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Como vimos até agora, Ruiz de la Peña solidifica, em sua antropologia, uma visão integral de homem sem admitir a linguagem dualista, nem mesmo ao tratar do tema da morte, refutando a ideia da morte como separação corpo e alma. Tal concepção, como já apontado anteriormente, terá reflexos no tema do estado intermediário.

Ruiz de la Peña critica o modelo de estado intermediário que parte da ideia da morte como separação corpo e alma. Tal modelo, tradicionalmente consagrado, propõe que a alma imortal, após a morte, separada do corpo, é julgada; desse julgamento, resulta a retribuição de acordo com os méritos ou deméritos alcançados pela pessoa ao longo de sua vida temporal. Após sua purificação, se necessária e possível, recebe a recompensa da visão beatífica, conforme ensina o Magistério, através da Bulla Benedictus Deos, do Papa Bento XII. A Igreja identifica e ensina esse momento como o juízo particular, restando ao juízo universal o fim da história, quando da parusia e da ressureição dos corpos.

Se se admite que a tese de uma alma separada comporta graves dificuldades; para resolver estas, se elabora uma pontualização conceitual necessitada, por sua vez, de uma justificação. No entanto, em definitivo, não se adverte que os defeitos do discurso radicam na antropologia subjacente; como evidenciaria uma rasa análise da linguagem com que se discutia sobre o crescimento extensivo ou intensivo, tal antropologia conduz fatalmente até o dualismo, separando-se, assim, do ponto de vista bíblico e da doutrina de Vienna.105

Além do problema antropológico, Belini reforça a compreensão de Ruiz de la Peña considerando o estado intermediário como um hiato entre morte e retribuição imediata e a parusía. Convém demonstrar que Ruiz de la Peña não nega em momento algum a retribuição imediata ou visão beatífica, mas não a compreende dentro de um esquema representativo que introduza um estado de “espera” até a consumação final.

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Este esquema, como se percebe, exige um hiato entre a morte da pessoa, quando começa a retri uição e o juízo final. É este “período” que foi chamado de “estado intermediário”, pensado geralmente como uma “duração extensa, coextensiva e paralela ao tempo hist rico” (OD, p. 324).106

A crítica de nosso autor em relação ao problema temporal não recebe grande atenção, pois ele mesmo considera não ser possível falar em uma condição atemporal que iguale Deus e sua criatura. Aliás, essa será sua crítica a Barth, Althaus e Brunner quanto à teoria da ressureição imediata, que veremos logo a seguir.

Para dar uma solução ao problema do estado intermediário sem cair em uma antropologia dualista ou em uma simples transposição da realidade temporal, Ruiz de la Peña propõe a seguinte hipótese, que aqui iremos transcrever para manter a fidelidade ao texto e permitir a análise comparativa posterior:

Em linha hipotética, não se vê porque não se possa falar de uma duração sucessiva, mas descontínua; sob a base dessa descontinuidade, a ideia de que o morto, ao transcender o tempo, transpassa de uma só vez a distância que ainda nos separa a nós (submetidos a um tipo de sucessão contínua) do fim da história e se instala no

eschaton, não parece descartável a priori e ganha verossimilidade quando se verifica

sua capacidade de resposta as interrogações dos representantes tradicionais.107

Com essa proposição hipotética, Ruiz de la Peña se aproxima da proposta da escatologia imediata, sem considerar o estado intermediário nos termos tradicionais, no entanto, sem negá-lo. Em seu texto, essa posição deve ser garimpada, uma vez que não fica claro sua opção. Compreende-se a proposta nos seguintes termos: na morte, o homem transcende sua condição temporal e espacial, permitindo manter uma sucessão descontinua – morte, retribuição imediata, eschaton e ressurreição. Morte e ressurreição não acontecem no

106 BELINI, L. A. A morte é o fim do homem inteiro, mas não inteiramente: teologia da morte em J. L. Ruiz de la Peña, p. 145.

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“En línea de hipótesis, no se ve por qué no pueda hablarse de una duración sucesiva, pero discontinua; sobre

la base de esa discontinuidad, la idea de que el muerto, al trascender el tiempo, traspasa de golpe la distancia que aún nos separa a nosotros (sometidos a un tipo de sucesión continua) del final de la historia y se gana verosimilitud cuando se verifica sua capacidad de respuesta a los interrogantes de las representaciones tradicionais”. RUIZ DE LA PEÑA, J. L. La otra dimensión: escatologia Cristiana, p. 396.

mesmo instante, mas também não estão separados por uma sucessão contínua de tempo paralelo ao nosso; são separados por uma sucessão descontinuada, ou ainda, uma sucessão de acontecimentos e “não temporal”.

Sendo assim, podemos concluir este capítulo afirmando os seguintes pontos: Ruiz de la Peña centra sua argumentação acerca do estado intermediário a partir de uma antropologia teológica integral, cuja fundamentação é basicamente escriturística. A leitura feita pelo autor das definições magisteriais sobre o tema giram em torno da afirmativa de manter a antropologia integral, negando os dualismos. Por fim, a primeira edição da obra La Otra Dimensión cumpre sua proposição de ser um manual de escatologia, tendo uma ótima fundamentação antropológica, deixando em aberto o tema do estado intermediário e da ressurreição, uma vez que o autor compreende ser um tema bastante truncado à época.

3 A PERSPECTIVA ESCATOLÓGICA DE RUIZ DE LA PEÑA APÓS 1979

Apresentamos, até o presente momento, a perspectiva escatológica de Ruiz de la Peña até o ano de 1979, momento escolhido para um corte hermenêutico no pensamento de nosso autor em função da publicação do documento da Congregação da Doutrina da Fé sobre algumas questões respeitantes à escatologia. A partir desse corte, buscaremos responder à pergunta fundamental deste trabalho e verificar a mudança do pensamento escatológico de Ruiz de la Peña após tal publicação.

3.1 A PUBLICAÇÃO DA “CARTA SOBRE ALGUMAS QUESTÕES RESPEITANTES À