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Outro pensador que se voltou para a imaginação sem restringi-la à discussão gnosiológica foi Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Para ele, a imaginação participa na construção do conhecimento, porém, sua função primordial dá-se como elo entre a produção artística e a atividade racional, ou melhor, ela carrega a consciência racional para a atividade artística. Esse filósofo não dedicou uma obra específica para a reflexão sobre a imaginação, por isso, fizemos uma seleção de trechos esparsos de sua obra filosófica, através dos quais possamos reconhecer sua compreensão.

No Prefácio da Fenomenologia do Espírito, no parágrafo 68, Hegel afirma que

“Assim, hoje, um filosofar natural que se julga bom demais para o conceito, e devido à falta de conceito se tem em conta de um pensar intuitivo e poético, lança no mercado combinações caprichosas de uma força de imaginação somente desorganizada por meio do pensamento – imagens que não são carne nem peixe; que nem são poesia nem filosofia.” 68

Hegel se refere ao pensamento filosófico que se formou após Kant, sobretudo no grupo do qual participava Novalis, para quem a imaginação representa uma potência irrefreável de criação, impulso puro que não se submete aos ditames da razão, por isso, exalta a imaginação criadora constitutiva do ser humano, que expande sua realidade e ao mesmo tempo lança-o para sua intimidade mais profunda:

“a fantasia põe o mundo futuro seja na altura, ou na profundeza, ou na metempsicose, em relação a nós. Sonhamos com viagens através do todo cósmico: então o universo não está dentro de nós? As profundezas de nosso espírito nós não conhecemos. – Para dentro vai o misterioso caminho. Em nós, ou em parte nenhuma, está a eternidade com seus mundos, o passado e o futuro. [fragmento 16]” 69

Na supracitada citação da Fenomenologia do Espírito, uma esta aparição breve e pouco esclarecedora, Hegel coloca a imaginação como participante de certa modalidade

      

68 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis-RJ: Vozes, 1992, p. 59.

46  de conhecer a realidade, que carece da profundidade e da fecundidade que o pensamento filosófico formal pode oferecer. É um modo de “filosofar natural” feito à base da observação ingênua e que carece da compreensão suficiente e necessária do conceito. Assim sendo, este modo de pensar espontâneo pode ser abalado quando confrontado com a atividade do pensamento sistemático. Observamos que para este filósofo, a imaginação participa ativamente no modo de construção do pensar, e não identificamos argumentos que a vinculem à atividade mnemônica. Reconhecemos, entretanto, que o filósofo entende que a atividade imaginante precisa ser orientada pela razão.

Em Enciclopédia das Ciências Filosóficas Hegel retoma a questão da imaginação, na III parte dessa obra, na qual trata da Filosofia do Espírito. Ele associa a questão da imaginação ao modo de conhecer da alma humana, em virtude disso, insere- a na seção que trata do espírito subjetivo. Reconhece, igualmente, que a imaginação deve ser considerada no que diz respeito à construção do conhecimento em suas faculdades originárias e, nesse sentido, considera-a questão do âmbito do espírito teorético.

Dizendo de outro modo, Hegel considera a reflexão sobre a imaginação possível com base em duas abordagens, conforme a sua constituição originária e conforme a sua atividade na construção do conhecimento, portanto haverá duas concepções distintas e complementares da imaginação.

Como corolário desta compreensão, Hegel propõe que – segundo os específicos modos de ser – se denomine “imaginação passiva” e “fantasia”; sendo que fantasia está associada à “imaginação produtiva”. O filósofo não explica o porquê do uso do vocábulo fantasia e não imaginação produtiva, entretanto, conjecturamos ser um resgate do uso feito pelas escolas filosóficas antigas, sobretudo em Platão e Aristóteles, para as quais o termo utilizado para designar a faculdade que produz imagens é phantasia. As traduções medievais, nas quais prevalece o uso do latim, associaram o significado de phantasia à imaginatio70

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Portanto, a fantasia ou imaginação produtiva, como atividade da inteligência, tem o poder de fazer emergir as imagens. É um poder ativo, não reprodutivo, neste sentido não-mnemônico. A imaginação não é memória tampouco depende desta. A

      

70 Sobre o uso do vocábulo phantasia na filosofia grega, adotamos como referência e recomendamos a

leitura do texto Image, Imagination, Imaginaire. (COURNARIE, Laurent. L’imagination. Paris: Armand Colin, 2006, p. 15-36.).

47  imagem é a representação sensivelmente mais concreta. Ambas se distinguem, portanto, do conteúdo, ou seja, do dado efetivo.

A representação, enquanto universal, se constitui como conexão que dá lugar à subsunção das representações singulares. Essa conexão somente se dá pela atividade da fantasia, que é imaginação simbolizante, alegorizante ou poetante. Todas estas produções da imaginação são “síntese”, atividade constitutiva da atividade imaginante.

Neste sentido, a imaginação entra no esquema da construção do conhecimento a fim de co-laborar com a inteligência no seu processo de construção do conhecimento, uma vez que o conteúdo da imagem é produto subjetivo, ou seja, é um produto que foi construído na interação entre os elementos acidentais ou circunstanciais e os elementos originários ou constitutivos, que resultou num terceiro, que é a imagem. Para o que explica Hegel, a inteligência que se exterioriza é ativa, produz intuição, fantasia produtora de sinais.71

Somente na fantasia, a inteligência escapa ao indeterminado, ao geral, assim, como subjetividade concreta em que a referência a si é igualmente determinada como ser e como universalidade. A fantasia garante que o processo de conhecimento não se detenha no dado meramente presente tampouco na pura imposição de conceitos, antes ela garante que o “material” do objeto e do sujeito se harmonizem, enquanto o próprio do ser que se apresenta e o atribuído do ser a que se apresenta o dado.

Apesar da tendência a considerar-se a imaginação como a mera faculdade de criar imagens, já em Hegel é possível entender-se que a atividade da fantasia não está condicionada a criação de imagens, sua atividade enquanto faculdade é radical, é necessária, é formal. Hegel explica que enquanto atividade desta união, a fantasia é razão, mas unicamente razão formal, porquanto o conteúdo da fantasia como tal é indiferente.

Esta é a chave de leitura para entendermos sua afirmação de que “a imagem

produzida pela fantasia é apenas subjetivamente intuitiva.” 72 Ou seja, ela preserva as

intuições de base da sensibilidade (tempo e espaço), porque não há outro modo de constituir conhecimento no sujeito, porém, a atividade da imaginação criadora (fantasia) é independente do material que se apresenta ao sujeito cognoscente. E neste caso, o que é intuitivo no que tange a inteligência é intuibilidade no que tange a fantasia.

       71 Ibidem.

48  No pensamento hegeliano, portanto, há duas compreensões de imaginação, uma reprodutiva e outra produtiva. Ambas são determinações da inteligência, mas a inteligência como imaginação é simplesmente reprodutiva, ao passo que como fantasia é

criadora, é imaginação simbolizante, alegorizante ou poetante73. Sobre este poder

criador da imaginação, Hegel fundou seu conceito de gênio do artista, como podemos depreender da leitura dos seguintes trechos:

“A esta atividade criadora da fantasia, com a qual o artista consegue dar forma real ao que é racional em si, como se este racional fizesse parte de si mesmo, é que se chama gênio, talento, etc.” 74

“Mas a obra de arte, como produto do espírito, exige uma atividade subjetiva criadora que faz dela um objeto de intuição para os outros e um apelo à sensibilidade alheia. É a imaginação do artista que constitui esta atividade subjetiva criadora.” 75

Hegel dedica atenção e procura compreender a imaginação produtiva, à medida que esta tem raízes na natureza do espírito, é constitutiva, ela tem acesso à esfera racional. Todavia, permanece a questão de como se operacionaliza este acesso. Os argumentos de Hegel são os seguintes:

“A missão da fantasia apenas consiste em ter consciência desta racionalidade intrínseca, e em tê-la não na forma de proposições e representações gerais, mas na de uma realidade concreta e individual. [...] Para alcançar esta recíproca penetração do conteúdo real e do conteúdo racional, tem o artista de apelar, por outro lado, para a profundidade e ação vivificadora do seu sentimento. É, pois, absurdo afirmar que poemas como os de Homero foram imaginados pelo poeta enquanto dormia. Sem reflexão, sem escolha, sem comparações, o artista é incapaz de dominar o conteúdo que pretende tratar, e é um erro pensar que o verdadeiro artista não sabe o que faz. Nunca ele poderá dispensar a concentração da alma.” 76

Portanto, a criação artística não é pura espontaneidade; podemos compreender que certo processo cognoscente se desdobra tanto em torno da criação artística – com suas especificidades – quanto nas outras elaborações da inteligência. A imaginação transfere, portanto, racionalidade à atividade artística, como explica Hegel:

“Não se limita, porém, a fantasia à simples apreensão da realidade exterior e interior, porque a obra de arte não é apenas uma revelação do espírito encarnado em formas exteriores, e deverá, antes de tudo, exprimir a verdade e a racionalidade do real

      

73 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Lisboa: Edições 70, 1992, § 455-457. 74 HEGEL, G. W. F. Curso de Estética: o belo na arte. São Paulo: Martins fontes, 1996, p. 319. 75 Ibidem, p. 315.

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representado. Esta racionalidade do assunto escolhido pelo artista não estará apenas presente na sua consciência para estimulá-lo, mas o artista há de entrever a força de reflexão, o seu fundo de verdade e o seu caráter essencial. [...] Com isto, não queremos dizer que o artista deva formular em pensamentos filosóficos a verdade das coisas que conjuntamente constitui a base da religião, da filosofia e da arte.” 77

O filósofo não reconhece, entretanto, que a dinâmica peculiar à produção artística possa ser transferida para a atividade racional. A arte pode expressar a racionalidade, mas não o inverso.

Ao terminar este segundo momento de nossa exposição sobre a compreensão da imaginação na história da filosofia, reconhecemos que com o advento das filosofias de Kant e Hegel três atribuições tradicionais da atividade imaginativa foram abandonadas:

- a primeira diz respeito à associação entre imaginação e memória, uma vez que a imaginação não é discutida segundo escopos psicológicos; em vez disso a imaginação toma características formais.

- a segunda diz respeito à restrição da atividade imaginante à construção de imagens, uma vez que eles reconhecem que a imaginação constitui a possibilidade de síntese transcendental. E Kant ainda amplia mais essa atribuição, à medida que compreende que a imaginação realiza a síntese das consciências do sujeito cognoscente e do sujeito que se autocompreende.

- a terceira diz respeito à vinculação da imaginação ao desvio e a falsidade, uma vez que eles assumem a compreensão de que errôneos ou falsos são os juízos que se fazem a partir do produto da imaginação.

Reiteramos que nossa intenção com esta exposição não tem conotações teleológicas. Não pretendemos reconhecer que a compreensão da imaginação seguiu um movimento evolutivo, partindo de uma compreensão ingênua, fisiológica e mnemônica até alcançar uma compreensão cuja abordagem revela-se formal, transcendental ou originária. Reconhecemos, entretanto, que com o advento das filosofias de Kant e Hegel a imaginação passa a ser considerada cada vez mais como atividade originária, isto é, como instância constitutiva do modo de ser do ser humano. Como no pensamento de Novalis, que considera a imaginação como propugnadora da vida do espírito, fonte irrestrita de criação.

A despeito desse movimento de ampliação da abordagem da imaginação criadora, a dicotomia entre arte e ciência permanece, à medida que, quer em Kant quer

       77 Ibidem, p. 317.

50  em Hegel a imaginação em sua vinculação com o âmbito artístico sustém valor inexpugnável, todavia, quando a reflexão se dirige para o âmbito da construção do conhecimento, este vigor e esta dinamicidade constitutiva da atividade imaginante produz certa precaução por parte desses pensadores, do que resulta que eles entendam ser necessário subordinar esta atividade ao entendimento ou à inteligência.

3. IMAGINAÇÃO E COMPREENSÃO

“Eu sonho o mundo, portanto o mundo existe como eu o sonho.”

Bachelard. La poétique de la rêverie.