• Nenhum resultado encontrado

2 PRIMEIRO VAGÃO: A CONSTRUÇÃO DO PERCURSO

2.12 A implicação

A pesquisa não gera apenas mobilização de saberes, mas também de afetos. Mais do que a necessidade de ter simpatia pelo que se estuda, como já dizia Max Weber (1951, citado por Amado, 2005), é preciso haver simpatia também entre as pessoas que fazem parte de uma pesquisa.

Lévy (1994) e Devereux (1980, citado por Amado, 2005) apontam que os processos de transferências e contratransferências atuam como motor da pesquisa. Para

19 As devolutivas à empresa incluíram esta pesquisa de mestrado, a de doutorado e o Projeto “Conexões de Saberes sobre o Trabalho”.

Freud (1925, citado por Amado, 2005), existem elementos transferenciais em todas as relações humanas.

A psicanálise acabou se introduzindo como novidade no processo de conhecimento (...) quando estendeu o universo da ciência para o próprio sujeito, tomando-o, enquanto tal, na sua relação com o objeto: da exterioridade de um objeto e da neutralidade de um pesquisador à cumplicidade entre os dois. Esse novo trajeto surge quando Freud aborda a transferência que supera as dicotomias existentes entre sujeito e objeto, objeto e método, causa e efeito aparecendo pela primeira vez na história da ciência a tentativa de captar o sujeito tal qual se constituiu como objeto, como parte determinante do real. A novidade vai ser encontrada em um tipo de relação, não mais de sujeito-objeto, mas entre dois sujeitos. O objeto, no contexto da transferência, não será algo destituído de qualquer vontade, que passivamente se submete às manipulações do sujeito, mas pelo contrário, algo vivo, com dinâmica própria, que escapará às pretensões da previsibilidade absoluta e do controle. (Heloani & Capitão, 2007, p. 24)

Lewin (1994, citado por Dubost & Lévy, 2005) já afirmava que o pesquisador precisa entender-se com as resistências e receios do grupo, assim como obter a cooperação dos sujeitos que participam da pesquisa. Ou seja, é preciso implicação ativa de todos os atores, o que não se limita a uma aceitação passiva da presença do pesquisador e da própria pesquisa, mas sim exige uma familiarização e identificação dos objetivos propostos. Essa familiarização é o que promove um vínculo de confiança.

A confiança entre pesquisadora e sujeitos foi fundamental para o acesso à realidade de trabalho, assim como fica claro na fala do inspetor Pedro em um momento de devolutiva:

Eu também, eu tentei passar pra você o real da coisa, porque o negócio é o seguinte, igual eu [sic] sempre te [sic] falei, a gente tem normas, tem que seguir as normas. Mas também se eu ficasse, aproveitasse de você e falasse só as coisas bonitas como a ferrovia quer e tal e coisa, não seria uma coisa verdadeira, entendeu? Não seria verdadeiro. Já que vocês estão aqui pra ver o real funcionamento, vocês tem [sic] que ver as coisas certas, as coisas erradas, o que é feito para resolver o problema. Então, por isso que eu falei várias coisas aqui, né? E realmente é o que a gente faz, a forma que atua.

O inspetor autor dessa fala foi um dos últimos dos quais consegui me aproximar. Foram cinco meses de inserção no campo para que construíssemos juntos dados significativos para a pesquisa, quando ele me permitiu acompanhar seu trabalho e realizamos algumas entrevistas. Deixar claro que eu gostaria de ver o trabalho como ele é, demandou tempo – na realidade, tempos, tempos diferentes para cada trabalhador. A implicação é um processo subjetivo, por isso não se dá de forma padronizada em um grupo, muito menos de forma passiva. Passar o real da coisa para o pesquisador é uma escolha do sujeito. Nesse sentido, a pesquisa é “arte de construir possibilidades de diálogo” (Hissa, 2013, p. 38), só se dialoga quando há, pelo menos, dois sujeitos implicados, ativos na construção de conhecimentos.

Certo dia, depois de fazer incontáveis perguntas, fui surpreendida por um inspetor que propunha uma troca de papéis: ele me apresentaria uma lista de questionamentos e a mim caberia as respostas em um meio onde, até então, só eu fazia as perguntas. Algumas das questões foram: Métodos ergológicos, o que são? Qual o peso dos dados quantitativos e qualitativos na pesquisa? E qual tem mais importância? Como proceder na abordagem de situação de trabalho? Gostar do objeto de estudo é necessário para o mestrado? Os

laços que são formados obrigatoriamente devem ser cancelados ao término da pesquisa? Qual o perfil do bom pesquisador? Podemos afirmar que em uma pesquisa os seres humanos não passam de objetos de estudo?

Se a implicação na pesquisa exige participação ativa dos sujeitos para a possibilidade de construção de diálogos, talvez eu não devesse ter ficado tão surpresa com a lista de questionamentos, nada fáceis de responder, diga-se de passagem, do inspetor.

Como poderemos pensar em um diálogo feito de perguntas e respostas em que, principalmente, as perguntas são estruturadas a partir apenas dos que perguntam? Como não pensar em vias de mão dupla, em que os sujeitos do mundo, construída a necessária relação de intimidade, também pudessem encaminhar questões aos sujeitos do conhecimento? Não seria esse o significado essencial do diálogo? Não é a partir dele que as vozes do mundo se tornam mais audíveis? (...) Emerge, forte, a ideia de fazer com o outro: os sujeitos do mundo não seriam objetos passivos, mas participantes ativos da pesquisa. (Hissa, 2013, p.132)

Esse mesmo inspetor, em outro dia, tirou-me o caderno de campo da mão e anotou com a minha própria caneta: Laís anota tudo, até as caretas das pessoas. Laís aperta e

solta a caneta. Laís come biscoito de gergelim. Laís fica brava por eu ter rabiscado o caderno dela. Ele me dizia que também me observava. Além de observar a si mesmo,

como já dizia Clot (2010), a pesquisa provoca também uma relação mútua não só de observação, mas de afetos e vínculos, “o ‘objeto’ estudado nunca é, portanto, totalmente exterior ao sujeito que o observa e não sai incólume dessa observação, como, aliás, o próprio observador” (Amado, 2005, p. 281).

Apesar de ser fonte imprescindível para a pesquisa, o entrelaçamento das subjetividades deve ser tomado também com certa cautela. As relações de pesquisa, por

mais que muitas vezes se aproximem de laços de amizade, não devem se confundir com relações pessoais. Há limites no envolvimento. O pesquisador deve estar “permanentemente na busca de uma implicação bem temperada onde se encontram misturados a vida e o conhecimento, o seu próprio desejo e seu estabelecimento ético” (Amado, 2005, p. 283). Assim como afirma Eugéne Enriquez (2001, citado por Amado, 2005, p. 283), “a implicação não se concebe sem simpatia e sem distância”. Entretanto, ao manter-se exterior a essa implicação, há poucas possibilidades de dominá-la. Para Devereux, (1980, citado por Amado, 2005), a subjetividade é fonte de erros quando é negada, disfarçada em uma metodologia que, com o pretexto de neutralidade, se mostra um caminho profícuo para a imposição de pré-construções (Amado, 2005).