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Os filósofos que vimos realizando a exposição dos seus argumentos filosóficos associaram a imaginação à atividade de reprodução de algo experimentado, as imagens são, portanto, reproduções de elementos da realidade. Em vista desse caráter reprodutivista, a imaginação foi comumente vinculada à atividade mnemônica.

Destarte, os filósofos que entram em nossa exposição tomam a imaginação sob outra orientação. Para Immanuel Kant e Friedrich Hegel – guardando-se as devidas proporções e especificidades de cada um destes filósofos – a imaginação revela-se como faculdade criadora. Desse modo, a imaginação passa por uma espécie de resignificação, a começar pelo fato que para Kant, imaginar passa a ser concebido como atividade transcendental, isto é, vinculada às condições e faculdades necessárias para a

constituição do conhecimento humano, sem nenhum caráter psicológico ou anatômico56.

Kant compreende a imaginação como a faculdade das intuições mesmo sem a presença do objeto:

“A síntese figurada, porém, quando se refere apenas à unidade sintética originária da apercepção, ou seja, a esta unidade transcendental que é pensada nas categorias, deverá

      

56 Indicamos a leitura de Peter Strawson em The Bounds of Sense, obra na qual ele reflete sobre a questão

da imaginação em Kant, preservando-se fora do escopo psicológico: “O que estamos colocando em questão é precisamente o terreno fundamental da possibilidade da auto-atribuição empírica dos diversos estados de consciência na parte da consciência capaz de conhecer sua própria identidade total, suas mutantes e constantes determinações”. (STRAWSON, P. F. The bounds of sense: an essay on Kant’s Critique of Pure Reason. London: Routledge, 1999, p. 93.).

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chamar-se síntese transcendental da imaginação, para distingui-la da ligação simplesmente intelectual. A imaginação é a faculdade de representar um objecto [sic], mesmo sem a presença deste na intuição. Mas, visto que toda a nossa intuição é sensível, a imaginação pertence à sensibilidade, porque a condição subjectiva é a única pela qual pode ser dada aos conceitos do entendimento uma intuição correspondente; na medida, porém, em que a sua síntese é um exercício da espontaneidade, que é determinante, e não apenas, como o sentido, | determinável, pode determinar a priori o sentido, quanto à forma, de acordo com a unidade da apercepção; é portanto uma faculdade de determinar a priori a sensibilidade; e a sua síntese das intuições, de conformidade com as categorias, tem de ser a síntese transcendental da imaginação, que é um efeito do entendimento (e simultaneamente o fundamento de todas as restantes) a objectos [sic] da intuição possível para nós. Sendo figurada e distinta da síntese intelectual, que se realiza simplesmente pelo entendimento, sem o auxílio da imaginação. [B152 – B153]” 57

Segundo essa exposição de argumentos, Kant reconhece a imaginação como produtiva puramente formal, devido ao fato de que ela torna possível as condições da intuição (espaço-tempo), ela realiza a síntese da sensibilidade, ficando reservada ao entendimento a síntese intelectual. O entendimento exerce sobre a imaginação certa atividade restritiva.

Mesmo quando trata da questão do gosto estético, como princípio subjetivo da faculdade do juízo, Kant não desvincula a imaginação do ordenamento do entendimento:

“A condição subjetiva de todos os juízos é a própria faculdade de julgar ou a faculdade do juízo. Utilizada com respeito a uma representação pela qual um objeto é dado, esta faculdade requer a concordância de duas faculdades de representação, a saber, da faculdade da imaginação (para a intuição e a composição do múltiplo da mesma) e do entendimento (para o conceito como representação da unidade desta compreensão). Ora, visto que aqui não se encontra nenhum conceito de objeto como fundamento do juízo, assim ele somente pode consistir na subsunção da própria faculdade da imaginação (em uma representação pela qual um objeto é dado) à condição de que o entendimento em geral chegue da intuição a conceitos.” [146]58

Diante do exposto, compreendemos que no pensamento kantiano é possível considerarmos a imaginação sob duas modalidades: imaginação produtiva (exhibitio originaria), que é o poder de representação originária do objeto e precede a experiência, e imaginação reprodutiva (exhibitio derivativa), que traz de volta ao espírito uma intuição empírica anterior. O próprio Kant faz essa ponderação, afirmando:

“Mas, como a imaginação é espontaneidade, também por vezes lhe chamo imaginação produtiva e assim a distingo da imaginação reprodutiva, cuja síntese está submetida a

      

57 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, p. 152-153.

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leis meramente empíricas, as da associação, e não contribui, portanto, para o esclarecimento da possibilidade de conhecimento a priori, pelo que não pertence à filosofia transcendental, mas à psicologia.” [B152] 59

Entre a primeira e a segunda edição da Crítica da Razão Pura, a reflexão kantiana sugere o desenvolvimento de compreensões diferentes em relação à imaginação; na segunda edição ela seria tomada como produtiva, da qual somente as intuições puras de espaço e de tempo são seus produtos; na primeira edição seria tomada como produtiva também em relação à síntese intelectual. Este ponto mostra-se bastante controverso, angariando opiniões diversas entre os filósofos e os estudiosos kantianos.

Lembramos o filósofo francês Cornelius Castoriadis60 que afirma a mudança do

posicionamento de Kant diante da imaginação radicalmente criadora; mudança que, mutatis mutandis, Heidegger também observou61, ao refletir sobre a imaginação

transcendental; entretanto, há quem defenda opinião diversa, afirmando que não houve nem mudança nem retroagir no pensamento kantiano, apenas entre as edições da Crítica

ele elabora uma reconsideração da atividade imaginativa62.

       59 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, p. 152

60 Castoriadis observa que Kant operou um duplo movimento ante o problema da imaginação, o qual se

mostra ao comparar os textos da Crítica da Razão Pura em suas duas edições. No texto “Imaginação, imaginário e reflexão”, Castoriadis faz alusão ao fato de que a segunda edição da Crítica, que sustém as teses kantianas que se perpetuaram, afastou-se da compreensão da imaginação criativa e autônoma – presente na primeira edição – circunscrevendo-a ao comando do entendimento, então, afirma que: “Sem minimizar em nada a importância da descoberta kantiana, é preciso que se indiquem seus limites. Antes de mais nada, em Kant a imaginação está submetida, de uma ponta a outra, aos requisitos do “conhecimento verdadeiro”. Em segundo lugar – e precisamente por essa razão – ela é eternamente “a mesma”. Se a imaginação transcendental começasse a imaginar o que quer que fosse, o mundo de Kant desabaria em seguida. Por essa razão, ainda, Kant não pode nem quer ver a função criadora da imaginação no domínio cognitivo (científico ou filosófico). Assim, a existência de uma história da ciência deve permanecer, na perspectiva kantiana, uma simples acumulação de induções, e, como esse não é, visivelmente, o caso, ela torna-se um enigma”. (CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Laribinto V, p. 254.). Sem a consideração de uma atividade imaginativa criadora não há como compreender os avanços científicos que não se produzem por acumulação, mas por grandes revoluções, como é o caso da teoria quântica e da relatividade, cujos itinerários de construção não resultam de uma “acumulação” ou “evolução” da física newtoniana. Imaginar é criar o radicalmente novo e não reproduzir um dado sensorial do passado.

61 Heidegger recapitula a compreensão kantiana da imaginação, afirmando que “A imaginação é um modo

da intuição sensível, ainda que sem a presença do objeto. A imaginação pode chamar-se, portanto, uma faculdade formadora em um duplo sentido característico: como faculdade de intuir é formadora, já que proporciona (forma) a imagem (o aspecto). Esta “força formadora” é uma forma, ao mesmo tempo, passiva (receptora) e criadora (espontânea). Porém, se receptividade equivale à sensibilidade e entendimento, a espontaneidade, a imaginação se encontra entre ambos de maneira peculiar.” Então, Heidegger termina por reconhecer que “Kant se contradiz quando ora afirma haver duas ora três fontes fundamentais da alma.” (HEIDEGGER, Martin. Kant y el problema de la metafísica. Panuco – Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1954, p. 112;116.). A compreensão heideggeriana sobre a imaginação é de que “a verdadeira essência de sua estrutura está contida neste ‘ao mesmo tempo’. ” (Ibidem, p. 112).

62 Jane Kneller discorda que tenha havido retroagir no pensamento kantiano, para tanto rebusca alguns

43  Na Crítica da Faculdade do Juízo encontramos trechos que põem a imaginação em situação peculiar, isto é, Kant a associa tanto a função produtiva quanto a reprodutiva. Em um desses trechos podemos ler o seguinte:

“Ora, se no juízo de gosto tiver que ser considerada a faculdade da imaginação em sua liberdade, então ela será tomada primeiro não reprodutivamente, como ela é submetida às leis de associação, mas como produtiva e espontânea (como autora de formas arbitrárias de intuições possíveis); e embora na apreensão de um dado objeto dos sentidos ela, na verdade, esteja vinculada a uma forma determinada deste objeto e nesta medida não possua nenhum jogo livre (como na poesia), todavia ainda se pode compreender bem que precisamente o objeto pode fornecer-lhe tal forma, que contém uma composição do múltiplo, como a faculdade da imaginação – se fosse entregue livremente a si própria – projetá-la-ia em concordância com a legalidade do entendimento em geral. [...] Se, porém, a faculdade da imaginação é coagida a proceder segundo uma lei determinada, então o seu produto é, quanto à forma, determinado por conceitos como ele deve ser;” [V69]63

A despeito do problema da variação da compreensão kantiana quanto à imaginação nas duas edições da Crítica, nos interessa compreender qual o lugar da imaginação no pensamento de Kant. Sendo assim, com base na segunda edição, Kant reconhece o papel fundamental da imaginação, entretanto, restringe-a a relação com a sensibilidade; noção análoga apreendemos mediante a leitura da sua obra Antropologia Prática. Seguem ambos os trechos:

“A síntese em geral é, como veremos mais adiante, um simples efeito da imaginação, função cega, embora imprescindível, da alma, sem a qual nunca teríamos conhecimento algum, mas da qual muito raramente temos consciência. Todavia, reportar essa síntese a conceitos é uma função que compete ao entendimento e pela qual ele nos proporciona pela primeira vez conhecimento no sentido próprio da palavra.” [A78/ B104] 64

“Certamente, é fato que podemos captar certos traços do homem mediante a imaginação; no entanto, somente com estes traços não podemos traçar o perfil do homem tão facilmente como uma figura matemática, já que não nos é possível participá- los a outro. Essa imagem permanece fechada em nós, de modo que não se pode trocar em sólidos conceitos e nunca formará uma ciência sobre tal base.” [106] 65

      

segundo Heidegger, “Die Einheit der Subjektivität” [“Sobre a unidade da subjetividade”], Dieter Henrich toma para si o desafio que Heidegger lança à integridade da filosofia kantiana e defende Kant alegando que a sua recusa em explorar a raiz comum, tanto da sensibilidade quanto do entendimento não tem ligação com a atitude de Kant em referência à imaginação, [antes, deve-se ao fato que] Kant nega totalmente a possibilidade de conhecer tal capacidade básica [...] a raiz comum ‘desconhecida’ a que Kant se refere na introdução da Crítica da Razão Pura não pode ser, de jeito algum, uma faculdade conhecida e, portanto, não pode ser a imaginação.” Para Kneller, entretanto, “Kant estava tentando e talvez tenha sido extremamente cauteloso com o excesso imaginativo entusiástico – não era “para ser totalmente estimado, visto que a paixão com tal merece censura e foi uma das ‘duas pedras’ [Locke e Hume] por entre as quais a filosofia crítica deve caminhar.” [B128]. (KNELLER, Jane. Kant e o poder da imaginação, p. 111-112; 139.).

63 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo, p. 86. 64 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, p. 109.

65 KANT, Immanuel. Antropología práctica. Madrid: Editorial Tecnos, 2004, p. 20. Nesta obra ainda há

44  Por fim, compreendemos que a imaginação, como aparece nos textos kantianos, sustém várias interpretações possíveis. Dentre elas, a mais apropriada para a nossa reflexão será aquela que considera a imaginação transcendental como atividade ampla, garantindo por um lado a unidade entre as faculdades do sujeito e por outro a unidade entre as consciências. Nesse sentido, nos aproximamos da compreensão heideggeriana, considerando-a como unidade originária.

Segundo a exposição realizada até este momento, reconhecemos como possível que a imaginação para Kant não esteja restrita ao âmbito gnosiológico, uma vez que sua funcionalidade ultrapassa a ação de figurar ou de formar imagens. À imaginação

transcendental competem tarefas mais complexas66 e originárias67. Neste sentido,

consideramos impróprio tomar esta atividade como apenas reprodutiva, ao contrário, reconhecemos a atividade sintética da imaginação transcendental como atividade originariamente poiética, criadora. Esta compreensão não se antagoniza de modo absoluto com o pensamento bachelardiano, uma vez que considerando a imaginação como condição de possibilidade das sínteses, mantemo-nos no âmbito do seu modo de ser originário, vinculando-se, portanto, mutatis mutandis, à abordagem bachelardiana.

Nas escolas e pensadores posteriores a Kant, pensar filosoficamente a imaginação passou a representar um movimento de expansão das suas potencialidades, bem como, maior proximidade com as problematizações de caráter ontológico. A imaginação passa a ser considerada como faculdade necessária à construção do conhecimento e, igualmente, como faculdade fundamental da síntese do sujeito.

      

afirmar: “A imaginação dos entusiastas é desenfreada, enquanto que a dos fantasiosos carece de qualquer regra. Os primeiros podem ser domesticados, por tratar-se unicamente de um exagero da regra, porém com os segundos não há nada que fazer, por não existir regra alguma.” [103] (Ibidem, p. 13.); no segundo, Kant põe em dúvida o material oferecido pela imaginação, considerando-o impróprio, valorizando, portanto, os conceitos obtidos pela experiência: “A estrutura bela, perfeita, constitui o princípio para julgar o belo. A beleza repousa nos conceitos que obtemos a partir da experiência. A verdadeira beleza é a beleza natural e não o ideal imaginário do artista, cuja harmonia encontra-se apenas na fantasia.” [106] (Ibidem, p. 13.).

66 Como afirma Strawson, a atividade de síntese não está confinada aos dados da intuição empírica, a pura

síntese está envolvida também na geração da unidade das puras variações de espaço e tempo e nas construções da pura matemática. Estas atribuições pertencem ao sujeito imaginário da psicologia transcendental. (STRAWSON, P. F. The bounds of sense, p. 97.).

67 “A imaginação transcendental como tal possibilita a unidade originária da síntese ontológica.”

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