• Nenhum resultado encontrado

R: Oh, porque têm eu sou mesmo assim sou mesmo feia e também, não sou capaz de lhes responder nada (silêncio) sempre me senti assim toda a

IV. Kant: Fenómenos e Númenos

4.3. A leitura de Freud

Freud foi um interessado leitor de filosofia, mesmo que tenha deixado claro que nunca se devotou a um estudo sério de nenhum dos filósofos mais relevantes da história do pensamento, nem das suas obras. Não obstante o facto do interesse de Freud em Kant se ter manifestado relativamente a vários assuntos, como a moral e a ética, havendo a este propósito o registo de várias referências nos seus trabalhos escritos, a distinção de Kant entre fenómenos e númenos e as suas profundas consequências, terá produzido uma impressão no pensamento de Freud, tendo-o levado a trazer este assunto para o plano psicanalítico.

Freud estabelece uma comparação entre esta distinção de Kant e a sua própria distinção fundamental entre o que é consciente e o que é inconsciente, usando o problema kantiano para pensar acerca da natureza deste elemento fundamental da psicanálise, que é a estrutura inconsciente fundadora da realidade psíquica, e a sua natureza quase inacessível.

Creio que podemos identificar dois momentos diferentes no pensamento de Freud a este respeito.

Um primeiro, que podemos ler na segunda parte da Interpretação dos Sonhos (1900):

“(...) [o inconsciente] na sua mais profunda natureza, é-nos tão desconhecido como a realidad do mundo exterior, e é-nos tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência como é o mundo exterior pelas comunicações dos nossos orgãos sensoriais.” (Freud 1900, p. 613)127

Nesta passagem, Freud parece estabelecer uma correspondência entre o inconsciente e a coisa-em-si como “a realidade do mundo exterior”. O

127“(...) [the unconscious] in its innermost nature it is as much unknown to us as the reality of

the external world, and it is as incompletely presented by the data of consciousness as is the external world by the communications of our sense organs.” (Freud 1900, p. 613)

127 inconsciente é apenas parcialmente acessível a nós, tal como o mundo exterior é apenas parcialmente acessível a nós através dos fenómenos. Apesar de este pensamento fazer sentido, e de transmitir de modo correcto e claro a função limitada atribuída por Kant ao entendimento, diria que Freud não havia ainda captado todo o sentido da distinção kantiana entre fenómeno e númeno. A meu ver, não faz sentido comparar o inconsciente com o númeno porque as suas naturezas são essencialmente diferentes. Existe uma diferença crucial entre algo apenas parcialmente conhecível ou de muito difícil acesso e algo essencialmente incognoscível.

As coisas-em-si são incognoscíveis; o inconsciente, para Freud, não é.

Creio que esta linha de pensamento evoluiu na mente de Freud, levando a um segundo momento, cerca de quinze anos mais tarde, onde podemos ler:

“Tal como Kant nos avisou para não ignorarmos o facto de que as nossas percepções são subjectivamente condicionadas e não devem ser consideradas como idênticas ao que é percepcionado embora incognoscível, também a psicanálise nos avisa para não identificarmos as percepções da consciência com os processos mentais inconscientes que são o seu objecto. (...) Regozijamo-nos, contudo, com a noção de que a correcção da percepção interna não oferece tantas dificuldades como a correcção da percepção externa – isto é, os objectos internos são menos incognoscíveis do que o mundo exterior.” (Freud 1915, p. 171)128

Ficamos, efectivamente, satisfeitos – não pelo facto de haver uma hipótese de se conhecer alguma coisa acerca dos “objectos internos” mas porque, assim, passa a ser identificada uma clara distinção entre elementos inconscientes e coisas-em-si; entre um objecto de pensamento e observação, mesmo que

128 “Just as Kant warned us not to overlook the fact that our perceptions are subjectively

conditioned and must not be regarded as identical with what is perceived though unknowable, so psycho-analysis warns us not to equate perceptions by means of consciousness with the unconscious mental processes which are their object. (...) We shall be glad to learn, however, that the correction of internal perception will turn out not to offer such great difficulties as the correction of external perception – that internal objects are less unknowable than the external world.” (Freud 1915, p. 171)

128 extremamente difícil de apreender – “menos incognoscível” – e um conceito

negativo que marca os limites do cognoscível.

De certo modo, poderíamos considerar que o que Kant faz é postular a existência de uma tal coisa-em-si, uma vez que nada pode conhecer dela enquanto é em-si. Tal como vimos, sem essa existência – da coisa-em-si – não poderia haver fenómeno e, por outro lado, o fenómeno é manifestação de algo. Pensando por este ponto de vista, poderíamos também dizer que o inconsciente para Freud é postulado a partir da consciência.

Consideremos o comentário de P. Assoun:

“(...) tal como Kant postulou por detrás do fenómeno a existência da coisa em si, também ele [Freud] postulou por detrás do consciente, que é acessível à nossa experiência, o inconsciente, que não poderá ser nunca objecto de uma experiência directa.”129

Contudo, se acompanharmos o pensamento de Kant – e, portanto, compreendermos que o problema intransponível é o conhecimento das coisas- em-si, enquanto elas são em-si, e não a sua existência – poderemos igualmente compreender o pensamento de Freud, quanto à comparação entre inconsciente e coisa-em-si e, desse modo, tentarmos contribuir para a superação do que P. Assoun chamou “diálogo de surdos”130

A existência de aquilo a que Freud chamou inconsciente não está em questão, mas antes a possibilidade de o conhecer. É neste sentido que nos podemos “regozijar” pelo facto de o inconsciente ser “menos incognoscível” que a coisa-em-si.

129 “(...) de même que Kant postulait derrière le phénomène la chose en soi, de même il

postulait derrière le conscient, qui est accessible à notre expérience, l‘inconscient, qui ne peut jamais être l‘object d‘une expérience directe.” (Assoun, 1995 p.222)

129

No documento W.R.Bion e o conceito de Barreira de Contacto (páginas 133-136)