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A imagem-percepção

No documento RAFAEL WAGNER DOS SANTOS COSTA (páginas 41-43)

2.2 AS TRÍADES NA IMAGEM-MOVIMENTO

2.2.6 A imagem-percepção

Propositalmente, dentre as imagens-movimento, a referência à imagem-percepção foi deixada por último, visto que é neste tipo de imagem que reside, talvez, a mais interessante ressalva de Deleuze em relação a Peirce, no que tange ao cinema do movimento. Tal perspectiva nos possibilita pensar na existência concreta de um tipo de imagem que compreende aspectos que não podem ser satisfatoriamente elucidados por nenhuma das categorias faneroscópicas de Peirce, suscitando a instauração de uma condição ontológica que antecederia a primeiridade: uma espécie de “zeroidade”. “A imagem-percepção será pois como um grau zero na dedução que se opera em função da imagem-movimento: haverá uma ‘zeroidade’ antes da primeiridade de Peirce” (DELEUZE, 2007, p. 45).

Para tanto, é importante desenvolver um breve esboço da teoria semiótica da percepção de Peirce, a fim de evidenciar propriamente a diferença introduzida por Deleuze. Quando falamos em percepção, estamos no domínio da secundidade, pois é aquilo que se apresenta, o que é percebido, que está aqui no momento presente. Pierce (2005) diz que todo pensamento lógico tem sua entrada na percepção e saída na ação deliberada (secundidade). Perceber, então, é estar diante de algo que se apresenta, não somente utilizando a visão, mas fazendo uso dos outros órgãos sensoriais humanos a fim de estimular o sistema cognitivo. Contudo, Pierce também concorda com o pensamento deleuzeano de que não conseguimos apreender tudo, mas somente parte. Daí, podemos dizer que perceber é selecionar parte do que se coloca diante de nós.

Em sua teoria, Peirce estabelece que a percepção se efetua na tríade: percepto, percipuum e juízo perceptivo ou julgamento de percepção. Quando algo se apresenta, independentemente da nossa vontade, e se faz percebido, afirmamos que estamos diante de um percepto, termo designado para referir um objeto percebido, seja esse objeto físico ou não. Pierce assinala que o percepto força-se sobre nosso conhecimento, é externo a nós, independe de nossa mente, é algo que não podemos dispensar e que tem realidade própria no mundo. “Não obstante sua primitividade aparente, todo percepto é o produto de processos mentais, ou, de todo modo, de processos que são mentais para todos os intentos e propósitos” (CP 7.624)

Por sua vez, o percipuum corresponderia ao lado mental do percepto, sendo uma tradução deste, de acordo com os nossos órgãos sensoriais. É o modo pelo qual o percepto se

conforma e se adapta às condições mentais. Dessa forma, “o percipuum já seria o percepto tal como ele se apresenta no julgamento de percepção” (SANTAELLA, 1998, p. 59). O termo julgamento de percepção, que encerra a composição triádica do processo perceptivo peirceano, consiste no modo como recebemos o percepto. É ele que vai dizer o que estamos interpretando.

Nada podemos saber sobre o percepto a não ser pelo testemunho do julgamento de percepção, exceto o fato de que nós sentimos o golpe do percepto, a reação dele contra nós, assim como vemos os conteúdos dele arranjados num objeto, na sua totalidade, – excetuando-se também, certamente, o que os psicólogos são capazes de extrair inferencialmente. Mas, no momento em que fixamos nossa mente sobre ele e pensamos sobre o menor detalhe dele, é o julgamento perceptivo que nos diz o que nós assim percebemos. Por esta e outras razões proponho considerar o percepto, tal como ele é imediatamente interpretado no julgamento de percepção, sob o nome de percipuum (CP 7.643).

Na lógica da semiose, o percepto seria como um objeto dinâmico. O percipuum corresponderia ao objeto imediato, pois é a mediação entre o percepto e o julgamento de percepção. O julgamento de percepção, por sua vez, funcionaria como um signo-interpretante do processo perceptivo, conforme explica Lúcia Santaella (1998, p. 63):

o que ocorre no processo perceptivo é uma ação sígnica. Então, se o percepto é aquilo que está fora e se apresenta aos sentidos, sendo apreendido pela mente , ele só pode estar funcionando semioticamente como objeto dinâmico. Ora, se o objeto dinâmico da percepção é o percepto, deve logicamente haver, dentro do signo, um objeto imediato, que funcione como mediação entre o percepto, que está fora, e o signo, que está dentro, e que, no caso, só pode ser o julgamento de percepção. Pois bem, a postulação do percipuum, dada por Pierce ele mesmo, veio introduzir o elemento que faltava, confirmando a ideia de que o percipuum seria exatamente o elemento que funcionaria como objeto imediato.

Diante disso, observamos que a teoria da percepção em Peirce é desenvolvida entre o objeto dinâmico (percepto) e o objeto imediato (percipuum). Contudo, Deleuze, ao conceber a imagem-percepção, assinala que ela congrega uma relação que antecede um primeiro. “É como se ela estivesse fora de todo um processo de apreensão, antes até mesmo de um afecto” (SILVA; COSTA, 2010, p. 180). Se Deleuze conclui que a imagem-percepção seria algo anterior a uma afecto, fica claro que ele possui um entendimento da percepção diverso do de Peirce. É justamente essa concepção de Deleuze, altamente influenciada, nesse momento, pelo pensamento bergsoniano da imagem, que ratifica e estatui a imagem-percepção como uma espécie de “zeroidade”, que seria o virtual da fenomenologia. Assim, “a zeroidade, portanto, constitui-se na obra deleuzeana como a condição de imanência a partir da qual Peirce poderia ser revisitado criticamente” (SILVA; COSTA, 2010, p. 181).

Observamos então o procedimento de Deleuze: promove uma conjunção entre o mundo imagético bergsoniano e a fenomenologia peirceana. Esta confluência lhe permitiu propor uma zeridade, uma pura matéria difusa, vazio do tempo e do espaço, mistura caótica que a tudo antecede. O aparecimento do intervalo é que vai acarretar a formação de uma primeiridade, passo inicial para a vida; numa instância ulterior, o surgimento de cada passo evolutivo nada mais é do que o intervalo entre ação e reação (SALES, 2004, p. 13).

Sales (2004) aponta que nas faces do intervalo encontram-se as pontas do esquema sensório-motor: percepção e ação. Assim, a primeiridade (afecção) é, então, o elo entre “zeroidade” (percepção) e secundidade (ação). Portanto, conforme Sales (2004, p. 11-12), “a zeridade fará referência àquilo que vem antes da primeiridade, e dirá respeito ao puro caos, labirinto todo confuso e enredado em que as imagens agem e reagem incessantemente umas sobre as outras, espécie de grau zero das imagens”.

Silva (2007, p. 153) comenta que a “zeroidade” consistiria no conceito-limite que expressa a própria matéria não linguisticamente formada. Daí “a necessidade de se pensar uma categoria que expresse o movimento que parte do plano de imanência em direção às suas atualizações”. Assim, a “zeroidade” incidiria “naquela espécie de fenômeno pré-individual, singular, paradoxal que habita o plano de imanência e cujas ações vão produzindo, por agenciamentos maquínicos do desejo e coletivos de enunciação, corpos e linguagens, que se apoderam dessa matéria” (SILVA, 2007, p. 153).

Deleuze (2004) avalia que a imagem-percepção dobra-se em reflexão como em um espelho retardado, apresentando sua face desacelerada (a imagem-ação), e dobra-se sobre si mesma, buscando uma imagem-afecção. O diretor Samuel Beckett ao realizar Film (1965), considerado um filme síntese da imagem-percepção, consegue nos transmitir, por meio de longos planos conjuntos, o sentido da zeroidade.

No documento RAFAEL WAGNER DOS SANTOS COSTA (páginas 41-43)