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A PROSA DO MUNDO

V. A imaginação da semelhança

Eis, pois, os signos, libertos de todo esse fervilhar do mundo onde o Renascimento os havia outrora repartido. Estão doravante alojados no interior da representação, no interstício da idéia, nesse tênue espaço onde ela joga consigo mes-ma, decompondo-se e recompondo-se. Quanto à similitude, só lhe resta agora sair do domínio do conhecimento. É o empírico sob sua mais rude forma; já não podemos “olhá-la como fazendo parte da filosofia”19, a menos que seja desvanecida na sua inexatidão de semelhança e transformada pelo saber numa relação de igualdade ou de ordem. E todavia, para o conhecimento, a similitude é uma indispensável moldura. Pois uma igualdade ou uma relação de ordem não pode ser estabelecida entre duas coisas, senão quando sua semelhança tenha sido ao menos a ocasião de compará-las: Hume colocava a relação de identidade entre aquelas, “filosóficas”, que supõem a reflexão; já a semelhança pertencia, para ele, às relações naturais,

19 Hobbes. Logique. Trad. francesa de Destutt de Tracy. Éléments d’idéologie. Paris, 1805, t. III, p. 599.

àquelas que constrangem nosso espírito segundo uma “força calma” mas inevitável20. “Que o filósofo se arrogue a precisão quando queira... ouso contudo desafiá-lo a dar um só passo em sua carreira sem a ajuda da semelhança. Que se lance um olhar sobre a face metafísica das [pág. 93] ciências, mesmo as menos abstratas; e que me digam se as induções gerais que se tiram dos fatos particulares, ou, antes, se os próprios gêneros, as espécies e todas as noções abstratas podem

formar-se de outro modo senão por meio da semelhança.”21 Na orla exterior do

saber, a similitude é essa forma somente esboçada, esse rudimento de relação que o conhecimento deve recobrir em toda a sua extensão, mas que, indefinidamente, permanece por sob ele, à maneira de uma necessidade muda e indelével.

Como no século XVI, semelhança e signo se interpelam fatalmente. Mas de um modo novo. Em vez de precisar de uma marca para que seja desvendado seu segredo, a similitude é agora o fundo indiferenciado, movediço, instável, sobre o qual o conhecimento pode estabelecer suas relações, suas medidas e suas identidades. Dupla reviravolta por conseguinte: porque é o signo e, com ele, todo o conhecimento discursivo que exigem um fundo de similitude, e porque não se trata mais de manifestar um conteúdo prévio ao conhecimento, mas de dar um conteúdo que possa oferecer um lugar de aplicação às formas do conhecimento. Enquanto no século XVI a semelhança era a relação fundamental do ser consigo mesmo e a dobradura do mundo, na idade clássica ela é a mais simples forma sob a qual aparece o que se deve conhecer e que está mais afastado do próprio conhecimento. É por ela que a representação pode ser conhecida, isto é, comparada com as que podem ser similares, analisada em elementos (em elementos que lhe são comuns com outras representações), combinada com as que podem apresentar identidades parciais e distribuídas finalmente num quadro ordenado. A similitude na filosofia clássica (isto é, numa filosofia da análise) [pág. 94] desempenha um papel simétrico ao que a diversidade assegurará no pensamento crítico e nas filosofias do juízo.

Nessa posição de limite e de condição (aquilo sem o que e aquém do que não se pode conhecer), a semelhança se situa do lado da imaginação ou, mais exatamente, ela só aparece em virtude da imaginação, e a imaginação, em troca, só

20 Hume. Essai sur la nature humaine. Trad. francesa de Leroy. Paris, 1946, t. I, pp. 75-80.

se exerce apoiando-se nela. Com efeito, se se supõem, na cadeia ininterrupta da representação, impressões por mais simples que sejam, e se não houvesse entre elas o menor grau de semelhança, não haveria nenhuma possibilidade para que a segunda lembrasse a primeira, a fizesse reaparecer e autorizasse assim sua reapresentação no imaginário; as impressões se sucederiam na mais total diferença: tão total que não poderia sequer ser percebida, visto que uma representação jamais teria ensejo de se estabelecer num lugar, de ressuscitar outra mais antiga e de se justapor a ela para dar lugar a uma comparação; a tênue identidade necessária a toda diferenciação sequer seria dada. A mudança perpétua se desenrolaria sem referência na perpétua monotonia. Mas, se não houvesse na representação o obscuro poder de tornar novamente presente uma impressão passada, nenhuma jamais apareceria como semelhante a uma precedente ou dessemelhante dela. Esse poder de lembrar implica ao menos a possibilidade de fazer aparecer como quase semelhantes (como vizinhas e contemporâneas, como existindo quase da mesma forma) duas impressões, das quais uma porém está presente enquanto a outra, desde muito talvez, deixou de existir. Sem imaginação não haveria semelhança entre as coisas.

Vê-se o duplo requisito. É preciso que haja, nas coisas representadas, o murmúrio insistente da semelhança; é preciso que haja, na representação, o recôndito sempre possível da imaginação. E nem um nem outro desses requisitos pode [pág. 95] dispensar aquele que o completa e lhe faz face. Daí duas direções de análise que se mantiveram ao longo de toda a idade clássica e não deixaram de se aproximar, para finalmente enunciarem, na última metade do século XVIII, sua verdade comum na Ideologia. De um lado, encontra-se a análise que explica a reversão da série de representações num quadro inatual mas simultâneo de comparações: análise da impressão, da reminiscência, da imaginação, da memória, de todo esse fundo involuntário que é como que a mecânica da imagem no tempo. De outro, há a análise que explica a semelhança das coisas — sua semelhança antes de sua ordenação, sua decomposição em elementos idênticos e diferentes, a repar-tição em quadro de suas similitudes desordenadas: por que, pois, as coisas se oferecem numa imbricação, numa mistura, num entrecruzamento, em que sua ordem essencial está confusa, mas bastante visível ainda para que transpareça sob forma de semelhanças, de similitudes vagas, de ocasiões alusivas para uma memória alerta? A

primeira série de problemas corresponde grosso modo à analítica da imaginação, como poder positivo de transformar o tempo linear da representação em espaço simultâneo de elementos virtuais; a segunda corresponde grosso modo à análise da

natureza, com as lacunas, as desordens, que confundem o quadro dos seres e o

dispersam numa seqüência de representações que, vagamente e de longe, se assemelham.

Ora, esses dois momentos opostos (um, negativo, da desordem da natureza nas impressões, outro, positivo, do poder de reconstituir a ordem a partir dessas impressões) encontram sua unidade na idéia de uma “gênese”. E isso de duas maneiras possíveis. Ou o momento negativo (o da desordem, da vaga semelhança) é atribuído à própria imaginação que exerce então, por si só, uma dupla função: se ela pode, apenas [pág. 96] pela duplicação da representação, restituir a ordem, é na medida justamente em que ela impediria de perceber diretamente, e na sua verdade analítica, as identidades e as diferenças das coisas. O poder da imaginação é tão-somente o reverso ou a outra face de sua falha. Ela está, no homem, na juntura da alma com o corpo. Com efeito, é aí que Descartes, Malebranche, Spinoza a analisaram, ao mesmo tempo como lugar do erro e poder de aceder à verdade mesmo matemática; nela reconheceram o estigma da finitude, quer como signo de uma queda fora da extensão inteligível, quer como marca de uma natureza limitada. O momento positivo da imaginação, ao contrário, pode ser atribuído à semelhança turva, ao murmúrio vago das similitudes. É a desordem da natureza devida à sua própria história, a suas catástrofes, ou talvez simplesmente à sua pluralidade imbricada, que não é mais capaz de oferecer à representação senão coisas que se assemelham. De tal sorte que a representação, sempre acorrentada a conteúdos muito próximos uns dos outros, se repete, se recorda, dobra-se naturalmente sobre si, faz renascer impressões quase idênticas e engendra a imaginação. É nesse burburinho de uma natureza múltipla mas obscuramente e sem razão recomeçada, no fato enigmático de uma natureza que, antes de toda ordem, se assemelha a si mesma, que Condillac e Hume buscaram o liame entre a semelhança e a imaginação. Soluções estritamente opostas, mas que respondem ao mesmo problema. Compreende-se, em todo o caso, que o segundo tipo de análise tenha sido facilmente desenvolvido na forma mítica do primeiro homem (Rousseau) ou da consciência que desperta

(Condillac) ou do espectador estranho jogado no mundo (Hume): essa gênese funcionava exatamente em lugar da própria Gênese.

Ainda uma observação. Se as noções de natureza e de natureza humana tiveram na idade clássica uma certa importância, [pág. 97] não é porque bruscamente se descobriu, como campo de pesquisas empíricas, essa potência surda, inesgotavelmente rica, a que se chama a natureza; não é também porque se isolou, no interior dessa vasta natureza, uma pequena região singular e complexa que seria a natureza humana. De fato, esses dois conceitos funcionam para assegurar a interdependência, o liame recíproco da imaginação e da semelhança. Decerto que a imaginação não é, em aparência, senão uma das propriedades da natureza humana, e a semelhança um dos efeitos da natureza. Mas, seguindo a rede arqueológica, que confere suas leis ao pensamento clássico, vê-se bem que a natureza humana se aloja nesse tênue extravasamento da representação que lhe permite se reapresentar (toda a natureza humana está aí: apenas estreitada ao exterior da representação para que se apresente de novo, no espaço branco que separa a presença da representação e o “re” de sua repetição); e que a natureza não é mais do que o inapreensível tumulto da representação que faz com que a semelhança seja aí sensível antes que a ordem das identidades seja visível. Natureza e natureza humana permitem, na configuração geral da epistémê, o ajustamento da semelhança e da imaginação, que funda e torna possíveis todas as ciências empíricas da ordem.

No século XVI, a semelhança estava ligada a um sistema de signos; e era sua interpretação que abria o campo dos conhecimentos concretos. A partir do século XVII, a semelhança é repelida para os confins do saber, do lado de suas mais baixas e mais humildes fronteiras. Lá, ela se liga à imaginação, às repetições incertas, às analogias nebulosas. E, em vez de desembocar numa ciência da interpretação, impli-ca uma gênese que ascende dessas formas rudes do Mesmo aos grandes quadros do saber desenvolvidos segundo as formas da identidade, da diferença e da ordem. O projeto de uma [pág. 98] ciência da ordem, tal como foi fundado no século XVII, implicava que fosse ele duplicado por uma gênese do conhecimento, como o foi efetivamente, e sem interrupção, de Locke à Ideologia.