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A imagem do corpo como tampão da falta de significante do sujeito

No documento Imagem corporal: uma abordagem clínica (páginas 190-193)

A imagem do corpo na anorexia e bulimia

5.4.5 A imagem do corpo como tampão da falta de significante do sujeito

O sujeito histérico é por excelência uma falha, uma falta de significante representativo no Outro. Sendo assim, a imagem do corpo próprio pode ter uma importância máxima como tampão da falta de significante do sujeito. Ou seja, a imagem do corpo – o corpo emagrecido – pode funcionar como um significante que traduza para o outro a mensagem: “não estou grávida”, revelando a lógica da castração. Na histeria o sujeito se faz representar no campo do Outro pela imagem de seu corpo próprio, de tal forma que essa imagem e sua manipulação funcionam como uma mensagem ao Outro e, ao mesmo tempo, dependem da mensagem recebida do Outro. A imagem do corpo pode ter um valor significante, significante cifrado, limite de todas as figuras sociais, que implique uma imagem estandardizada. Mas a imagem do corpo pode também ter valor de objeto excrementício, quando o que se mostra é uma negligência provocadora dessa imagem (MILLER, 2008, p. 22).

Após a cena de desmoralização moral o namorado rompe o namoro com Bê, que ficou por três anos isolada em casa e somente no último ano iniciou um novo namoro com um rapaz pelo qual não se interessava muito, mas era quem tinha aceitado a sua perda de virgindade. Se na adolescência era o pai que a vigiava muito, agora era o namorado, que não a deixava fazer nada. Pontuo para Bê que ela atribuía o mesmo papel exercido antes pelo pai, agora ao namorado. Achava que o namorado estava com ela por temer a piora de sua depressão e suas reações imprevisíveis; por várias vezes havia tentando o autoextermínio com as medicações prescritas. Diz de seu desejo de morte por perceber que o namorado não a valoriza e a está fazendo de otária, fica com

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ela com medo de suas atitudes. Aqui, a analista destaca para Bê que ela reedita o romance familiar – o pai nunca rompeu o casamento, temendo as consequências da depressão da esposa. Nessa parceria amorosa, torna-se possível localizar que há um modo de satisfação pulsional que fazia perpetuar a depressão e as tentativas de autoextermínio, sua forma de manter-se enlaçada a esse namorado.

Durante seis anos Bê constrói uma série de sintomas na superfície do corpo, uma depressão grave, que não responde aos tratamentos ofertados pela medicina. Depois substitui a depressão por uma síndrome do pânico. Essas nomeações são insuficientes para construírem uma significação da cena traumática – exposição de sua imagem e a incidência do olhar de recriminação do outro. A saída sintomática será via uma anorexia grave, uma tentativa de manter o corpo extremamente magro. Era preciso manter o corpo magro para evitar qualquer suspeita de gravidez e o julgamento do outro.

Verifica-se, via transferência, a constituição do envelope formal do sintoma em três tempos: Primeiro – na infância, aos seis anos de idade – a frase proferida pelo pai, diante da eterna depressão materna – “sua mãe não serve para mais nada” – a remete à inexistência das relações sexuais entre os pais. Então, para evitar o sofrimento da mãe passa a vigiar o pai nos bares e pelas festas, a fim de impedi-lo de envolver-se com outras mulheres, que colocaria em risco o casamento de seus pais. Estabelece-se uma parceria sintomática entre filha e pai – Bê fixa um olhar vigilante sobre o pai.

Após algum tempo, Bê rompe o relacionamento com o namorado, mas as tentativas de novas parcerias amorosas repetem o encontro com rapazes com algum ponto de destituição fálica – desempregados, usuários de drogas. Bê enlaça-se a parceiros nos quais localiza a questão do erro, pois “quem nunca errou na vida”. Diante dessas escolhas amorosas o pai intervém com tirania e severidade, se opondo a esses relacionamentos. Ele busca transmitir para a filha um homem que tem o traço fálico ser

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operário, tal como ele. Ele só pode dizer sim para a filha se o objeto de escolha dela coincidir com ele próprio. O movimento de Bê se dá no sentido contrário, quer ficar com qualquer um que aceite sua perda da virgindade. A intervenção analítica é de possibilitar que o sujeito se interrogue sobre essas escolhas amorosas. Aos poucos, Bê irá se interrogar se é possível amar quando ainda não gosta de si mesma, se estaria pronta para gostar de alguém.

Então, Bê até os 15 anos de idade vigia o pai da aproximação de outras mulheres. Aos 19 anos em um momento de suspensão da interdição paterna tem o relacionamento sexual com o namorado, que culmina em sua desmoralização moral como a inimiga que deseja a destruição de um lar. Diante da passividade da mãe, que nem a defendia da tirania do pai e dos irmãos, encontra acolhimento em uma tia paterna, que quando jovem havia também sido vítima da tirania do irmão. Então, vai morar na casa da tia, não pretende voltar para a casa dos pais, só voltaria “morta ou casada”.

No segundo tempo: Bê tinha 15 anos de idade, o pai alcoolizado provoca um acidente automobilístico, diante da afirmação do médico de que o pai poderia ter matado o filho, que estava com ele no carro. Isso contribui para a cura do alcoolismo paterno, ele não frequenta mais os bares. Sendo assim, ocorre nesse momento uma inversão na posição de Bê: da menina que vigiava o pai, passa a ser vigiada, a ficar sob o olhar vigilante do pai.

Em um terceiro tempo da constituição sintomática: Bê é lançada numa situação de extrema angústia que parece perpetuar por seis anos sem possibilidades efetivas de simbolização. A incidência do olhar dos fiéis na igreja e a frase proferida pela pastora – “o inimigo queria destruir meu lar, mas não conseguiu” – a remete à pura angústia, impossibilidade de significação dessa cena; ela sentiu-se traída pela pastora e pelo namorado, que imediatamente depois a abandonou. A angústia se traduz no nível do

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corpo como um desânimo profundamente penoso, perde seu interesse pelo mundo externo, pelo trabalho, pelos amigos. Inscreve-se nesse terceiro tempo uma ampliação da dimensão do olhar do Outro. A passagem do olhar vigilante do pai para o olhar de todos os fiéis da igreja e depois de toda a cidade.

A desmoralização moral diante da sua família e de toda a cidade torna-se uma cena suspensa, que retorna como puro real, sem aparato significante. Por conseguinte, ocorre uma paralisação do sujeito, que gira entre dois extremos: da impossibilidade de significação, perplexidade do vazio, ao excesso de culpabilidade, se responsabilizava pela piora depressiva da mãe, a ruína moral da família, a impossibilidade de ser amada e conseguir um bom casamento.

No documento Imagem corporal: uma abordagem clínica (páginas 190-193)