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2 A ECONOMIA SOLIDÁRIA E O MERCADO

2.1 O RESGATE HISTÓRICO DO MERCADO E SUA GENEALOGIA

2.1.2 A importância do mercantilismo para a Revolução Industrial

O mercantilismo foi uma resposta a vários desafios surgidos na época, tais como: o estado centralizado (figura recente na história), a política externa e o estabelecimento de um poder soberano, a nacionalização do mercado. Seu início deu-se, porém, sempre com uma intensa regulamentação; assim, é importante destacar que a regulamentação e os mercados cresceram juntos (POLANYI, 2000).

Apesar destas novas características do mercantilismo, a base do seu sistema econômico permaneceu ligada às unidades domésticas camponesas, ainda organizadas segundo os princípios de redistribuição ou domesticidade, porém agora integradas nacionalmente através de um mercado interno regulado pelo Estado. Quanto à terra, por sua vez, nota-se que não houve mudança de situação regulamentar com relação ao feudalismo, época em que a posse e o uso da terra – base de toda a organização social – eram regidos por regras legais e costumeiras completamente estranhas às regras do mercado; e assim manteve- se no mercantilismo. O mesmo deu-se com a organização do trabalho, cuja única diferença importante foi a modificação da regulação para o plano nacional. Nesses pontos, portanto, o mercantilismo mantinha as mesmas características dos regimes anteriores, mantendo-se avesso à ideia de comercialização da terra e do trabalho (CERQUEIRA, 2001).

O mercantilismo preparou terreno para mudanças mais profundas, as quais se deram com a Revolução Industrial, ocorrida no final do século XIX, marca de uma nova era do capitalismo mundial. Assim:

(...) constituiu-se, de fato, um novo padrão de produção e de consumo, com base em modernos sistemas de produção e de comercialização (…) como a utilização de uma série de produtos propiciada pela eletricidade e pelos avanços na indústria de bens de consumo duráveis, com elevadas escalas de produção e de consumo (MORAIS; BORGES, 2010, p. 14).

Na primeira etapa da Revolução Industrial, houve aumento da produção dos trabalhadores, sem que necessariamente tivessem que vender a sua força de trabalho, de modo

que mercador e trabalhador coexistiam. Esta coexistência, no entanto, foi abalada com a chegada das grandes máquinas no processo produtivo, fato que alterou sobremaneira a economia mundial. A consequência mais importante da Revolução Industrial foi, no entanto, a instauração de um clima de esperança, uma forte crença social de que o ser humano, livre das amarras do Estado, potencializaria naturalmente e intensificamente as trocas, de modo que ―todos os problemas humanos poderiam ser resolvidos com o dado de uma quantidade ilimitada de bens materiais‖ (POLANYI, 2012, p. 42).

A Revolução Industrial iniciou, ainda, a formação do mercado autorregulável. Uma vez que as máquinas mais complexas eram rentáveis somente quando produziam em grande quantidade, a produção não podia parar por falta de matérias primas ou mão de obra, assim como era necessário que fosse assegurada uma escala também no consumo, de modo a garantir a saída de mercadorias. Para que estas variáveis estivessem todas sob controle, foi necessário que elas (variáveis como matéria prima, mão de obra, consumo) estivessem à venda, ou seja, que se tornassem também mercadorias. Deste modo, o mercador (dono dos meios de produção) podia dominar todos os fatores que determinavam a produção e comercialização em escala, utilizando-se de seu poder financeiro adquirido no próprio início da Revolução Industrial; caso contrário, a produção com a ajuda de máquinas especializadas tornar-se-ia demasiado arriscada. A partir desta nova configuração, iniciou-se um processo em que todo bem necessário para garantir o lucro do mercador podia ser transformado em mercadoria (POLANYI, 2000).

Essa mudança de mercados regulados para mercados autorregulados, ao final do século XVIII, representou uma transformação completa na estrutura da sociedade, marcando a separação entre o político – representado pelo Estado – e o econômico – representado pelo mercado. A partir deste momento, o conhecimento econômico, considerado como técnico científico, ganhou uma áurea de imparcialidade, de modo que se convencionou subordinar todos os demais campos da vida social ao campo econômico (POLANYI, 2000).

Para que essas variáveis estivessem sob controle, e assim se desenvolvesse a indústria, surgiu a necessidade de que houvesse uma desregulamentação do mercado, fazendo com que a terra, o dinheiro e o trabalho não estivessem sob a tutela do Estado. Essa ―migração‖ não somente atendia a interesses econômicos de poucos, como também encontrava respaldo na ideia de que as pessoas livres no mercado conseguiriam atender de maneira plena a resolução dos seus problemas. Assim, sendo a terra, o dinheiro e o trabalho importantes para a finalidade mercantil, era preciso que eles ficassem livres dessa tutela e se transformassem em mercadorias.

O que antes era apenas uma ligeira expansão de mercados isolados transmudou-se para um sistema autorregulado de mercado e o passo principal foi a transformação do trabalho e terra em mercadorias. Eles não eram mercadorias pois não foram produzidos (como a terra) ou, se haviam (como o trabalho), não visavam a venda. Quando eles passaram a ser vendidos o mercado os absorveu. (…) O verdadeiro alcance desse passo pode ser estimado se lembrarmos que trabalho é apenas um outro nome para o ser humano, e terra, outro nome para a natureza (POLANYI, 2012, p 53).

A este debate, agrega-se mais um elemento central: o dinheiro, um símbolo do poder de compra. Como regra, o dinheiro não foi produzido com para ser vendido; no entanto, ele adquire características de mercadoria através de mecanismos dos bancos e das finanças estatais. Juntos eles formam uma parte absolutamente vital do sistema econômico sendo o ponto central deste debate (POLANYI, 2000). Assim, toda a sociedade passa a ser afetada, já que a inclusão da natureza e do ser humano no mercado significou "subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado" (POLANYI, 2000, p.84).

Foi nesse contexto que a falsa ideia de riqueza, relatada no começo desse capítulo, tomou força, transformando a sociedade humana em acessório do sistema econômico. Isto porque uma economia de mercado só pode funcionar em uma sociedade de mercado, condição que resulta no desmoronamento da sociedade, desprovendo o ser humano de sua instituição cultural e de sua liberdade. O homem passa a ter como motivação de trabalho o rendimento e a natureza, por sua vez, sucumbe a elementos mínimos, sendo mera fornecedora de matéria-prima. O poder de compra manifestado através do dinheiro liquidaria a economia, já que há uma tendência de variação entre momentos de excesso e/ou falta do dinheiro, fazendo com que as empresas, principalmente as de pequeno porte, não suportassem tal comportamento do mercado (POLANYI, 2000; LISBOA, 2000).

Sobre a economia de mercado, temos que ―um sistema autorregulável de mercados, em termos ligeiramente mais técnicos, é uma economia dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado‖ (POLANYI, 2000, p. 45). Assim, na autorregulação tem- se que toda a produção é para a venda no mercado – inclusive a mão de obra – resultando nos rendimentos. Polanyi analisa as consequências desse sistema:

Por conseguinte, há mercados para todos os componentes da indústria, não apenas para os bens (sempre incluindo os serviços), mas também para o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo seus preços chamados, respectivamente, preços de mercadorias, salários, aluguel e juros. (POLANYI, 2000, p. 74)

A partir desse cenário, viu-se consolidar a mudança de motivação da ação por parte da sociedade: o lucro passa a substituir a motivação da subsistência e a riqueza passa a ser determinada pelo valor e pelo dinheiro. Com o tempo, toda a sociedade torna-se dependente

do ciclo da produção para obter renda, emprego e provisões, conforme Polanyi (2012) nos relata abaixo:

No início, a identificação falaciosa dos ―fenômenos econômicos‖ com os ―fenômenos de mercado‖ foi compreensível. Mais tarde ela se tornou quase numa necessidade prática da nova sociedade e do estilo de vida que nasceram das dores da Revolução Industrial. O mecanismo de oferta-procura-preço, cujo aparecimento produziu o conceito profético de ―Lei econômica‖ converteu-se rapidamente numa das forças mais poderosas que já entraram no cenário humano. (...) O mercado formador de preços, que antes existira apenas em amostras, em alguns portos comerciais e poucas bolsas de valores, mostrou sua espantosa capacidade de organizar os seres humanos como se fossem simples quantidades de matéria-prima e de combiná-los – junto com a terra – em unidades industriais comandadas por pessoas privadas, que se dedicavam sobretudo a compra e venda com fins lucrativos. Num período extremamente curto, a ficção mercantil aplicada ao trabalho e à terra transformou a sociedade humana. A identificação da economia com o mercado foi colocada em prática. A dependência essencial do ser humano em relação a natureza e a seus semelhantes, para obter meios de subsistência foi posta sob o controle dessa moderna criação institucional de poder superlativo, o mercado que se desenvolveu da noite para o dia a partir de um começo modesto. Essa engenhoca institucional, que se tornou a força dominante da economia – economia de mercado – originou um fenômeno ainda mais extremo: uma sociedade inteira inserida no mecanismo de sua própria economia – a sociedade de mercado. (POLANYI, 2012, p. 51/52)

Dentro desta nova lógica, onde tudo se torna mercadoria, é importante aos detentores dos meios de produção que a escassez seja construída para a potencialização do lucro, devendo haver, por exemplo: poucas vagas de trabalho, para que se paguem baixos salários; abundância de insumos, para que o seu valor seja baixo. Os que têm mais acesso ao dinheiro passam a deter o poder de controle para concentrar a terra, meios de produção e contratação das pessoas. Insta observar que tal concepção de escassez vai de encontro ao entendimento da economia substantiva, para a qual há uma não infinidade de recurso – que nada tem a ver com a pouca quantidade – negando, portanto, que o sustento da humanidade seja por escassez de recursos, senão por sua má distribuição.

Se antes havia uma lógica de estabilidade do preço, em que a variação do preço ficava restrita ao comércio e às finanças – já que o trabalho, a terra, e a moeda não eram considerados mercadoria e assim não podiam ser comercializadas –, a partir do fortalecimento do comércio exterior tornou-se comum a promoção da variação do preço com objetivo de potencializar o lucro (POLANYI, 2012).

Ora, uma vez que o dinheiro transmutou-se de um meio de compra para uma mercadoria, assim como a própria mão de obra do trabalhador – ficando submetida às flutuações de valores já descritas – e considerando que as pessoas foram distanciadas da terra e desprovidas da atenção do Estado enquanto cidadãos, o que lhes resta? Resta-lhes apenas venderem sua mão de obra, para a obtenção de recursos que atendam ao menos suas necessidades básicas – como alimentação. A fome foi, nesta época, uma condição social nova

para os trabalhadores. Nas sociedades pré-modernas, a fome acontecia apenas nos casos em que toda a sociedade sofresse com algum problema; além do que, havia outros incentivos que levavam as pessoas a participarem na produção, como o orgulho, o prestígio, a dignidade, o status, dentre outros (LISBOA, 2000).

O mercado autorregulado valeu-se, portanto, do medo que o trabalhador tinha de ser privado de sua necessidade básica: o alimento. Por outro lado, o ânimo por lucro do empregador contribuiu para a perpetuação do sistema, com a compra de alimentos, insumo e produtos por valores mais baratos, a fim de vender a valores mais altos. Essa imposição de que o trabalhador vendesse sua mão de obra a baixos valores fez com que se acreditasse que o homem era fatalmente regido apenas por incentivos materiais, visão errônea e a-histórica porém conveniente à naturalização e explicação da ação econômica dos homens (POLANYI, 2012).

Neste ponto, cabe fazer uma importante observação acerca da ideia de mercado autorregulado, cujos reflexos são absolutamente marcantes na sociedade contemporânea: embora de fato possua o mercado como sua instituição central, o mercado autorregulado nunca foi experimentado tal como conceitualmente formulado. Isto porque a não intervenção do Estado nunca se deu de maneira efetiva, vez que sempre houve instituições públicas regulando, de alguma maneira, o mercado (POLANYI, 2012; LISBOA, 2000). Observe-se:

O capitalismo liberal foi a resposta inicial do homem ao desafio da revolução industrial. Para dar margem à utilização de uma maquinaria complexa e poderosa, transformamos a economia humana em um sistema autorregulado de mercado e moldamos nossos pensamentos e valores com base nessa inovação singular. Hoje começamos a duvidar da verdade dessas ideias e da validade de alguns desses valores. Fora dos Estados Unidos, já mal se pode dizer que o capitalismo liberal continue (POLANYI, 2012, p. 209).

Mesmo que hoje se questione o capitalismo liberal, trata-se apenas de uma ―vitória parcial‖, pois por mais que seja inegável seu impacto na sociedade contemporânea, inclusive com a permanência de algumas dessas ―certezas‖ que ainda hoje refletem uma estreita compreensão da economia pela sociedade. Por fim, de acordo com o conteúdo analisado neste tópico, pode-se resumir tal compreensão equivocada em cinco reducionismos: a redução de toda economia à economia de mercado; a redução de todo mercado ao mercado autorregulado; a redução de toda empresa econômica à empresa capitalista; a redução da política ao Estado; e a redução da ação humana à ação interessada (GAIGER, 2007; FRANÇA FILHO, 2007).