraram uma G3, a qual foi presa.” (DCR:68).

No desenrolar da subversão, várias personagens foram torturadas pelos militares. A personagem Camilo foi espancada, Teodoro foi torturado, Bibino, popular fez um comício no pátio da escola e procurou dizer que Cabo Verde não tem condições para a Reforma Agrária; João Fortes, Rufino Dias, funcionam também como oponentes face ao poder militar e ao PAICV (anteriormente PAIGC e fundador do projeto da Reforma Agrária).

Outras personagens vão-se manifestar no decorrer das tomadas de posição de Bento, em relação ao movimento de descontentamento popular. Alude-se ao grande desejo da parte de algumas figuras do povo, como Tua Miranda, que queria a todo o custo evitar a desmobilização do motim e via Bento como oponente em relação à defesa natural do povo de Santo Antão. Antoninho Gabanixa insultou Bento “Tu andas a esconder ladrões em tua casa, também és ladrão!” (DCR:72); Rufino de Tutá “Nós vamos picar-te!” (DCR:72) e Djô Gatinho “Tu és um cachorro e maltratador da nossa terra” (DCR:72). Esta última personagem espelha a defesa dos valores agrários independentes de ideologia política.

Do lado oposto, João Pipi protege (adjuvante) Bento da “massa enfurecida” e ainda a sua casa: [...] nós não viemos para espancar ninguém, não somos selvagens, queremos tratar dos nossos direitos [...]” (DCR:72). João Pipi que conseguiu acalmar a “massa enfurecida” do Figueiral.

Outros nomes são oponentes, Selaise, Armindo Cruz, Andelmo foram referidos e o subtenente Eduardo Correia “[...] foi agredido com um pau no braço e o agressor tentou desarmá-lo pelo que teve de dar dois tiros para o ar, mas acabou por atingir o agressor mortalmente.” (DCR:17); Nino, Augusto, responsável político dos Caibros;

Destaca-se entre todos a personagem Ovídio Martins, primeiro-secretário do Partido PAICV, em Santo Antão, (nos dias 29 e 30 de setembro de 1981) na rubrica Actualidades, subordinado à Reforma Agrária e ao julgamento no Tribunal Popular de Coculi que faz uma síntese dos acontecimentos ocorridos pelos dissidentes, o julgamento dos réus e a argumentação de que se serve o Tribunal para julgar os grupos de reacionários.

O Tribunal, durante o julgamento, assiste a um recontar de depoimentos dos réus que em si são contraditórios e não verdadeiros.