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A PROSA DO MUNDO

III. A representação do signo

século XVII e por longo tempo — talvez até hoje — é o regime inteiro dos signos, as condições sob as quais exercem eles sua estranha função; é aquilo que, dentre tantas outras coisas que sabemos ou que vemos, os erige de súbito como signos; é seu próprio ser. No limiar da idade clássica, o signo deixa de ser uma figura do mundo; deixa de estar ligado àquilo que ele marca por liames sólidos e secretos da semelhança ou da afinidade.

O classicismo o define segundo três variáveis11. A origem da ligação: um signo

pode ser natural (como o reflexo num espelho designa o que ele reflete) ou de convenção (como uma palavra, para um grupo de homens, pode significar uma idéia). O tipo da ligação: um signo pode pertencer ao conjunto que ele designa (como a boa fisionomia que faz parte da saúde que ela manifesta) ou ser dele separado (como as figuras do Antigo Testamento são os signos longínquos da Encarnação e do Resgate). A certeza da ligação: um signo pode ser tão constante que estamos seguros de sua fidelidade (é assim que a respiração designa a vida); mas ele pode ser [pág. 80] simplesmente provável (como a palidez para a gravidez). Nenhuma dessas formas de ligação implica necessariamente a similitude; o próprio signo natural não a exige: os gritos são os signos espontâneos, mas não análogos, do medo; ou ainda, como diz Berkeley, as sensações visuais são signos do tato instaurados por Deus e, no entanto, não se lhe assemelham de maneira alguma12. Essas três variáveis substituem a semelhança para definir a eficácia do signo no domínio dos conhecimentos empíricos.

1. Uma vez que é sempre certo ou provável, o signo deve encontrar seu espaço no interior do conhecimento. No século XVI, considerava-se que os signos tinham sido depositados sobre as coisas para que os homens pudessem desvendar seus segredos, sua natureza ou suas virtudes; mas essa descoberta nada mais era que o fim último dos signos, a justificação de sua presença; era sua utilização possível, a melhor, sem dúvida; mas não tinham necessidade de ser conhecidos para existirem: mesmo se permanecessem silenciosos e se jamais alguém os percebesse, nada perdiam de sua consistência. Não era o conhecimento mas a linguagem mesma das coisas que os instaurava na sua função significante. A partir do século XVII, todo o

11 Logique de Port-Royal, 1ª parte, cap. IV.

domínio do signo se distribui entre o certo e o provável: isso quer dizer que não seria mais possível haver signo desconhecido, marca muda. Não que os homens estejam de posse de todos os signos possíveis. Mas, sim, que só há signo a partir do momento em que se acha conhecida a possibilidade de uma relação de substituição entre dois elementos já conhecidos. O signo não espera silenciosamente a vinda daquele que pode reconhecê-lo: ele só se constitui por um ato de conhecimento.

[pág. 81]

É aqui que o saber rompe seu velho parentesco com a divinatio. Esta supunha sempre signos que lhe eram anteriores: de sorte que o conhecimento se alojava inteiramente na vaga de um signo descoberto, ou afirmado, ou secretamente transmitido. Tinha por tarefa fazer o levantamento de uma linguagem prévia distribuída por Deus no mundo; é nesse sentido que, por uma implicação essencial, ele adivinhava, e adivinhava o divino. Doravante, é no interior do conhecimento que o signo começará a significar: é dele que tirará sua certeza ou sua probabilidade. E, se Deus utiliza ainda signos para nos falar através da natureza, serve-se de nosso conhecimento e dos laços que se estabelecem entre as impressões, para instaurar no nosso espírito uma relação de significação. Tal é o papel do sentimento em Malebranche ou da sensação em Berkeley: no juízo natural, no sentimento, nas impressões visuais, na percepção da terceira dimensão, são conhecimentos apressados, confusos, mas prementes, inevitáveis e constringentes, que servem de signos a conhecimentos discursivos, que nós, porque não somos puros espíritos, já não temos a prerrogativa ou a permissão de atingir por nós mesmos e apenas pela força de nosso espírito. Em Malebranche e Berkeley, o signo gerido por Deus é a superposição sagaz e diligente de dois conhecimentos. Já não há aí divinatio — in-serção do conhecimento no espaço enigmático, aberto e sagrado dos signos; mas um conhecimento conciso e concentrado em si mesmo: a centralização de uma longa seqüência de juízos na figura rápida do signo. Vê-se também como, por um movimento de retorno, o conhecimento, que encerrou os signos no seu espaço próprio, poderá agora abrir-se à probabilidade: de uma impressão a outra, a relação será de signo a significado, isto é, uma relação que, como na sucessão, se desdobrará da mais fraca probabilidade à maior certeza. [pág. 82] “A conexão das idéias

implica não a relação de causa a efeito mas somente a de um indício e de um signo à coisa significada. O fogo que se vê não é a causa da dor que sofro quando dele me

aproximo: é o indício que me previne dessa dor.”13 O conhecimento que adivinhava,

por acaso, signos absolutos e mais antigos que ele, foi substituído por uma rede de

signos construída passo a passo pelo conhecimento do provável. Hume tornou-se possível.

2. Segunda variável do signo: a forma de sua ligação com o que ele significa. Pelo jogo da conveniência, da emulação e sobretudo da simpatia, a similitude no século XVI triunfava do espaço e do tempo: pois competia ao signo reduzir e reunir. Com o classicismo, ao contrário, o signo se caracteriza por sua essencial dispersão. O mundo circular dos signos convergentes é substituído por um desdobramento ao infinito. Nesse espaço, o signo pode ter duas posições: ou faz parte, a título de elemento, daquilo que ele serve para designar; ou é dele real e atualmente separado. Na verdade, essa alternativa não é radical; pois o signo, para funcionar, deve estar ao mesmo tempo inserido no que ele significa e dele distinto. Com efeito, para que o signo seja o que é, é preciso que ele seja dado ao conhecimento ao mesmo tempo que aquilo que ele significa. Como observa Condillac, um som não se tornaria jamais para uma criança o signo verbal de uma coisa, se não tivesse sido ouvido pelo

menos uma vez, no momento em que essa coisa é percebida14. Mas, para que um

elemento de uma percepção possa tornar-se seu signo, não basta que dela faça parte; é preciso que seja distinguido [pág. 83] a título de elemento e destacado da impressão global a que estava confusamente ligado; é necessário, pois, que esta seja dividida, que a atenção incida numa dessas regiões imbricadas que a compõem e que delas tenha sido isolada. A constituição do signo é, pois, inseparável da análise. É seu resultado já que, sem ela, não poderia aparecer. É também seu instrumento, já que, uma vez definido e isolado, ele pode ser reportado a novas impressões; e aí, desempenha em relação a elas como que o papel de um crivo. Porque o espírito analisa, o signo aparece. Porque o espírito dispõe de signos, a análise não cessa de prosseguir. Compreende-se por que de Condillac a Destutt de Tracy e a Gerando, a doutrina geral dos signos e a definição do poder de análise do pensamento se

13 Berkeley. Príncipes de la connaissance humaine. In: Oeuvres choi-sies, t. I,p. 267.

superpuseram exatamente numa única e mesma teoria do conhecimento.

Quando a Lógica de Port-Royal dizia que um signo podia ser inerente àquilo que ele designa ou dele separado, mostrava que o signo, na idade clássica, não é mais encarregado de tornar o mundo próximo de si e inerente às suas próprias formas, mas, ao contrário, de estendê-lo, de justapô-lo segundo uma superfície indefinidamente aberta e de prosseguir a partir dele o desdobramento sem termo dos substitutos com os quais o pensamos. É desse modo que o oferecemos ao mesmo tempo à análise e à combinatória, que o tomamos, de ponta a ponta, ordenável. O signo no pensamento clássico não apaga as distâncias e não abole o tempo: ao contrário, permite desenrolá-los e percorrê-los passo a passo. Por ele, as coisas tomam-se distintas, conservam-se em sua identidade, desenlaçam-se e se ligam. A razão ocidental entra na idade do juízo.

3. Resta uma terceira variável: a que pode assumir os dois valores da natureza e da convenção. Sabia-se desde há muito — e bem antes do Crátilo — que os signos podem ser [pág. 84] dados pela natureza ou constituídos pelo homem. O século XVI também não o ignorava e reconhecia nas línguas humanas os signos de instituição. Mas os signos artificiais só deviam seu poder à sua fidelidade aos signos naturais. Estes, de longe, fundavam todos os outros. A partir do século XVII, dá-se um valor inverso à natureza e à convenção: natural, o signo não é mais do que um elemento subtraído às coisas e constituído como signo pelo conhecimento. Ele é, pois, pres-crito, rígido, incômodo, e o espírito não pode assenhorar-se dele. Ao contrário, quando se estabelece um signo de convenção, pode-se sempre (e é preciso, com efeito) escolhê-lo de tal sorte que ele seja simples, fácil de lembrar, aplicável a um número indefinido de elementos, suscetível de se dividir ele próprio e de se compor; o signo de instituição é o signo na plenitude de seu funcionamento. É ele que traça a divisória entre o homem e o animal; ele que transforma a imaginação em memória

voluntária, a atenção espontânea em reflexão, o instinto em conhecimento racional15.

Foi sua carência ainda que Itard descobriu no “Selvagem de Aveyron”. Desses signos de convenção, os signos naturais não passam do esboço rudimentar, o desenho longínquo que só será concluído pela instauração do arbitrário.

188-208.

Mas esse arbitrário é medido por sua função, e suas regras muito exatamente definidas por ela. Um sistema arbitrário de signos deve permitir a análise das coisas nos seus mais simples elementos; deve decompor até a origem; mas deve também mostrar como são possíveis combinações desses elementos e permitir a gênese ideal na complexidade das coisas. “Arbitrário” só se opõe a “natural” se se quiser designar a maneira como os signos foram estabelecidos. Mas o arbitrário [pág. 85] é também o crivo de análise e o espaço combinatório através dos quais a natureza vai se oferecer no que ela é ao nível das impressões originárias e em todas as formas possí-veis de sua combinação. Na sua perfeição, o sistema dos signos é essa língua simples, absolutamente transparente, que é capaz de nomear o elementar; é também esse conjunto de operações que define todas as conjunções possíveis. A nossos olhos, essa busca da origem e esse cálculo dos agrupamentos parecem incompatíveis, e nós os explicamos facilmente como uma ambigüidade no pensamento dos séculos XVII e XVIII. O mesmo ocorre com o jogo entre o sistema e a natureza. De fato, não há para esse pensamento nenhuma contradição. Mais precisamente, existe uma disposição necessária e única que atravessa toda a

epistémê clássica: é a pertença de um cálculo universal e de uma busca do elementar

a um sistema que é artificial e que, por isso mesmo, pode fazer aparecer a natureza desde seus elementos de origem até a simultaneidade de todas as suas combinações possíveis. Na idade clássica, servir-se de signos não é, como nos séculos precedentes, tentar reencontrar por sob eles o texto primitivo de um discurso afirmado, e reafirmado, para sempre; é tentar descobrir a linguagem arbitrária que autorizará o desdobramento da natureza no seu espaço, os termos últimos de sua análise e as leis de sua composição. O saber não tem mais que desencravar a velha Palavra dos lugares desconhecidos onde ela se pode esconder; cumpre-lhe fabricar uma língua e que ela seja bem-feita — isto é, que, analisante e combinante, ela seja realmente a língua dos cálculos.

É possível agora definir os instrumentos que ao pensamento clássico prescreve o sistema dos signos. É ele que introduz no conhecimento a probabilidade, a análise e a combinatória, o arbitrário justificado do sistema. É ele que dá lugar ao mesmo

[pág. 86] tempo à busca da origem e à calculabilidade; à constituição de quadros

simples elementos; é ele que aproxima todo saber de uma linguagem e busca substituir todas as línguas por um sistema de símbolos artificiais e de operações de natureza lógica. No nível de uma história das opiniões, tudo isso apareceria sem dúvida como uma imbricação de influências, em que seria necessário sem dúvida fazer aparecer a parte individual que cabe a Hobbes, Berkeley, Leibniz, Condillac, aos ideólogos. Mas se se interroga o pensamento clássico ao nível do que arqueologicamente o tornou possível, percebe-se que a dissociação entre o signo e a semelhança no começo do século XVIII fez aparecer estas figuras novas que são a probabilidade, a análise, a combinatória, o sistema e a língua universal, não como temas sucessivos engendrando-se ou repelindo-se uns aos outros, mas como uma rede única de necessidades. E foi ela que tornou possíveis essas individualidades a que chamamos Hobbes ou Berkeley ou Hume ou Condillac.