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A importância deste problema

No documento W.R.Bion e o conceito de Barreira de Contacto (páginas 121-125)

R: Oh, porque têm eu sou mesmo assim sou mesmo feia e também, não sou capaz de lhes responder nada (silêncio) sempre me senti assim toda a

IV. Kant: Fenómenos e Númenos

4.1. A importância deste problema

Os problemas epistemológicos mais significativos nunca deixaram de estar presentes no longo percurso da história da filosofia. Várias escolas e pensadores, ao longo de séculos, ofereceram diferentes perspectivas e soluções face a um muito complexo problema que congrega a ciência, a epistemologia, a filosofia da ciência e a psicologia: como é que nos relacionamos com o mundo à nossa volta? Dentro deste quadro, encontra-se a muito cara questão filosófica: “como é possível ao homem conhecer?”

A questão dos limites do conhecimento ainda é, e provavelmente continuará a ser, de algum modo ainda não inteiramente respondida. No entanto, há algumas figuras na história da filosofia que se destacam eternamente, ao terem lidado com esta questão de um modo particularmente profundo e consequente – Immanuel Kant encontra-se certamente entre elas.

A distinção entre fenómenos e númenos ultrapassa largamente a esfera da discussão epistemológica, sendo precisamente nessa medida que ela aqui nos interessa particularmente. Esta distinção diz respeito ao modo como lidamos com o mundo; à nossa posição relativa neste complexo e intrincado tecido que constitui o mundo exterior e interior.

A questão dos limites do conhecimento como Kant a considera é, ao mesmo tempo, uma questão central para a epistemologia e para a antropologia filosófica, na medida em que a concepção de Kant, quer do sujeito quer do objecto, é intrinsecamente antropológica ao dizer respeito à própria posição do Homem no mundo. Os limites do conhecimento são duplamente determinados pelo sujeito: por um lado, pelo facto de a sua capacidade de conhecer os objectos se restringir ao plano fenoménico e, por outro lado, pelo facto de ser o próprio sujeito que determina os objectos enquanto tais. Dito de outro modo, se é verdade que, para Kant, os objectos só o são enquanto o são para um sujeito, é também verdade que os objectos só o são porque existe um sujeito. A própria noção de objecto implica a ideia de projecção – é o sujeito que coloca o objecto no mundo, isto é, que o faz ser o que é.

115 Podemos ler a seguinte passagem de Irene Borges-Duarte, em que refere que Kant concentra:

“(...) a atenção não tanto ao que provém do objecto, mas sobretudo ao que é posto no objecto, no próprio acto de conhecimento, fazendo dele isso mesmo: ob-jectum – aquilo que apenas concebo se e só se o lanço para o horizonte do que está ante mim.” (Borges-Duarte 2013, p. 6-7)

Esta qualidade projectiva tem, em particular na investigação psicanalítica, enorme relevância. Para além do horizonte estritamente epistemológico, a ideia de projecção liga o sujeito ao seu objecto de um modo psicológico. Quer consideremos a concepção de projecção em Freud – como o movimento mental de atribuição ao objecto de qualidades do sujteito – quer o sentido que tem para Klein – como o movimento mental de colocar dentro do objecto qualidades do sujeito – o aspecto psicológico da projecção, genericamente considerado, aproxima intimamente a epistemologia e a antropologia filosófica da investigação psicanalítica.

As estruturas inconscientes subjacentes a tudo o que ocorre na vida mental convida ao questionamento das motivações inconscientes relativas à formulação de qualquer objecto enquanto fenómeno, e ao sentido que o sujeito atribui a cada manifestação do mundo exterior. Por outro lado, também o questionamento de até que ponto cada fenómeno é real, problematiza a própria realidade do mundo exterior para o sujeito, tornando possível observar e considerar clinicamente a alucinação e os estados psicóticos.

Assim, as intuições de Kant acerca da natureza da relação entre sujeito e objecto, contêm já a ideia de uma complexa estrutura psicológica do sujeito subjacente a toda a sua relação com o mundo.

No Prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant escreve:

“(...) só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos.” (Kant 1787, B XVIII, p. 21)

Por outro lado, podemos distinguir três dimensões diferentes na noção kantiana de objecto: o objecto enquanto fenómeno; o objecto transcendental e o númeno. O primeiro representa cada objecto particular do conhecimento

116 possível, limitado e delimitado pela nossa própria constituição subjectiva de agentes no processo do conhecimento.

O segundo, o objecto transcendental, refere-se à ideia de um objecto em geral (e que, em cada ocorrência particular consititui o fenómeno); que se distingue da noção de númeno – o terceiro - pois este significa o que as coisas poderão ser, concretamente e em si, perspectiva inalcançável pela referida constituição subjectiva que assiste ao sujeito do conhecimento. Kant distingue-os do seguinte modo:

“O objecto a que reporto o fenómeno em geral é o objecto transcendental, isto é, o pensamento completamente indeterminado de algo em geral. Este objecto não se pode chamar o númeno, pois dele não sei nada do que é em si e dele não possuo nenhum conceito, que não seja o de um objecto de uma intuição sensível em geral, que, portanto, é idêntico para todos os fenómenos.” (Kant 1781, A 253, p. 267)

Assim, ao instaurar toda esta nova noção de objecto, Kant transforma profundamente a noção de sujeito, investindo-o com a capacidade e a função estrutural de criar os objectos, abrindo um novo caminho de pensamento em que a nossa mente determina, de um modo activo, o que o mundo é para nós. Creio que Kant, a este respeito, estendeu os limites do pensamento para além das fronteiras assumidas pela discussão entre escolas genericamente racionalistas e empiristas, e é por isso que o seu pensamento ainda ecoa também fora do plano filosófico.

A filosofia crítica de Kant, no plano epistemológico, apresenta-se desde logo como uma tentativa de definir os limites da metafísica e as operações legítimas da razão pura. Mas, ao descobrir e definir as funções da sensibilidade e do entendimento, Kant instaura um caminho de investigação acerca da natureza do sujeito, com profundas consequências para todas as áreas da investigação humana, e certamente para a filosofia e a psicanálise.

Na segunda edição da Crítica da Razão Pura (1787), podemos ler:

“(...) não podemos nunca ultrapassar os limites da experiência possível, o que é precisamente a questão mais essencial desta ciência. Porém, a verdade do resultado que obtemos nesta primeira apreciação do nosso

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conhecimento racional a priori é-nos dada pela contra-prova da experimentação, pelo facto desse conhecimento apenas se referir a fenómenos e não às coisas em si que, embora em si mesmas reais, se mantêm para nós incognoscíveis.” (Kant 1787, B XIX-XX, p. 21-22)

A importância do trabalho de Kant a respeito deste problema não reside, a meu ver, na ideia de que Kant nos oferece uma resposta final a uma tão complexa e crucial questão filosófica – reside antes no facto de o seu trabalho marcar um ponto de viragem no pensamento humano ao mudar a posição do observador face ao seu objecto. Kant convida-nos a refocar os elementos básicos deste problema, e fá-lo movendo-se na direcção oposta àquela geralmente ditada pelos nossos preconceitos.

Assim, não surpreende que tanto Freud como Bion, mesmo não se tendo dedicado a um estudo aprofundado dos textos filosóficos, se tenham sentido influenciados e inspirados com a profundidade deste problema kantiano e o modo como mudou o pensamento ocidental.

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No documento W.R.Bion e o conceito de Barreira de Contacto (páginas 121-125)