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4 TERCEIRO VAGÃO: POR QUE PUNIR OS MAQUINISTAS?

4.3 As metas

A dupla função dos inspetores, de solucionar os problemas da circulação dos trens e fiscalizar os trabalhadores, atrapalha o seu investimento na formação dos maquinistas e, somada à alta cobrança de metas da ferramenta de gestão, faz com que eles passem a trabalhar à procura dos erros, pois, mais que fiscalizar, eles precisam punir os maquinistas. Assim como afirma Garcia (2004), normalizar os indivíduos “constitui, a bem da verdade, uma arte de punir” (p. 39).

Antigamente, você preparava as pessoas para o trabalho, em uma condição melhor, um padrão melhor de trabalho. Tudo em geral. Hoje, com essa ferramenta [de gestão], você é cobrado se você não tem um ponto negativo do seu colega. Você tem que ter um ponto negativo dele. Não adianta você apresentar tudo, que o rapaz é bom, a vida dele toda, que não adianta. Pra [sic] ferrovia não funciona. (Flávio, inspetor)

Conforme descrito em documento oficial interno da empresa, a função prescrita aos inspetores ferroviários é garantir a correta execução dos procedimentos, fazendo que os maquinistas cumpram à risca todas as regras que regulam as operações da ferrovia, no trecho de sua responsabilidade. Para tanto, eles têm uma série de metas para a aplicação dos instrumentos da ferramenta de gestão, quais sejam:

 aplicar o teste de eficiência em todos os maquinistas a cada mês;

 realizar o acompanhamento de, pelo menos, uma viagem de todos os maquinistas a cada três meses;

 a cada dez dias, cada inspetor tem que realizar, pelo menos, cinco testes de eficiência e três acompanhamentos de viagem;

 fazer a leitura de, pelo menos, um gráfico de viagem de cada maquinista a cada quatro meses;

 reaplicar todos os testes negativos do mês anterior a cada mês;

 os testes, os acompanhamentos de viagem e as leituras dos gráficos devem ser aplicados todos mês, em todas as sublocalidades do trecho, com maior

incidência naquelas onde há realização de manobra de locomotivas e onde há presença de serra;

 30% dos testes devem ser aplicados durante a noite e 30% devem ser aplicados no fim de semana; os demais dias da semana devem ter um número de testes equilibrado;

 a cada mês, a empresa indica cinco itens dos regulamentos ferroviários que foram muito descumpridos no último mês, para cada maquinista, e os inspetores devem verificar pelo menos um deles;

 10% dos testes de eficiência devem ser negativos, e os acompanhamentos de viagem e a leitura de gráfico devem estar na média de 80% de aproveitamento.

Vale ressaltar que a meta descrita nesse último item não está escrita em nenhum documento da empresa, mas é uma meta tácita, cobrada semanalmente pelo supervisor dos inspetores nas reuniões de segunda-feira, pois gera comparações entre as equipes dos diversos supervisores. Mensalmente, a empresa elabora tabelas e gráficos comparativos entre as equipes de inspetoria. Uma equipe com poucos testes negativos, ou com aproveitamentos muito altos nos resultados de acompanhamento de viagem e de leitura do gráfico, é considerada desatenta e pouco eficiente e precisa justificar ao gerente o porquê de não ter conseguido realizar uma “boa” fiscalização dos maquinistas naquele mês.

A meta tácita, somada às demais, aponta quantos, quais, onde e quando achar os erros dos maquinistas. Nesse sentido, o trabalho do inspetor só é avaliado positivamente se ele puder apontar os erros desejados pela empresa acerca do trabalho dos maquinistas.

Se você chega com menos de 10% lá, todo mundo vai te olhar diferente, entendeu? (...) na hora que você pega uns dois negativos no mês, três negativos assim, ainda

mais se for ali pelo, até o décimo dia, né? Você saiu ali e pegou uns três negativos, pô! [sic] Aquilo, o resto do mês, você tá [sic] mais tranquilo, ué! Você não tem que ficar naquela, porque tem situações que você sai da sala para arrumar um negativo, entendeu? (Adão, inspetor)

Hoje em dia nós estamos de um jeito em que a gente não pode dar 100% em [acompanhamento de viagem e leitura de gráfico] mais não, sempre tem que ter algum [erro]. Se você der 100% em alguém, você tem que justificar porque você deu esse 100% (...) então a gente vive em poder de metas e números. (Pedro, inspetor)

Eles tem [sic] que achar erro, porque é, infelizmente, né? A política da chefia. Aí chega um, no final do mês, o inspetor vai mostrar pra [sic] gerência e pra [sic] supervisão, aí o cara vai acabar sendo penalizado, né? (...) Então quer dizer, [os inspetores] também são cobrados. Eu num tô [sic], essa minha reclamação num [sic] é diretamente deles não, que [sic] eles também são cobrados, entendeu? Isso aí é de supervisão pra cima. (Ernane, maquinista)

O poder disciplinar “está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar” (Foucault, 2013, p. 170). Controlados pelas metas que os impulsionam a encontrar os erros dos maquinistas em relação a normas que ultrapassam 400 itens a serem fiscalizados, os inspetores tornam-se aplicadores de uma punição exaustiva. Como a completa obediência às normas é impossível e invivível (Schwartz & Durrive, 2010), as possibilidades de punição são quase inesgotáveis. Não adianta cara, você pode prestar atenção 100%, você vai errar, o sistema vai tá [sic] sempre te dando uma rasteira (Heitor, maquinista).

Tem que punir. O ROF fala isso: ao término de todas as conversas, tem que ter a palavra câmbio. Todas. Uma que você deixar de fazer, tem que punir, é só esperar a hora certa, fica lá no rádio esperando. Às 12h59min, você não falou o câmbio, pronto (...) Você está lidando com ser humano, uai! Robô é que você vai chegar lá e vai tá [sic] fazendo tudo certinho, ser humano não tem jeito, por mais que seja todo mundo cobrado, por mais que tenha mil testes de câmbio lá, alguém ainda vai esquecer de falar. (Fernando, inspetor)

[Os inspetores] tem [sic] que arrumar uma desculpa, pra te dá [sic] uma punição de um ponto, pra [sic] você nunca ser 100%. (Augusto, maquinista)

Vamos supor, se eu quiser em uma viagem dar cinco testes negativos na mesma pessoa, eu dou (...) Imagina uma pessoa de olho em você 24 horas, vai acabar achando um monte de coisa sua errada. (Bruno, inspetor)