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IMAGINAÇÃO, CIENCIA E POESIA

3.3 Devanear é criar a surrealidade.

   

“[...] ovos de cuco n’outro ninho [...] a natureza diverte-se em contradizer a moral natural.”

Bachelard. La poétique de l’espace.

Sob a égide da não conformação com a limitação oferecida pela realidade físico- fisiológica, tanto o cientista quanto o artista investem esforços no sentido de superar tais limites. Este movimento de superação, de ampliação da realidade – o devaneio criador – possibilita a emergência de uma realidade ampliada e complementar a que efetivamente se vive, a qual Bachelard denominou de surrealidade. Este movimento de superação da realidade se dá sob o ímpeto da imaginação, a medida que mediante o reconhecimento e a inconformidade com certo padrão ou tendência vigente, somos capazes de projetar outra realidade possível, como nos orienta Bachelard:

“em seu frescor, em sua atividade própria, a imaginação torna estranho o familiar. Com um detalhe poético, a imaginação nos coloca diante de um mundo novo. Consequentemente, o detalhe predomina sobre o panorama. Uma simples imagem, se ela é nova, abre um mundo. Visto das mil janelas do imaginário, o mundo é mutável.”341.

Do estranhamento à projeção da novidade a imaginação está presente como ímpeto originário na construção do conhecimento e da realidade.

A surrealidade, portanto, resulta de um movimento de emancipação da consciência individual frente à função do real, espécie de movimento libertário. Deste

      

340 BULCÃO, Marly; BARBOSA, Elyana. Bachelard: pedagogia da razão, pedagogia da imaginação, p.

14.

341 « Dans sa fraîcheur, dans son activité propre, l’imagination avec du familier fait de l’étrange. Avec un

détail poétique, l’imagination nous place devant un monde neuf. Dès lors le détail prime le panorama. Une simple image, si elle est nouvelle, ouvre un monde. Vue des mille fenêtres de l’imaginaire, le monde est changeant. ». (BACHELARD, Gaston. La poétique de l’espace, p. 129.).

162  modo, quando não se vê o que se quer ver, quando não se entende o que se quer

entender, nega-se a realidade e cria-se uma surrealidade342. Bachelard concebia na

surrealidade a expressão da atividade imaginativa capaz de transformar e conciliar as diversas partes constitutivas da realidade, por mais complexas e díspares que se mostrem343.

Esse movimento de superação da realidade revela emancipação do ser humano enquanto ser criador, como ser que constrói sua realidade existencial e histórica, como ser autônomo. Originariamente, o ser humano é ser imaginante e autônomo, ele se constitui como ser capaz de criar sua própria realidade. Ele, todavia, não se reconhece sempre como criador; quando o faz, então, se emancipa. Vinculamos essa emancipação à tomada de consciência do ato criador, seguindo a exposição de Bachelard: “Para nós, toda tomada de consciência é um acréscimo de consciência, um aumento de luz, um reforço da coerência psíquica. Sua rapidez ou sua instantaneidade podem dissimular o

acréscimo. Mas há um crescimento do ser em toda tomada de consciência”344. O ser

humano que cria a sua própria realidade mostra sua autonomia; nesta criação ele revela o caráter do seu ser imaginativo originariamente criador e autônomo, como resumiu Bachelard ao afirmar: “com uma imagem exagerada temos certeza de estar no eixo de

uma imaginação autônoma”345.

      

342 LAZORTHES, Guy. L’imagination: source d’irréel et d’irrationel, pusissance créatrice, p. 98.

343 Permitam-nos uma pequena digressão, na qual citaremos um trecho de A psicanálise do fogo no qual

Bachelard trata de uma possível síntese das imagens poéticas, que não recorra à imposição lógica ou realista, com as quais a criação poética seria cerceada. Nesse sentido, ele fala de uma fusão que integra sem reduzir: “Às vezes, imagens verdadeiramente diversas, que se crêem hostis, heroclíticas, dissolventes, vêm a se fundir em uma imagem adorável. Os mosaicos mais estanhos do surrealismo têm súbitos gestos contínuos; uma luz difusa revela uma luz profunda; um olhar que cintila de ironia tem um súbito formato de ternura; a água de uma lágrima sobre o fogo de uma confissão. Tal é, portanto, a ação decisiva da imaginação: de um monstro, ela faz um recém-nascido”. (« Parfois des images vraiment diverses, qu’on croyait hostiles, hétéroclites, dissolvanes, viennent se fondre en une image adorable. Les mosaïques les plus étranges du surréalisme ont soudain des gestes continus ; un chatoinement révèle une lumière profonde ; un regard qui scintille d’ironie a soudain une coulée de tendresse : l’eau d’une larme sur le feu d’un aveu. Telle est donc l’action décisive de l’imagination : d’un monstre, elle fait un nouveau-né ! ». (BACHELARD, Gaston. La psychanalyse du feu, p. 186.). A nosso ver, a imagem da fusão pode comportar certa significação para a realidade sócio-histórica, qual seja, a convivência social harmônica entre os seres humanos, em suas mais variadas manifestações culturais, não requer uniformização, tampouco, submissão a certo padrão vigente, a pluralidade da sociedade pode acompanhar a imagem da fusão, como lógica da inclusão.

344 « Pour nous, toute prise de conscience est un accroissement de conscience, une augmentation de

lumière, un renforcement de la cohérence psychique. Sa rapidité ou son instantanéité peuvent nous masquer la croissance. Mais il y a croissance d’être dans toute prise de conscience ». (BACHELARD, Gaston. La poétique de la rêverie, p. 5.).

345 « Nous sommes sûrs, avec une image exagerée, d’être dans l’axe d’une imagination autonome. ».

163  Acerca desta busca pela autonomia do ser humano, enquanto busca originária, Bachelard também dedicou uma parte de sua reflexão em Lautréamont, na qual encontramos uma sequência de argumentos que apresenta essa autonomia constitutiva do ser, como vontade de atacar, animalidade sob o ímpeto da imaginação criadora. Sigamos, pois, a reflexão bachelardiana exposta nos seguintes termos:

“A vida e o verbo reais devem ser de revoltas, de revoltas conjugadas, de revoltas eloquentes. Seria preciso dizer sua revolta, seria dizê-la a seu mestre, a seus mestres, ao Mestre: E então! grita Lautréamont, eu me apresento para defender o homem, desta vez, eu desprezador de todas as virtudes. A criatura criada vai, pela violência, tornar-se criadora. [...] Desobedecer – para aqueles que não foram tocados pela graça ou pela razão – é a prova imediata e decisiva de autonomia.”346.

Misto de ode e convocatória, este trecho conclama o indivíduo a assumir-se como criador de sua própria história, mesmo que pra isso seja necessário revoltar-se contra a escola, a religião, a tudo que possa cerceá-lo e encarcerá-lo numa vida virtuosa

de passividade, como Bachelard a denomina num pequeno trecho anterior ao citado347.

A arte e a ciência podem então ser reconhecidas como movimentos de emancipação da consciência, à medida que revelam o caráter originário da criação, criação da novidade, que não resulta de impulso do passado, tampouco, de mera reprodução da realidade. “Para Bachelard, a arte e a ciência não são simples reproduções de um mundo que se oferece e sim atividades criativas onde a imaginação aparece com um papel fundamental. A arte e a ciência são criações nas quais o homem participa integralmente, inclusive com toda a sua experiência psicológica. Em Bachelard, nem o onírico, nem o racional são formados pelo real existente; ao contrário, rompendo com a realidade

imediata, aqueles (a arte e a ciência) instituem um novo tipo de realidade”348, sintetiza

Elyana Barbosa.

Bachelard presenciou um momento particularmente importante de instituição de um novo tipo de realidade, uma vez que ele foi contemporâneo à revolução na ciência no início do século XX, quando as teorias da relatividade, dos quanta e a geometria não-

      

346 « La vie et le verbe réels doivent être des révoltes, des révoltes conjuguées, des révoltes éloquentes. Il

faut donc dire sa révolte, il fatu la dire à son maître, à ses maîtres, au Maître : ‘Eh bien ! crie Lautréamont, je me présente pour défendre l’homme, cette fois, moi contempteur de toutes les vertus’. La créature créaturée va, par la violence, devenir créaturante. [...] Désobéir – pour celui qui n’a pás été touché par la grâce ou par la raison – est la preuve immédiate et décisive de l’autonomie. ». (BACHELARD, Gaston. Lautréamont, p. 96-97.).

347 « Alors la vie vertueuse est une vie trop monotone, [...] ». (Ibidem, p. 96.). 348 BARBOSA, Elyana. Gaston Bachelard: arauto da pós-modernidade, p. 18.

164  euclidiana levantaram problemas que deixaram os cientistas aturdidos, com as novas compreensões de espaço não linear, de tempo não absoluto, de corpúsculos atômicos, entre tantos outros princípios e pressupostos questionados no bojo das teorias vigentes.