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O agente provocador (da fabulação)

No documento RAFAEL WAGNER DOS SANTOS COSTA (páginas 96-100)

5.1 ENSAIO 1: IRACEMA, UMA TRANSA AMAZÔNICA E A IMAGEM-DOCUMENTO

5.1.2 Figuras para se pensar a imagem-documento em Iracema, uma transa

5.1.2.2 O agente provocador (da fabulação)

Com o intuito de permitir que os personagens ficcionem suas próprias vidas e se inventem diante da câmera, produzindo imagens de fabulação, os diretores do filme fazem uso de um elemento (agente) provocador, encarnado pela atuação do personagem Tião Brasil Grande, interpretado pelo ator Paulo César Pereio. “O gesto programado – e conduzido pelo ator Paulo César Pereio - defronta com uma resposta do habitante local que vale como dado imanente ao mundo de referência que estava lá em sua vida própria e que o filme veio a provocar” (XAVIER, 2004, p. 76).

Com efeito, o filme mostra os dois polos dramáticos de interpretação que envolvem os dois protagonistas e que os levam para direções contrárias. Tião Brasil Grande é o agente provocador, representa o meio de aproximação, o agente cinematográfico, o responsável pela interação entre a equipe de filmagem e os habitantes locais. “O motorista de caminhão feito por Paulo César Pereio nada tem que ver com as demais figuras que povoam a fita. Como homem da cidade, contrasta com os habitantes da mata” (RAMOS in LABAKI, 1998, p. 101). Iracema, por sua vez, representa a outra ponta – a dos habitantes da Amazônia. É o que a equipe de filmagem procura; constitui o florescer do comportamento visado por eles. E é justamente esse encontro que compõe a fronteira a ser filmada.

Ele é o simulador (desenvolvido) que domina a representação e sabe que seu papel é citar Tião Brasil Grande e, ao mesmo tempo, mostrar-se Pereio. Ela é a atriz que procura interpretar seu papel (de moça Iracema), mas não consegue dominar a representação e vê seu trabalho desajeitado converter-se em uma citação de si mesma, de sua condição real de origem, enquanto tenta ser a personagem (XAVIER, 2004, p. 83).

A cena que segue (figura 06) assinala o primeiro contato entre os personagens de Tião Brasil Grande e a menina Iracema no filme. É também o encontro entre ator profissional e atriz amadora. “Pereio é o ator que conduz Edna de Cássia para dentro do espaço da representação” (XAVIER, 2004, p. 84). Na cena, Tião Brasil Grande é o agente provocador (designação do signo) da ação (fabuladora) de Iracema, que se torna falsa ao se inventar prostituta.

Figura 06 – Tião e Iracema

Fonte: IRACEMA... (1974)

“Tião: Quantos anos você tem? Iracema: Vinte e um.

Tião: (risos)

Iracema: O que tu tá rindo? Tião: Você nasceu aqui mesmo? Iracema: Nasci.

Tião: Tô rindo porque é mentira sua. Iracema: Mentira por quê? Como tu sabes?

Tião: Mentirosa (pausa). Mas qual é a tua idade mesmo? Iracema: Quinze anos.

Tião: Eu sabia.

Iracema: Sabia por quê? Tião: Porque você é burra. Iracema: Burra por quê?

Tião: Porque ninguém acende cigarro no fósforo dos outros. Ninguém pergunta se alguém tem o corpo fechado” (IRACEMA, 1974).

A personagem Iracema, interpretada por Edna de Cássia, se prostitui ao longo da enunciação fílmica. Ora, essa não é a história de Edna. No real vivido, ela é uma menina amazônica com poucas perspectivas, como a maioria de sua idade naquela região. No filme, ela intenta se inventar prostituta, buscando elementos e atitudes das quais a atriz Edna de Cássia acredita pertencer àquele universo, como observamos na sua fala em outra cena (figura 07) do filme, perto do final, onde Iracema conversa com uma costureira e diz que não pode levar outro tipo de vida, senão aquele.

Figura 07 – Iracema e Costureira

Fonte: IRACEMA... (1974)

“Iracema: É porque Deus não quis que eu fosse costureira. A minha sina é outra, é correr mundo, andar por ai sem rumo. Nada entra na minha cabeça. Esse negócio de costura e bordado, eu não sei fazer nada disso, só sei correr mundo. Não, acho que isso não vai dar pra mim não” (IRACEMA, 1974).

Mais adiante, por volta da metade do filme, há uma cena que mostra a conversa entre Iracema e uma moradora local, que interpreta uma dona de casa, mãe de vários filhos, que vive à beira da estrada. A moradora conversa sobre a ocupação de terras e pede carona a Iracema. A senhora, ao contrário de Iracema, assume um papel que pode ser o mesmo que desempenha em sua vida real (figuras 08), semelhante ao que acontece com a maioria dos personagens no decorrer do filme.

Figura 08 – Iracema e Moradora local

Fonte: IRACEMA... (1974)

“Moradora: Aqui é uma desgraceira de terra. Aqui dá até dinheiro esse negócio de ‘tiração’ de madeira, sabe, dá dinheiro mesmo. Mas acontece que é uma cachorrada danada. Porque aqui, eu não sei se a senhora tá por dentro desse

negócio, a gente só pode fazer qualquer transação com esse negócio de terra, quem tem título, sabe, e aqui ninguém entende nada. Ninguém aqui sabe quem é o dono dessas porcarias. Essa gente daqui é uma gente muito desgraçada, sabe, quanto mais eles têm mais eles querem” (IRACEMA, 1974).

Todavia, a referida cena apresenta uma variação em comparação com as demais. Agora é Iracema quem vai conduzir o diálogo entre os personagens. Não é mais dada somente a intenção a estes, como ocorre na primeira cena, e nem é mais Tião Brasil Grande o agente provocador. Dessa vez, excepcionalmente, é Iracema (figura 09) quem vai instigar a ação da personagem e conduzir o jogo, atuando como agente provocadora da cena, papel que na maior parte do filme cabe ao personagem Tião Brasil Grande. Iracema, além da função de representar uma prostituta infantil na Amazônia e de se inventar enquanto atriz, assume agora também a tarefa de ser o agente provocador na cena.

Figura 09 – Iracema instigando Moradora

Fonte: IRACEMA... (1974)

“Iracema: E vocês têm muito tempo aqui? (pausa) E aqui é melhor do que lá onde vocês moravam? Por quê? Não tem serviço? Não tem nada?” (IRACEMA, 1974).

Portanto, diferentemente da primeira figura analisada, agora não é dada somente uma intenção por parte do diretor, a designação do signo (cinematográfico) é compreendida pelo ato de provocação efetuado pelos personagens de Tião Brasil Grande e por Iracema (nesta última cena), que incitam os personagens a ficcionarem suas próprias realidades. Ao instigar os moradores, tanto Tião (hegemonicamente), quanto Iracema (minoritariamente) comandam o jogo entre a equipe de filmagem (que não está na cena) e os habitantes locais, extraindo deles suas verdades ao permitir que fabulem suas próprias realidades. É nesse momento que os personagens tornam-se outros, ao fabularem suas próprias vivências.

No documento RAFAEL WAGNER DOS SANTOS COSTA (páginas 96-100)