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Maria Cecília Correia parte

3.1.4. o livro Histórias de pretos e de brancos

À análise pictórica, naturalmente valorizada neste trabalho, juntamos, agora, uma sucinta análise textual ou literária do volume Histórias de Pretos e de Brancos.

Assinada por Maria Cecília Correia (Viseu, 1919 - Lisboa, 1993), esta obra veio a lume, pela primeira vez, em 1960, com a chancela das Edições Ática, integrando-se na colecção “Infantil Ática”, um conjunto de títulos iniciado com o título Os Dez Anõezinhos da Tia Verde Água, de António Sérgio, e no qual se incluem também outros nomes

reconhecidos e já clássicos da literatura portuguesa para a infância. Referimo-nos, a título meramente exemplificativo, a Sophia de Mello Breyner, com A Menina do Mar, Esther de Lemos, com Borboleta sem Asas, José de Lemos, com O Sábio que Sabia Tudo, Maria Isabel Mendonça Soares, com O Marujinho que perdeu o Norte, ou Ricardo Alberty, com A Galinha Verde.

Histórias de Pretos e de Brancos, título inscrito na capa do volume, ao qual se junta, na folha de rosto, a referência “e histórias da noite”, é a segunda obra publicada por Maria Cecília Correia que conta com o trabalho gráfico de Maria Keil.

Com uma produção literária preferencialmente vocacionada para os leitores mais novos, inaugurada com Histórias da Minha Rua (1953), colectânea igualmente ilustrada pela referida artista plástica e

galardoada com o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho (1953), Maria Cecília Correia é um dos nomes cuja obra, muito provavelmente, valeria a pena voltar a ler e a editar. Recorde-se que Histórias de Pretos e de Brancos, por exemplo, se encontra inacessível para o grande público, podendo apenas ser encontrada em bibliotecas ou, muito pontualmente, em certas colecções particulares.

Com efeito, a singularidade da escrita de Maria Cecília Correia é reconhecida, sendo contemplada em estudos de referência. Natércia Rocha, por exemplo, em Breve História da Literatura para Crianças em

Portugal (2001), assinala que “Com pequenos apontamentos que se fazem contos, Maria Cecília Correia marca a sua presença e publica Histórias da Minha Rua, obra premiada pelo SEIT em 1953. Nos livros que se seguiram, a Autora mantém profunda ligação ao quotidiano e um estilo conciso e directo ao serviço de um olhar relanceado, mas não superficial.” (N. Rocha, 2001: 89). Mais adiante, acrescenta, ainda, “Os pequenos contos, de traçado rápido e olhar posto no factual, constituem o elemento primordial da obra de Maria Cecília Correia. Neste período [últimos anos da década de 60 e primeiros da de 70 do século XX] são publicados vários títulos em que a Autora se não afasta do estilo

adoptado em Histórias de Pretos e Brancos (1960).” (idem, ibidem: 106).

José António Gomes, em Para uma História da Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude (1997), por exemplo, aludindo apenas a Maria Cecília Correia e à sua primeira obra, não deixa de, em nota de rodapé e na conclusão do seu estudo, a incluir no conjunto de nomes que, noutro contexto, diferente do da sua breve panorâmica histórica, mereceriam melhor atenção.

A primeira edição de Histórias de Pretos e de Brancos, como se pode ler numa brevíssima inscrição paratextual, foi feita “por intermédio do Serviço de Escolha de Livros para as Bibliotecas das Escolas Primárias”, uma nota que, em última instância, permite concluir acerca da própria legitimação oficial e aprovação deste livro. Dado à estampa durante o período Salazarista, a sua índole educativa e/ou formativa, ainda que deixada escapar com sábia subtileza, não pode ser desvalorizada, conquanto este aspecto, cremos, não obscureça o valor literário e estético da publicação.

Composta por dez narrativas de extensão reduzida – a saber, “Retrato de uma pretinha”, “História de uma laranja oferecida”, “Brincadeira debaixo da cama”, “Os gatos vadios da ilha”, “Brincadeiras novas”, “A feira” e “O pinheirinho novo”, além de, já sob a designação de “Histórias da noite”, “A Cila”, “O Pedro”, “A Clara e o Tonio” – Histórias de Pretos e de Brancos caracteriza-se pela concentração, materializada quer ao nível da acção, quer ao nível das personagens, quer, ainda, ao nível

espácio-temporal. Na verdade, todas as narrativas ostentam uma simplicidade e uma condensação evidentes, desenvolvendo-se a acção em torno de um nó singular. Se, em certos momentos, se observa a presença de um conflito por resolver – como acontece em “O pinheirinho novo” –, na maioria dos casos, o relato substantiva o pendor

contemplativo e centra-se na descrição e/ou recriação afectiva de personagens infantis – veja-se, por exemplo, “Retrato de uma pretinha”. Relativamente às personagens, importa salientar a presença reiterada de protagonistas infantis e, muito particularmente, a valorização de etnias diferentes – como Dominguinhas, a “pretinha” – e de origens sociais também diversas – por exemplo, do campo/meio rural e da cidade, como em “Brincadeiras novas”. As interacções sociais entre as figuras infantis e, também, entre estas e as figuras adultas pautam-se por um

humanismo e por uma harmonia notórios. Quanto à configuração espácio-temporal, constata-se uma relativa indefinição, aspecto, aliás, comum às narrativas que possuem como destinatário preferencial as crianças, que acaba por determinar uma certa

intemporalidade/atemporalidade e uma maior abrangência/abertura do ponto de vista receptivo. Neste domínio, ainda, salientam-se as alusões a espaços citadinos vs. espaços rurais, a cenários naturais/naturalistas e a ambientes familiares. O exterior e/ou a vida ao ar livre são claramente relevadas.

Do ponto de vista ideotemático, consideramos que a principal isotopia da colectânea é a infância. Na verdade, estes contos de Maria Cecília Correia testemunham um conhecimento sensível do universo infantil, aqui recriado delicadamente em várias das suas facetas: imaginação infantil, jogos, brinquedos e brincadeiras das crianças (tanto das

meninas, como dos meninos), o gosto pelos animais e pela natureza, as ligações familiares e os afectos, em geral (maternidade e fraternidade). Outra linha ideológica estruturante reside na diferença, tópico

corporizado na ficcionalização de temas como o multiculturalismo, a tolerância, a aceitação da diferença, as diferenças sociais

(harmonizadas) e o respeito pelo Outro. Uma nota, igualmente, para assinalar o facto de, no conto “Gatos vadios da ilha”, se versar, além de outras, uma das temáticas menos comuns na literatura de potencial

recepção infantil, a morte. Globalmente, parece-nos possível concluir que estas narrativas de Maria Cecília Correia testemunham a posição humanista da autora.

Uma série de estratégias discursivas rentabilizam alguns dos sentidos fundamentais das narrativas em análise. Dominadas por um registo acessível, tanto do ponto de vista lexical, como sintáctico, os textos em análise captam, de igual modo, a atenção do pequeno leitor pelo registo coloquial, por vezes, dialógico e com marcas oralizantes. Sucintamente, ainda, destacam-se a enumeração (por exemplo, em “A feira”), a personificação, a metáfora e a comparação. Releia-se, por exemplo, a seguinte passagem do conto “Brincadeiras novas”: “O dia parecia que ia ficar sem sol. As nuvens andavam baixinhas, quase ao alcance das mãos dos homens mais altos e passavam como bocadinhos de algodão desfiado. Lambiam o cimo dos montes, como a língua da vaca lambia o bezerrinho novo.” (Maria Cecíilia Correia, 1960). Muito significativas são também a adjectivação expressiva, frequentemente dupla e as

sugestões sensoriais, muitas vezes resultando em representações de carácter sinestésico, como atestam passagens como “(…) tinha uns faróis pintados de encarnado, que se mexiam para todos os lados. O motor era às riscas azuis e brancas. E as rodas tinham flores de pétalas azuis.” (idem, ibidem: s/p) e “As ovelhas que se vendiam enfeitadas e pintadas de cores, os chifres com bolas vermelhas e azuis” (idem, ibidem: s/p), no conto “A feira”, ou “Longe da cidade, junto ao mar, sem mais casas, nem luz eléctrica, outros meninos gritavam também quando viam a lua. Os seus olhos grandes brilhavam e pareciam maiores com o luar” (idem, ibidem: s/p) ou “À sua volta, o escuro era cheio de ruídos que eles não conheciam” (idem, ibidem: s/p), em “A Clara e o Tonio”.

Em conclusão, reunidas num objecto gráfico cuidadosamente editado, breves, simples e – cremos – próximas do seu potencial leitor, estas histórias de Maria Cecília Correia são perpassadas por “um fio de humanidade fraternal” que “atravessa o cotidiano das personagens, o seu mundo de “faz de conta” com a importância devida à realidade simultaneamente frágil e poderosa da criança.” (N. Freire, 1973).