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A fabulação (o personagem que fabula)

No documento RAFAEL WAGNER DOS SANTOS COSTA (páginas 92-96)

5.1 ENSAIO 1: IRACEMA, UMA TRANSA AMAZÔNICA E A IMAGEM-DOCUMENTO

5.1.2 Figuras para se pensar a imagem-documento em Iracema, uma transa

5.1.2.1 A fabulação (o personagem que fabula)

O início do filme mostra o personagem de um agricultor do interior que vai vender seu açaí para um comerciante ribeirinho, realizando, posteriormente, a troca do açaí por bebidas e dinheiro, algo costumeiro na região. O comprador, ao interpretar a si mesmo, engendra uma atuação em que aparenta ser generoso, dando ao agricultor mais garrafas do que o combinado e ainda deixando-lhe o troco. Na cena, devemos atentar para a semiose que se desenvolve internamente. Assim, no fotograma da figura 04, assinalamos que o quali-signo peirceano se

instaura a partir de todo um aparato cenográfico presente na tomada. Tais elementos cenográficos como a iluminação natural (escura), a captação da câmera, a locação na casa de palafita, as garrafas de bebidas usadas na cena constituem os aspectos da matéria fílmica que compõem o signo cinematográfico.

Figura 04 – Encontro dos personagens

Fonte: IRACEMA... (1974)

Em seguida, a cena mostra (figura 05) a efetivação da troca do açaí por mercadorias (bebidas e dinheiro). Nesse momento, é dada somente a intenção aos atores (pessoas comuns) por parte do diretor, constituindo a designação do signo (cinematográfico). Presenciamos, então, uma força que age e reage sobre os personagens, suscitando uma ação típica do cinema do movimento. Dessa forma, temos uma imagem-ação da qual os personagens do ribeirinho e do comerciante agem e reagem diante da situação da venda. Entretanto, ao utilizar pessoas reais da Amazônia, ficcionando suas próprias vidas, a cena transcende seu aspecto de estabelecer indícios sobre o mundo vivido, agindo e intervindo nesse vivido, provocando, assim, uma imagem de fabulação.

Figura 05 – Troca de mercadorias

Fonte: IRACEMA... (1974)

“– Cinco paneiros com açaí (pausa). Oito e oito, dezesseis. Sessenta e quatro cruzeiros (pausa). Olha a sua cachaça!

– Só quero duas.

– Não, leve as três (risos). Olha seu troco!”

Ora, vimos que a proposta da imagem-documento surge a partir do questionamento sobre ficção e realidade no cinema. Para isso, desenvolvemos uma discussão no capítulo III desta tese. A referida cena mostra a atuação (fabulação) de dois personagens que ficcionam suas próprias vivências. E é justamente por esse ato de fabulação, em que o destaque se instaura no devir do personagem real, que esses personagens tornam-se outros. Naquele momento de mise-en-scène, o agricultor deixa de ser um morador ribeirinho, passando a se inventar como um morador ribeirinho. O segundo personagem deixa de ser aquele comerciante ribeirinho para se tornar outro: se inventando comerciante ribeirinho (generoso) da Amazônia. Essa é a essência da imagem-documento – permitir que os personagens se inventem ao fabularem suas próprias vivências.

Como já outrora mencionado, Silva e Araújo (2011, p. 07) apontam que há um duplo movimento da semiose, em que de um lado o objeto dinâmico atua sobre o signo e, de outro, é a ação do próprio signo que faz o objeto crescer. De um lado, há o caráter representativo, próprio do documentário clássico, em que uma relação indicial se desenvolve na relação entre o filmado e o vivido. Mas, de outro lado, essa semiose pode experimentar uma relação não mais de ordem física, mas temporal entre signo e objeto, cuja temporização institui-se pela figura de fabulação.

Diante disso, consideramos que essas duas pessoas comuns da Amazônia não estão representando, em sentido clássico, mas tentando inventar, criar outras referências (mundos),

através das imagens de fabulação. A relação que experimentam não pode ser explicada exclusivamente pelo indicial, posto que, quando praticam a mise-en-scène, os personagens não intentam apenas representar, mas, principalmente, criar outra significação, não mais representativa, mas também inventiva. Ou seja, o que estão encenando não constitui a representação de uma Amazônia que se conhece pelos livros, noticiários e documentários, mas possui a finalidade de contribuir para a sua invenção (descobrimento). Essa descoberta dialoga com o significado de “invenção” apontado por Santiago (2004, p. 183) – onde o autor afirma que “quem inventa desenvolve um estilo próprio, intransferível” –, capaz de investigar novas possibilidades, novas formas de devir. É nesse sentido que a fabulação, estimulada por Bodanzky e Sena, possibilita que os personagens do filme se tornem falsos, inventem-se, tornem-se outros. Não se trata de representar a Amazônia (imagem-ação), mas de tentar descobri-la, inventando-a (imagem-documento).

É por isso que consideramos que a imagem-documento constitui a secundidade do tempo, operando de modo diverso ao representativo da imagem-movimento, através das imagens de fabulação. Como já assinalamos, Deleuze (2007, p. 161) afirma que “é uma potência do falso que substitui e destrona a forma do verdadeiro” e que só pode ser encontrada na imagem-cristal. Por esta razão é que concluímos que a imagem-documento constitui um tipo de imagem-cristal, que possui como um dos aspectos principais a (figura da) fabulação de seus personagens, que se tornam outros ao se inventarem e se tornarem falsos, a partir do momento em que se põem a ficcionar suas próprias realidades.

O comerciante verídico se dissolve quando o personagem inventa-se generoso, diluindo todo o modelo de verdade que cerca a narrativa orgânica do documentário. O gesto ingênuo do agricultor ao vender o açaí também denota uma invenção de seu personagem. “São justamente essas potências do falso que são capazes de questionar o modelo formal da verdade e colocar o cinema num ponto de inflexão: não mais de representação, mas criação” (SILVA, 2011, p. 06).

Deleuze (2007, p. 164) pondera que “a potência do falso só existe sob o aspecto de uma série de potências, que estão sempre se remetendo e penetrando umas às outras”. É nesse sentido que a imagem-documento é caracterizada por apresentar o tempo em série, nas séries de potências, onde o antes e o depois se encontram em um só devir, no devir do próprio personagem real que é inseparável de um antes e de um depois.

No documento RAFAEL WAGNER DOS SANTOS COSTA (páginas 92-96)