• Nenhum resultado encontrado

2.4 A MORTE DO HOMEM TODO

2.4.1 A Imortalidade da Alma

O tema da imortalidade da alma é corrente desde o período patrístico e encontra resguardo na escatologia em duas fases, pois, para que essa possa ser justificada, é necessário que haja um elemento que subsista após a morte e que aguarde a ressurreição e a retribuição plena. Não nos será possível um aprofundamento do tema na perspectiva patrística, mas nos serviremos da análise apresentada por Schmaus95 no que tangencia o tema.

Segundo Schamaus, a falta de clareza sobre o tema da imortalidade da alma levou a reflexão dos Santos Padres a posições diversas, mas concordantes no tocante a sua existência. A problemática inicial girava em torno da afirmação da imortalidade da alma humana, uma

94

BELINI, L. A. A morte é o fim do homem inteiro, mas não inteiramente: teologia da morte em J. L. Ruiz de la Peña, p. 99.

95

vez que a imortalidade pertencia ao atributo divino, e se a alma seria imortal em si um em relação a Deus.

Suposto que por tnetopsiquismo96 se entenda a opinião segundo a qual a alma humana não é imortal em virtude de sua própria essência, este sistema foi ensinado por todos os Santos Padres. Mas o escritor eclesiástico Eusébio (m.393) e outros teólogos cristãos da antiguidade nos referem que, segundo afirmam alguns homens na Arábia, no momento da morte biológica, a alma se dissolve e, no instante da ressurreição da carne, ela será revificada junto com o corpo, permanecendo imortal desde então. Esta forma de tnetopsiquismo foi rejeitada pelos Santos Padres. Como expoente típico da mente patrística no século II mencionamos Ireneu. Ele opina que a imortalidade da alma se deve à vontade de Deus e está garantida pela presença do Pneuma. A imortalidade consiste no encontro salvífico com Deus e não numa mera sobrevivência à morte.97

Percebe-se, nessa citação, que o ensinamento dos Santos Padres afirma a imortalidade da alma, inclusive citando situação em que se ensinava o contrário como condenável. A preocupação não está centrada na imortalidade da alma em si, mas no dom soteriológico.

A tendência platônica surgirá com Tertuliano ao tentar explicar a imortalidade da alma em virtude de sua própria essência. Para tal, ele se vale da antropologia dualista, estranha até então ao Santos Padres.

Para solucionar a questão como se deve interpretar a sobrevivência do homem à morte já antes da ressurreição, afirmada, mas não esclarecida pela Escritura, os Santos Padres se serviram da filosofia grega. Com isso, os pontos de apoio da Escritura se converteram na doutrina da imortalidade da alma. Contudo, em seu núcleo, esta não foi tomada do pensamento grego como um corpo estranho e incorporada ilegitimamente ao pensamento cristão. Mas, a ideologia platônica foi utilizada como um meio para explicar o que na Escritura estava sem esclarecimento.98

96 O autor não faz uma explicação sobre o termo de forma explicita em seu texto, mas é compreensível como morte da alma ou psiqué.

97 SCHMAUS, M. A fé da Igreja: escatologia, p. 209. 98

Podemos dizer que a doutrina da imortalidade da alma encontra já na teologia desenvolvida pelos Santos Padres amparo e sentido. Essa doutrina navegará em águas tranquilas até a controvérsia provocada pelo Papa João XXII e sua subsequente conclusão com Bento XII, anteriormente desenvolvidas nesse texto99.

A teologia católica reafirma a imortalidade da alma como princípio para que haja a ressurreição individual e a unicidade da pessoa não viesse a se perder frente a uma espécie de alma racional coletiva, tese ensinada por Pietro Pomponazzi, condenada pelo referido concílio. Contra essa ideia, o Concílio de Latrão V (1512-1517) se manifesta da seguinte forma:

Visto que [...] o semeador da cizânia, o antigo inimigo do gênero humano [cf. Mt 13,25], ousou semear e multiplicar no campo do Senhor alguns erros extremamente perniciosos, sempre rechaçados pelos fiéis, sobretudo quanto à natureza da alma racional, a saber, que ela seria mortal ou única em todos os homens, e que alguns que se dedicam à filosofia com leviandade sustentam que tal proposição é verdadeira, pelo menos segundo a filosofia: desejando tomar as oportunas providências contra este flagelo, com aprovação deste santo Concílio, condenamos e reprovamos todas aqueles que afirmam que a alma intelectiva é mortal ou uma única em todos os homens, ou aqueles que alimentam dúvidas a esse respeito: pois ela não só é verdadeiramente, por si e essencialmente, a forma do corpo humano, como se lê num cânon do nosso predecessor Papa Clemente V, de feliz memória, publicado no Concílio de Vienne [*902], mas é também imortal e, dada a multiplicidade de corpos nos quais é infundido individualmente, é multiplicável, multiplicada e multiplicanda.100

Séculos mais tarde a teologia protestante colocará em xeque a ideia da imortalidade da alma como oposição à ressurreição. Em 1956, o teólogo protestante Oscar Cullman publica uma obra intitulada Imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos? A obra se tornou um clássico na discussão do tema, uma vez que estabelecia oposição entre duas verdades fundamentais. Cullman sustenta que a ideia da imortalidade da alma não encontra sustentação nos escritos neotestamentários.

99 Ver 2.1.2 A discussão teológica. 100

Dos dois membros do dilema “imortalidade da alma” ou “ressureição dos mortos”, somente o segundo seria neotestamentário; o primeiro seria uma doutrina filosófica grega, e o que é muito mais grave, incompatível com o ensinamento do Novo Testamento.101

A problemática levantada por Cullman transcende a discussão meramente em torno da tese da imortalidade da alma, mas se estende em direção à compreensão por séculos consolidada da escatologia em duas fases (juízo particular logo após a morte e a espera da parusia). Nesse sentido, a teologia sempre afirmou a sobrevivência de um elemento espiritual colocado entre a morte e a ressurreição da carne.

Uma vez suprimida a ideia de uma alma imortal, seria necessário afirmar a morte total do homem, afirmando, consequentemente, a escatologia em fase única, sendo imediata a ressurreição. Essa proposta influenciou tanto a teologia protestante, quanto a católica.

A ideia de uma morte total, portanto, de uma aniquilação do homem em sua singularidade, sofre feroz crítica tanto no campo católico, quanto protestante. A crítica se concentra em afirmar que, dado o fim total do homem, nada sobreviveria de sua singularidade, não sendo possível mais falar em ressurreição, mas em creatio ex nihilo. Ou ainda, falar em uma segunda criação da mesma identidade, tendo Deus que lhe restituir memórias, experiências, familiaridade, etc. tudo perdido em sua total aniquilação.

Para haver a ressurreição, é preciso que exista “algo” que possa ser ressuscitado. É nesse sentido que se compreende a definição do Concílio de Latrão V. Havendo apenas uma alma racional “geral”, não haveria o que ser ressuscitado por Deus.

É justamente nesse ponto que queremos aprofundar a definição de morte apresentada por Ruiz de la Peña, assinalada no início desta seção.

101 “De los dos miembros del dilema „inmortalidad del alma‟ o „ressurección delos muertos‟, sólo el segundo sería neotestamentario; el primero sería una doctrina filosófica griega y, lo que es mucho más grave, incompatible com la enseñanza del Nuevo Testamento”. POZO, C. Teologia del más alla, p. 167.