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A PROSA DO MUNDO

IV. A representação reduplicada

No entanto, a mais fundamental propriedade dos signos para a epistémê clássica não foi enunciada até o presente. Com efeito, que o signo possa ser mais ou menos provável, mais ou menos afastado daquilo que significa, que possa ser natural ou arbitrário sem que sua natureza ou seu valor de signo seja afetado por isso — tudo isso mostra bem que a relação do signo com seu conteúdo não é assegurada na ordem das próprias coisas. A relação do significante com o significado se aloja agora num espaço onde nenhuma figura intermediária assegura mais seu encontro: ela é, no interior do conhecimento, [pág. 87] o liame estabelecido entre a idéia de

uma coisa e a idéia de uma outra. A Lógica de Port-Royal o diz: “O signo encerra

duas idéias, uma da coisa que representa, outra da coisa representada; e sua natureza consiste em excitar a primeira pela segunda.”16 Teoria dual do signo, que se opõe sem equívoco à organização mais complexa do Renascimento; então, a teoria do signo implicava três elementos perfeitamente distintos: o que era marcado, o que era marcante e o que permitia ver nisto a marca daquilo; ora, este último elemento era a semelhança — o signo marcava na medida em que era “quase a mesma coisa” que o que ele designava. É esse sistema unitário e triplo que desaparece ao mesmo tempo

que o “pensamento por semelhança”, e que é substituído por uma organização estritamente binária.

Mas há uma condição para que o signo seja realmente essa pura dualidade. Em seu ser simples de idéia ou de imagem ou de percepção, associada ou substituída a uma outra, o elemento significante não é signo. Ele só se torna signo sob a condição de manifestar, além do mais, a relação que o liga àquilo que significa. É preciso que ele represente, mas que essa representação, por sua vez, se ache representada nele. Condição indispensável à organização binária do signo e que a Lógica de Port-Royal enuncia antes mesmo de dizer o que é um signo: “Quando só se olha certo objeto como representando outro, a idéia que dele se tem é uma idéia de signo e esse primeiro objeto se chama signo.”17 A idéia significante se desdobra, porquanto à idéia que substitui outra se superpõe a idéia de seu poder representativo. Acaso não haveria três termos: a idéia significada, a idéia significante e, no interior desta, a idéia de seu papel de representação? Não se trata, porém, de [pág. 88] um retorno sub-reptício a um sistema ternário. Trata-se antes de um desnível inevitável da figura com dois termos, que recua em relação a si mesma e vem alojar-se por inteiro no in-terior do elemento significante. De fato, o significante tem por conteúdo total, por função total e por determinação total somente aquilo que ele representa: ele lhe é inteiramente ordenado e transparente; mas esse conteúdo só é indicado numa representação que se dá como tal, e o significado se aloja sem resíduo e sem opacidade no interior da representação do signo. É característico que o exemplo primeiro de um signo que dá a Lógica de Port-Royal não seja nem a palavra, nem o grito, nem o símbolo, mas a representação espacial e gráfica — o desenho: mapa ou quadro. É que, com efeito, o quadro só tem por conteúdo o que ele representa e, no entanto, esse conteúdo só aparece representado por uma representação. A disposição binária do signo, tal como aparece no século XVII, substitui-se a uma organização que, de modos diferentes, era sempre ternária desde os estóicos e mesmo desde os primeiros gramáticos gregos; ora, essa disposição supõe que o signo é uma representação duplicada e reduplicada sobre si mesma. Uma idéia pode ser signo de outra não somente porque entre elas pode estabelecer-se um liame de representação, mas porque essa representação pode sempre se representar no interior da idéia que

representa. Ou ainda porque, em sua essência própria, a representação é sempre perpendicular a si mesma: é, ao mesmo tempo, indicação e aparecer, relação a um objeto e manifestação de si. A partir da idade clássica, o signo é a representatividade da representação enquanto ela é representável.

Isso tem conseqüências de grande peso. Primeiramente, a importância dos signos no pensamento clássico. Eles eram outrora meios de conhecer e chaves para um saber; são agora [pág. 89] co-extensivos à representação, isto é, ao pensamento inteiro, alojam-se nele, percorrendo-o, porém, em toda a sua extensão: desde que uma representação esteja ligada a outra e represente em si mesma essa ligação, há signo; a idéia abstrata significa a percepção concreta donde ela foi formada (Condillac); a idéia geral é tão-somente uma idéia singular servindo de signos às outras (Berkeley); as imaginações são signos das percepções donde elas vieram (Hume, Condillac); as sensações são signos umas das outras (Berkeley, Condillac) e é possível finalmente que as próprias sensações (como em Berkeley) sejam os signos do que Deus nos quer dizer, o que delas faria como que os signos de um conjunto de signos. A análise da representação e a teoria dos signos se interpenetram de modo absoluto: e no dia em que a Ideologia, no fim do século XVIII, se interrogar sobre o primado que é preciso dar à idéia ou ao signo, no dia em que Destutt reprovar

Gerando por ter elaborado uma teoria dos signos antes de ter definido a idéia18, é que

sua imediata interdependência já começará a anuviar-se e que a idéia e o signo cessarão de ser perfeitamente transparentes um ao outro.

Segunda conseqüência: essa extensão universal do signo no campo da representação exclui até a possibilidade de uma teoria da significação. Com efeito, interrogar-se sobre o que é a significação supõe que esta seja uma figura determinada na consciência. Mas, se os fenômenos nunca são dados senão numa representação que, em si mesma e por sua representatividade própria, é inteiramente signo, a significação não pode constituir problema. Mais ainda, ela nem sequer aparece. Todas as representações são ligadas entre si como signos; em conjunto, formam como que uma imensa rede; cada uma na [pág. 90] sua transparência se dá como o signo daquilo que ela representa; e todavia — ou, antes, por isso mesmo — nenhuma atividade específica da consciência pode jamais constituir uma

significação. É, sem dúvida, porque o pensamento clássico da representação exclui a análise da significação que nós, que só pensamos os signos a partir desta, temos tanta dificuldade, a despeito da evidência, em reconhecer que a filosofia clássica, de Malebranche à Ideologia, foi inteiramente uma filosofia do signo.

Não há sentido exterior ou anterior ao signo; nenhuma presença implícita de um discurso prévio que seria necessário restituir para trazer à luz o sentido autóctone das coisas. Mas também não há ato constituinte da significação nem gênese interior à consciência. É que entre o signo e seu conteúdo não há nenhum elemento intermediário e nenhuma opacidade. Os signos não têm, pois, outras leis, senão aquelas que podem reger seu conteúdo: toda análise de signos é, ao mesmo tempo e de pleno direito, decifração do que eles querem dizer. Inversamente, a elucidação do significado nada mais será que a reflexão sobre os signos que o indicam. Como no século XVI, “semiologia” e “hermenêutica” se sobrepõem. Mas de uma forma diferente. Na idade clássica, elas não se reúnem mais no terceiro elemento da semelhança; ligam-se neste poder próprio da representação de representar-se a si mesma. Não haverá, pois, uma teoria dos signos diferente de uma análise do sentido. Entretanto, o sistema concede certo privilégio à primeira sobre a segunda; como ela não dá ao que é significado uma natureza diferente da que concede ao signo, o sentido não poderá ser mais que a totalidade dos signos desenvolvida em seu encadeamento; ele se dará no quadro completo dos signos. Mas, por outro lado, a rede completa dos signos se liga e se articula de acordo com os cortes [pág. 91] próprios ao sentido. O quadro dos signos será a imagem das coisas. Se o ser do sentido está inteiramente do lado do signo, o funcionamento está inteiramente do lado do significado. É por isso que a análise da linguagem, de Lancelot a Destutt de Tracy, faz-se a partir de uma teoria abstrata dos signos verbais e na forma de uma gramática geral: mas ela toma sempre por fio condutor o sentido das palavras; é por isso também que a história natural se apresenta como análise dos caracteres dos seres vivos, mas que, mesmo artificiais, as taxinomias têm sempre o projeto de se ajustar à ordem natural ou de dissociar-se dela o menos possível; é por isso que a análise das riquezas faz-se a partir da moeda e da troca, mas que o valor é sempre fundado na necessidade. Na idade clássica, a ciência pura dos signos vale como o discurso imediato do significado.

Enfim, última conseqüência que se estende, sem dúvida, até nós: a teoria binária do signo, a que funda, desde o século XVII, toda a ciência geral do signo, está ligada, segundo uma relação fundamental, a uma teoria geral da representação. Se o signo é a pura e simples ligação de um significante com um significado (ligação que é arbitrária ou não, voluntária ou imposta, individual ou coletiva), de todo modo a relação só pode ser estabelecida no elemento geral da representação: o significante e o significado só são ligados na medida em que um e outro são (ou foram ou podem ser) representados e em que um representa atualmente o outro. Era, pois, necessário que a teoria clássica do signo desse a si própria, como fundamento e justificação filosófica, uma “ideologia”, isto é, uma análise geral de todas as formas da representação, desde a sensação elementar até a idéia abstrata e complexa. Era igualmente necessário que, reencontrando o projeto de uma semiologia geral, Saussure desse ao signo uma definição que pôde parecer [pág. 92] “psicologista” (ligação de um conceito com uma imagem): é que, de fato, ele redescobria aí a condição clássica para pensar a natureza binária do signo.