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O caso Ismênio

No documento Imagem corporal: uma abordagem clínica (páginas 197-200)

A imagem do corpo na anorexia e bulimia

5.5 O caso Ismênio

Ismênio é um nome fictício, de origem grega, que significa aquele que é desejado. Escolhido em contraponto à posição subjetiva de um sujeito que não foi desejado pela mãe e que tal como veremos na construção do caso, esse “não desejo” define as possibilidades do que se constitui ou não como Outro materno.

Em “Histórico e preliminares da questão da imagem corporal”, discutimos o que é a morte significante. O caso de Ismênio nos permite ilustrar clinicamente essa questão. Trata-se de um sujeito adolescente às voltas com o fator desarmônico do superego. A

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dificuldade de efetuar a passagem do corpo infantil ao corpo adolescente inscreve um imperativo superegoico que se traduz em uma pergunta dirigida à mãe – se comer, vai alterar (o corpo)? Na adolescência o sujeito tem que consentir com o que Lacan elabora como segunda morte – a morte significante, a face do desaparecimento. Será a segunda morte que irá permitir a entrada do significante unário na cadeia significante, termo através do qual é possível denominar o sujeito, nomeá-lo como único. Será esse “único o que o significante converte do ser, a despeito de todas as transformações do vivo para fazer disto um absoluto” (MILLER, 2004, p. 25). No caso de Ismênio, o significante cumpre uma eternização, algo não funciona nesse momento – não há a possibilidade de o sujeito se inscrever na cadeia significante em sua função de eternização do sujeito em sua unicidade.

Nesse sentido há duas faces do sujeito, a face do desaparecimento e a face que se identifica à segunda morte – a morte significante. Para reunir os termos da face denominada como morte significante, Lacan introduz o termo significante único como sujeito do significante da segunda morte. Esse único é o que o significante converte do ser. No caso de Ismênio a impossibilidade da morte significante paralisa o sujeito no imperativo superegoico da repetição: “se comer... vai alterar o corpo?”

Ismênio tem 19 anos de idade, foi encaminhado ao Setor de Urgência do hospital psiquiátrico, proveniente de uma cidade distante 700 km, devido à persistência de bulimia que iniciou há mais ou menos cinco anos. O psiquiatra da urgência o medicou com clorpromazina, medicação neuroléptica, que na dose utilizada tem efeito antiemético. Após essa primeira avaliação foi encaminhado para tratamento no NIAB – Núcleo de Anorexia e Bulimia/HC/UFMG, onde foi acolhido inicialmente pela clínica médica, realizado exames de rotina e solicitado acompanhamento psiquiátrico. O caso de Ismênio nos demonstra a exigência do retorno de uma satisfação primária e, então, a

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exigência de um gozo. A doutrina do superego se centra sobre o fator desarmônico (MILLER, 2004, p. 24).

Na primeira avaliação Ismênio diz que prefere viajar muitos quilômetros e tentar encontrar o tratamento correto para sua doença. Diz ter muitas manias, assim a descreve: “como alguma coisa”, pergunto para minha mãe: – “vai engordar?” – “vai alterar o peso?” e a mãe tem que responder certinho: – “não vai alterar nada”. Ismênio relata que se as coisas acontecem nessa sequência ele fica muito nervoso, “algo acontece na cabeça dele”, tem vontade de chorar, de gritar. Iniciou o uso do neuroléptico, pois percebe que a medicação o está ajudando. Sabe que precisa de uma medicação, pois “tem alguma coisa mandando na sua cabeça”, mandando que ele pergunte se seu corpo vai alterar. Quer comer, mas fica com medo. O negócio de perguntar várias vezes o incomoda, não para de perguntar sobre todos os alimentos que come. Sacrifica a mãe mesmo sem querer. Achou bom o remédio que está usando, pois pelo menos diminui os vômitos repetidos, pois se come, teme que o alimento altere o corpo, então vomita.

Ismênio diz que sua bulimia – “vômitos repetidos após comer muito” – começou quando tinha 15 anos de idade. Ele foi a uma lanchonete comer um sanduíche com a mãe e ao voltar para casa notou que espontaneamente o alimento retornou um pouco para a boca, vomitou, aí não conseguiu parar mais de comer e vomitar. Estava acima do peso, 1 metro e 80 cm e 80 kg, agora pesa 45. Só consegue comer se fizer muitas horas de exercício físico. Para Ismênio, há “alguma coisa mandando na sua cabeça, mandando que ele pergunte se seu corpo vai alterar”.

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conseguir comer coisas leves. Diz que está menos ansioso e às vezes consegue não perguntar se o corpo vai alterar. Medo de comer, medo de beber água, se acha viciado em vomitar, tinha que esvaziar tudo que comia do corpo. Quando tinha 15 anos descobriu que se vomitasse emagreceria rápido. Viu que os colegas mais magros corriam mais, jogavam mais bola e tinham o corpo melhor, mais bonito. Os colegas deram-lhe o apelido “Tetinha”. A direção do tratamento permitirá localizar, a partir desse significante, o desencadeamento psicótico, como veremos a seguir.

Em resposta ao apelido “Tetinha” o sujeito não se reconhece no espelho, o corpo se transforma em “uma mulher”? A bulimia é uma tentativa de manter o corpo infantil inalterado, e para isso é preciso que a mãe certifique, afirme como garantia, que o corpo não vai alterar. É como se Ismênio não pudesse ter o corpo, o órgão grande que é exposto, visto pelo olhar invasivo da mãe, que não se colocou como objeto de desejo de um homem que operasse a interdição de que uma mãe não tome o filho como puro objeto de gozo.

5.5.1 A imagem e o corpo próprio

Sabe-se que o suporte fundamental da imagem é a ação do Nome-do-pai. A consistência da realidade perceptiva, que nos permite ficar em nosso lugar e perceber os semelhantes em seus lugares é fundamentada no Nome-do-pai. As perturbações perceptivas nas psicoses são um contraexemplo. Tal como em Schreber, vemos que quando sua libido se retira do mundo a imagem dos outros se deslibidiniza e ele percebe tão somente “sombras de homens”. Quando a libido invade a imagem, vemos nele seu extremo gozo narcísico e ao contrário, quando a carga libidinal do objeto a se retira temos um mundo povoado de sombras. Após experimentarmos a retirada da libido das imagens dos outros, observamos a concentração da libido na imagem do corpo próprio.

No documento Imagem corporal: uma abordagem clínica (páginas 197-200)