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crianças Histórias de pretos e de brancos com ilustração de Maria Keil

2.2. livro a materialidade vs imaterialidade

2.2.2. a imaterialidade do livro

“Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter- associações, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a eles associados. ”

Fernando Pessoa

in Pessoa, Fernando (1966). Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática.

O imaterial é algo que não é material. No entanto, se não foi difícil, de uma forma elementar, definirmos o livro, na sua materialidade, como um objecto composto por páginas de papel encadernadas, no que concerne à imaterialidade, a definição não pode ser tão “fechada”.

Neste excerto de Fernando Pessoa, percebemos, facilmente, como funciona o cérebro humano e poderemos considerar este texto como uma analogia com o livro imaterial, nomeadamente com um dos seus aspecto principais e incontornáveis, o hipertexto. O nosso cérebro funciona como o hipertexto, por associação e não por linearidade.

Impera que, antes de avançarmos para outras definições e

considerações, explicitemos a definição de livro digital ou electrónico, o livro imaterial. Assim, recorrendo novamente ao Dicionário do Livro, livro electrónico é “ aquele em que as palavras ou códigos foram

substituídos pelos de uma outra linguagem ou código legível por

máquina; surgiu como alternativa ao livro, texto e documento em suporte papel; não pretende substituir o livro na sua totalidade, mas o seu objectivo é conquistar o segmento do utilizador constituído por

actividades como as de médicos, juristas, engenheiros e altos quadros, que necessitam da informação permanente e actualizada. Apresenta alguns inconvenientes, como a possibilidade de ocorrerem avarias, perda de bateria, exigindo assistência técnica frequente; contudo, o transporte é mais fácil, não é necessário esperar que a obra saia do

prelo, pois a disponibilização do produto é permanente; além disso, representa uma economia apreciável dos recursos naturais, uma vez que não será preciso abater florestas para produzir a pasta de papel; permite uma actualização automática e uma interactividade mais funcional que o livro tradicional, pois qualquer dos modelos até agora inventados, o softbook, o rocketbook e o dedicated reader possuem canetas

electrónicas para escrever. De qualquer modo, é um dado adquirido que o preço do livro em papel tem aumentado substancialmente, mas a versão digital aparece, contudo, ainda, como uma alternativa àquele e menos como um substituto. Livro em forma electrónica. Usa-se por oposição a livro impresso.” (Faria & Pericão, 2008: 778).

Hipertextualidade, como define Kerckhove, é o acesso de forma

interactiva de alguma coisa para algum lado, é a nova forma de arquivo e distribuição de informação e “transforma o conteúdo dos livros em bits de som.” (Kerckhove, 1998: 154).

Existem várias definições de hipertexto, sendo que lhes é comum a não linearidade, a não sequencialidade, sem princípio e sem fim e a

associação à forma processual do pensamento humano.O livro imaterial

pode, também, ser definido por ser não linear e não sequencial,podendo

a leitura ser descontínua, existindo leitura hipertextual e leitura temática, por assunto. Este “objecto” pode existir em qualquer dispositivo

electrónico, sendo que ainda é mais comum “viver” no computador. Portanto, poderemos afirmar que a base da estrutura dos novos media é o acesso não linear.

Assim, para que se perceba exactamente ao que nos estamos a referir, apresentamos a definição de hipertexto presente, também, no Dicionário do Livro. Hipertexto “segundo definiu em 1965 Theodor Holm Nelson perito de informática que inventou este termo, é uma escrita não

sequencial com ligações controladas pelo leitor que pode aceder ao texto em qualquer parte dele, alterá-lo, corrigi-lo, aumentá-lo, eliminar-lhe algumas partes, etc. • Documento que, além da informação que veicula, contem hiperligações ao mesmo ou a outros documentos • Em termos funcionais é um software que se destina à organização de dados ou de

conhecimentos, à aquisição de informações e à comunicação. Texto electrónico, sem existência material, que existe apenas para o leitor, após ter sido recriado pelo computador • Metodologia para organizar a informação numa base de dados em suporte electrónico, de acordo com a estrutura segundo a qual os dados estão inseridos; deve ser-lhe dada preferência em relação ao sistema convencional, sempre que a estrutura dos dados forma a estrutura da base de dados. Através do hipertexto são imediatamente estabelecidos os laços entre as fontes dos dados em vez de se ter que aceder a cada fonte separadamente; na actualidade o hipertexto é utilizado preferencialmente para bases de dados pessoais ou locais; os custos e complexidade da sua aplicação a grandes bases de dados são muito elevados. Permite navegar, desfrutar livremente da informação passando, por exemplo, de um autor ao título de uma suas obras, de uma palavra desse título a todos os títulos que contêm essa palavra; o hipertexto é a etapa mais avançada da pesquisa informatizada • Texto (e não só) em todas as suas dimensões • Conceito de leitura não linear, que gerou programas que permitem a organização e consulta de grandes conjuntos de informações textuais e gráficas; por meio dele qualquer unidade (palavra ou parágrafo) pode ser ligada a qualquer outra(s) unidade(s) criando, desse modo, uma rede de leitura, em que cada leitor pode ler conforme o seu gosto; para o auxiliar o sistema recorda-lhe o itinerário, dá-lhe possibilidade de voltar atrás, novas orientações, percursos, inclusões, etc; a estruturação não linear da informação e das relações internas multiplica os modos e as vias de acesso a essa informação: acesso sequencial, formulação de interrogações, folheamento /browsing da informação conduzido por associação de ideias, navegação aleatória, anotação dos textos

existentes, etc. • Modo de abordar o texto.” (Faria & Pericão, 2008: 623).

No ecrã do computador, a leitura organiza-se geralmente por temas. Os textos em formato electrónico e os livros digitais são consultados mais com o intuito de repositório de dados do que como obra. Isto faz com que haja uma tendência para existir desfragmentação, porque se perde a referência da obra como um todo, com início, meio e fim. Por outro lado, temos o hipertexto como mais valia — de forma contínua introduz textos dentro de outros textos — que nos oferece a oportunidade de lermos de

uma forma não sequencial mas de uma forma particular, da maneira que mais nos convém. A leitura transforma-se completamente quando adicionamos o hipertexto, e torna-se mais simples cruzar informação. Adicionamos a este aspecto a facilidade com que se acede e difunde a informação.

A imaterialidade é também algo que não é palpável, por definição. Sendo assim, e por oposição à materialidade, perde-se o contacto físico com o livro, a relação corpo-a-corpo que faz existir a intimidade, a consciência táctil. No ecrã do computador, não conseguimos tocar o texto como fazemos nas páginas de um livro impresso, não conseguimos sentir o cheiro peculiar do papel, ou certas texturas (como acontece em determinados livros de destinatário preferencial infantil), bem como outras propriedades que contribuem para a intimidade entre o leitor e o livro.

No livro imaterial, o conceito de transportabilidade também é diferente do livro material. Isto é, enquanto conseguimos transportar um conjunto de páginas impressas e senti-las nas nossas mãos, o mesmo não acontece com o texto digital. Numa outra dimensão, o livro imaterial é mais fácil de transportar, porque não é composto por matéria, não tem peso físico, e, por isso mesmo, mesmo estando dependente de mediação electrónica, pode ser mais simples de disseminar universalmente.

Por outro lado, a imaterialidade, vivendo de ausência de matéria palpável, e, no caso do livro, permite, por exemplo, contornar questões de espaço físico e de armazenamento. Conseguimos ter muito mais informação digital num espaço muito menor. As obras físicas de salas e salas de bibliotecas podem ser armazenadas num disco de computador ou circular a uma velocidade inatingível por um livro material. Esta imaterialidade trouxe grandes alterações no acesso à informação e conhecimento, permitindo o acesso de todos, sendo apregoada por muitos como trazendo democracia para a informação.

Segundo Maria Conceição Bastos (2004), ao citar Nunberg, o texto impresso está associado a elementos físicos e espaciais e o computador relaciona-se com o conceito de imaterialidade, isto é, “não existe

correspondência entre os limites do texto e as propriedades físicas do artefacto que o apresenta”. Ainda aludindo à mesma autora, comparando a imaterialidade dos signos no ecrã com a tinta sobre a página, temos a passagem do texto de um registo fixo para um registo volátil. Este registo, apesar de nos proporcionar a sensação de realidade, não é mais do que um conjunto de bytes.

Neste seguimento, de forma a não alterar os nossos cânones de realidade, e de simular a materialidade do livro, houve alguns

investigadores que criaram a ideia do papel e da tinta electrónica e que, mesmo com esta tecnologia, tentam recuperar a forma do livro tal e qual como a conhecemos, com páginas para folhear, de forma a que não se quebrem os nossos velhos hábitos de leitura (Costa, 2001).

O livro imaterial pode, assim, ser um livro vivo que permita a interacção do leitor com o conteúdo do mesmo, seja texto seja ilustrações.

2.3. o livro como comunicação, ludicidade e