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Anorexia: “Não se trata disso”

No documento Imagem corporal: uma abordagem clínica (páginas 147-154)

A clínica da imagem corporal: fenômeno e estrutura

4.2 Os transtornos alimentares

4.2.1 Anorexia: “Não se trata disso”

Nas discussões clínicas do NIAB, um dos pontos que cotidianamente retornava às discussões clínicas era sobre o estatuto da anorexia. Um dos norteadores para essa discussão passou a ser a questão introduzida por Roberto Assis Ferreira – “Não se trata disso?” Então, é preciso resgatar um pouco sobre as diferentes perspectivas de diagnóstico dos transtornos alimentares, sobretudo na clínica psicanalítica, para se definir do que se trata em cada caso. Ou seja, os sintomas da moda, por vezes, são roupagens sintomáticas que se apresentam em diferentes estruturas clínicas e que se articulam a formações sintomáticas que revelam o particular de cada caso.

Então, diante de cada novo caso a questão que norteia o trabalho do Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (NIAB) é a interrogação sobre o sentido singular, caso a caso, de cada paciente encaminhado como anoréxico ou bulímico. Diante, de cada sujeito torna-se necessário reintroduzir a questão: “Não se trata disso?”, que possibilitará avaliar cada caso para além da semiologia médica e psiquiátrica. É na investigação das causalidades e consequências do que se apresenta sob a vestimenta de

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transtornos alimentares – anorexias e bulimias – que se introduz a psicanálise como terceiro elemento do tripé de sustentação das estratégias clínicas possíveis. A questão – “Não se trata disso” – torna-se articuladora entre os três campos: medicina, psiquiatria e psicanálise.

A clínica da anorexia e bulimia convoca a intervenção da medicina e da psiquiatria sobre esses corpos que desafiam sua condição de mortal. Nesse sentido, na abordagem clínica desses casos a psicanálise tem sido o eixo de articulação entre os campos de intervenções necessárias sobre esse corpo que não é só puro organismo, mas que em sua superfície inscreve as perturbações nascidas no campo da palavra e da linguagem. A medicina, em sua premissa fundamental, tenta sustentar a vida desses seres que desfilam em seus corpos o risco de morte. A aposta é de que a intervenção psicanalítica produza um reposicionamento desses pacientes a partir da reinvenção de um novo sintoma.

Para a psicanálise a anorexia e bulimia se inscrevem como novas formas sintomáticas, que com frequência inscrevem na superfície do corpo as interrogações do sujeito nesse século. A anorexia pode pertencer a uma das três clássicas estruturas: neurose, perversão ou psicose. Esses sujeitos são marcados por uma certeza – comer o “nada” – que demonstra uma decisão incompreensível para aqueles que desconhecem o valor do ser.

Na perspectiva, da psiquiatria descritiva, a característica essencial da anorexia é a recusa do paciente em manter um peso corporal na faixa normal mínima, associada a um temor intenso de ganhar peso. Uma perturbação significativa na percepção do esquema corporal, ou seja, da autopercepção da forma e/ou do tamanho do corpo. Considera-se como um dos critérios diagnósticos da CID-10 – Classificação Internacional de Doenças — para a anorexia nervosa a presença da distorção da imagem

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corporal. O pavor de engordar persiste como uma ideia intrusiva e supervalorizada, e o paciente impõe um baixo limiar de peso a si próprio. Ocorre um transtorno endócrino generalizado, envolvendo o eixo hipotalâmico-hipofisário-gonadal, manifestando-se como amenorreia, nas mulheres, e perda de interesse e de potencia sexual, nos homens. O DSM-IV acrescenta uma subdivisão da anorexia em restritiva, quando o paciente não recorre a comportamentos de ingestão compulsiva ou purgativa. E, anorexia purgativa, quando o paciente apresenta ingestão compulsiva, seguida por métodos purgativos.

Os pacientes que chegam ao NIAB já possuem uma nomeação do sintoma dentro de um sistema simbólico determinado. Em termos semiológicos, as anoréxicas não exigem uma habilidade semiotécnica acurada, uma observação minuciosa, atenta e perspicaz, pois ao desfilarem pelos corredores do ambulatório seus corpos desvanecidos, pálidos, emagrecidos traduzem e formulam, por si só, um diagnóstico: anorexia. Aqui, a ênfase nesses casos deve ser deslocada da erupção de um corpo em situação de risco orgânico para o que em semiologia se define como semiogênese, investigação da origem, dos mecanismos, do significado e do valor diagnóstico e clínico dos sinais e sintomas.

Evidentemente, o campo de investigação “anorexia” exige uma habilidade sutil da equipe de tratamento, pois estamos diante de um paradoxo extremo, um corpo orgânico, em situação de risco, que do ponto de vista da medicina deve ser mensurado, equilibrado, recuperado. Mas, por outro lado, a ênfase da intervenção terapêutica deve se deslocar desse corpo anoréxico para a gênese singular de cada caso. Nesse sentido, elege-se, aqui, o resgate da tradição clínica, da investigação das causalidades para além do puro organismo como condição preliminar ao tratamento. Visto que, ao se delimitar uma síndrome – anorexia –, não se trata ainda da definição e da identificação das causas específicas da natureza essencial do processo patológico.

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Nesse momento propõe-se a seguinte questão: Qual a finalidade do diagnóstico? Pode se formular tal pergunta considerando cada um dos eixos que se articulam nos casos em que a questão fundamental é a psicopatologia da imagem corporal? Ou seja, deve-se estabelecer um diagnóstico em cada campo, na medicina e na psiquiatria, e a proposta que se faz é de que a psicanálise seja não só um dos pontos do tripé, mas eixo de articulação entre eles. Define-se um diagnóstico médico em relação ao qual é preciso quantificar, dosar, intervir, mas de forma estratégica, sem colocar em evidência a importância dessa quantificação do corpo. No campo psiquiátrico deve-se definir o diagnóstico nosológico: noso, do grego, cujo significado é “doença”. Pode seguir o modelo categorial, no qual as doenças se distinguem entre si, e o dimensional, que estabelece o continuum entre saúde e doença, a diferença entre ambas seria quantitativa.

Por exemplo, o caso de Bê, uma jovem anoréxica, é demonstrativo da convergência da problemática clínica que deve se sustentar no tripé – medicina, psiquiatria e psicanálise –, sendo que a psicanálise se torna uma pragmática que permite a articulação entre medicina e psiquiatria clássica. Há uma percepção pelo próprio sujeito de que a abordagem estritamente orgânica de seu sofrimento, a intervenção que se restringe ao corpo como organismo, não é eficaz como terapêutica. Bê é acolhida no NIAB/HC/UFMG sem desconsiderar a rigorosa abordagem clínica que casos de anorexia com grave comprometimento nutricional exigem, mas o foco se desvia do corpo para o sujeito. Será via transferência que Bê pode tratar os fenômenos da imagem do corpo, na perspectiva de seu sofrimento subjetivo, o que se revela é o sentido de seus sintomas.

A intervenção médica adquire um valor que se inscreve na vida subjetiva. Evidencia-se, aqui, que a ciência não sabe como o sujeito vai se conectar a esses objetos – tal como os exames de imagem, as dosagens eletrolíticas e os níveis séricos dos íons

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(cálcio, potássio, sódio, magnésio, dentre outros). Por exemplo, uma das grandes preocupações do ponto de vista médico é com a tendência a redução dos níveis de potássio, devido ao excesso de uso de diuréticos e pela provocação de vômitos. Então, de forma surpreendente a dosagem de potássio se inscreve como um objeto ao qual o sujeito se conecta, e em torno do qual gira toda a dinâmica da satisfação pulsional. Ao abordarmos cada caso como único é imprescindível estarmos atentos aos efeitos das intervenções médicas sobre o corpo. O ato de medicar deve se articular ao sentido do sintoma de cada sujeito.

4.2.2 A anorexia

Do ponto de vista da psiquiatria a anorexia é definida no campo da conação, que se define como o conjunto de atividades psíquicas direcionadas para a ação. Incluem-se dentre as funções conativas os impulsos e a vontade. O impulso é definido como estado motivacional, vivência afetiva, um estado interno que induz o indivíduo a atuar no sentido de satisfazer uma necessidade, basicamente uma necessidade corporal. A vontade é uma elaboração cognitiva realizada a partir dos impulsos, sendo influenciada por fatores intelectivos e socioculturais (CHENIAUX, 2008).

A perda do apetite (anorexia) é uma alteração da diminuição da atividade conativa, tal como a redução da sede e da libido, além da insônia, que representam uma redução das tendências naturais à satisfação das necessidades corporais. Dentre os quadros de aumento da atividade conativa, verificam-se, as intensificações de impulsos específicos, como a bulimia, a hipersonia (CHENIAUX, 2008).

A anorexia é, também, observada na depressão, na anorexia nervosa, em alguns quadros de ansiedade e em condições médicas gerais. É importante distinguir a anorexia da sitiofobia, que é a recusa alimentar proveniente de manifestações fóbicas ou

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delirantes, não havendo uma real redução do apetite. Por sua vez, a bulimia (ou sitiomania, ou sitiofilia) consiste num aumento patológico do apetite. Pode ocorrer em quadros de ansiedade, casos de depressão, distúrbios hipotalâmicos, na síndrome de abstinência relacionada à anfetamina, no transtorno disfórico pré-menstrual (CHENIAUX, 2008).

Na anorexia nervosa, além da perda de apetite, que inicialmente pode estar ausente, encontra-se uma perda de peso autoinduzida, através de dietas, exercícios físicos, vômitos provocados, uso de anorexígenos. Associada à indução de perda de peso, tem-se a distorção de autoimagem e os distúrbios endócrinos, como a amenorreia. Por sua vez, na bulimia nervosa, o comportamento alimentar é impulsivo, enquanto na obesidade hiperfágica predominam os atos compulsivos.

4.2.3 A bulimia

Os ataques de hiperingestão da bulimia nervosa, que se caracterizam pelo comportamento de comer rapidamente uma grande quantidade de alimentos e, principalmente, pela sensação de perda de controle sobre a ingestão, podem ter as características de um ato impulsivo, em que ocorre a passagem direta da intenção para a ação (CHENIAUX, 2008).

Segundo os Critérios Diagnósticos do DSM-IV, a bulimia nervosa (BN) é um transtorno alimentar em que a pessoa afetada ingere grandes quantidades de alimentos (episódios bulímicos) e depois elimina o excesso de calorias através de jejuns prolongados, vômitos autoinduzidos, uso de diuréticos, de laxantes ou de enemas, e da prática exagerada de exercícios físicos. Algumas pessoas utilizam todas essas maneiras de compensação dos episódios bulímicos. Em geral, inicia-se na adolescência ou no princípio da vida adulta, sendo 18 anos a idade média. Habitualmente, os pacientes

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mantêm o peso normal, mas devido à tendência à cronicidade do transtorno acabam aumentando de peso pela intensidade crescente dos episódios de descontrole alimentar.

No diagnóstico de bulimia nervosa, O DSM-IV considera os seguintes critérios: - episódios recorrentes de comer compulsivo, caracterizado pela ingestão de uma

quantidade de comida superior à que normalmente seria consumida em certo espaço de tempo, e sensação de falta de controle sobre o comportamento alimentar.

- comportamentos compensatórios inadequados e recorrentes, de modo a evitar o aumento de peso, tais como vômitos autoprovocados, uso inapropriado de laxantes, diuréticos, jejum e exercício físico.

- os episódios de ingestão compulsiva ocorrem, em média, pelo menos duas vezes por semana durante três meses.

- a avaliação de si próprio é exageradamente influenciada pela forma do corpo e pelo seu peso.

- o quadro não ocorre exclusivamente durante episódios de anorexia nervosa. O DSM-IV orienta a especificação do tipo de bulimia nervosa, em:

- purgativo: durante o episódio de bulimia nervosa, o indivíduo recorre regularmente a vômitos autoprovocados e ao uso de laxantes.

- não purgativo: durante o episódio de bulimia nervosa, o indivíduo usa outros componentes inadequados, como jejum ou exercício físico, não recorrendo regularmente a vômitos ou laxantes.

Definem-se como Critérios diagnósticos da CID-10 para a bulimia nervosa: - preocupação persistente com o comer e desejo irresistível por comida. O paciente sucumbe aos episódios de hiperfagia, nos quais grandes quantidades de alimento são consumidas em curtos períodos de tempo.

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- O paciente tenta neutralizar os “efeitos” de engordar dos alimentos através de um ou mais dos critérios que se seguem: vômitos autoinduzidos, abuso de purgativos, períodos alternados de inanição e uso de drogas, tais como anorexígenos, hormônios tireoidianos ou diuréticos.

- Pavor mórbido de engordar, com a colocação para si mesmo de um limiar de peso nitidamente definido bem abaixo de seu peso pré-morbido, que constitui o peso ótimo ou saudável na opinião do médico. Há frequentemente episódios prévios de anorexia.

Em suma: Certamente os pacientes que apresentam como vestimenta sintomática o sofrimento que se manifesta no corpo como anorexias e/ou bulimias desfilam em seus corpos tênues ou transbordantes a problemática da pulsão de vida e da pulsão de morte. Sujeitos marcados pelos efeitos significantes que vivificam ou mortificam o corpo.

No documento Imagem corporal: uma abordagem clínica (páginas 147-154)